quarta-feira, 21 de abril de 2010


*

Queres subir, alto, cada vez mais alto,
Mas as coisas que tu conheces,
Que tu gostas de verdade, porque conheces,
Que fazem parte de ti,
Cada vez mais longe,
Cada vez mais pequenas,
Quase impossíveis.

Não sabes que o céu é lugar para vazios?
À noite só uma imensidão negra,
Com umas estrelas de luz tímida,
Tão distantes,
Separadas umas das outras por eternidades.

Queres subir, alto, cada vez mais longe de ti,
Perder-te num vazio desconhecido,
Só porque desconhecido.
Sente os pés na terra,
Respira fundo, abre os olhos,
Abre os olhos e olha à tua volta:
É o que tu és.
Não te procures onde não estás.

João Bosco da Silva

21.04.2010

Savonlinna

Poema para “Disse-me António Montes”

sexta-feira, 16 de abril de 2010


À Beira Do Rio

No Bairro do Aleixo os táxis vêm e vão,
A vida fica suspensa numa agulha
Num descampado onde sombras não estão de verdade.
Chegam e vão-se vazios, ninguém vê, ninguém sabe quem foi,
Só o papel fica, uma mancha no chão,
Uma gota no canhão a ser vermelha, sinal da vida que se foi,
Uma chama desesperada na cápsula ferrugenta,
Ou na colher do veneno, o filtro ridículo de um cigarro consumido,
A sopa que não alimenta e suga o corpo à alma,
As pernas que se abrem numa insensibilidade
De quem espera menos umas gramas de dor,
Que gotejam uma morte lenta numa excitação animal,
O escuro de uma luz demasiado forte,
Fazendo esquecer os abcessos da alma,
Alguém que se deixou ali logo,
Porque não aguentou e metade nas calças,
As vozes da escola além do muro, ali, aqui mesmo,
Onde os táxis passam, onde os olhos se fecham pela cegueira
A que o êmbolo os empurra,
Onde os orgasmos parecem não chegar e nem se sentem,
Só algo a pingar, porque se deixou cair a seringa
E a veia como se uma lágrima rubra, do corpo que chora,
Que agradece num desesperado o fim de uma ausência,
Nas nuvens de algodão, onde não se sente nada,
Onde se fecham os olhos todos do corpo e da alma,
Se adia a miséria da realidade por mais um momento de ilusão.
No Bairro do Aleixo, com as torres que fazem sombra no rio que nasce
Longe destas misérias, o tornam mais escuro,
Com os carros da boa gente que passa, que finge que não vê,
A vida suspensa numa agulha, onde as crianças brincam e crescem,
As mães se vendem e se contagiam com tudo possível,
Até que o diabo se lembre de inventar algo mais,
Apontando-se ao céu como dedos ameaçadores, que culpam a ausência maior,
Os olhos que não vêem, os muros que são como uma mão aberta na cara,
A fingir que não se quer ver.
Os dentes caíram, o peso caiu, a vida arrasta-se levada por uma vontade
Além do animal e humano, sujando-se no estrume infértil de um tempo
Que é culpa de todos que nele vivem.
A luz vermelha acende-se, o dedo empurra o êmbolo,
Os olhos fecham-se, mesmo que pálpebras abertas, e o sol entra, feito de algodão.

16.04.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Despedida do comboio a vapor - Via Larga, Porto, 1977.Foto: Comissão de Estudo para Instalação do Museu Ferroviário.

No Comboio

para Istambul,

Se entro no comboio em São Bento é porque não te conheço,
Apesar de só uma noite acabada na manhã da mesma estação.
Uma despedida como se a noite uma vida
E quantas vezes a noite uma vida, mais que uma vida.
Quantas noites não valem o resto dos dias?
Se entro no comboio para Guimarães
É porque te quero entrar com a força de uma curiosidade quase infantil,
Levado por uma vontade quase orgânica,
Mesmo que não te conheça, só o sabor dos teus lábios
Confundido com a cerveja que acabaste de engolir
E o roxo dos meus lábios de vinho da garrafa que se evaporou por Miragaia.
Se entro neste comboio é porque quero encurtar a distância,
Impossível, apesar de me ir confundir no teu corpo,
Apesar de te aspirar o fumo como um beijo do inferno,
Respirar os teus miasmas, desconhecidos, por isso entro no comboio.
Se te soubesse, não entraria neste comboio, que parte,
Não estaria sentado a criar futuros possíveis, dentro, inúteis.
Nunca me disseste que eras mais que tu. Se o tivesses dito,
Entraria no comboio, teria chegado a acompanhar-te até morrer a noite?
Passados impossíveis, ainda mais inúteis que os futuros possíveis,
Dentro de um comboio em direcção ao castelo desde a varanda de um andar alugado,
Com cerveja na mão e uma saia que se abre e se senta no colo,
A dar-se, sem se dar a conhecer, arrefecendo o calor que o sol deixou,
Com um de carne húmida que acolhe a curiosidade infantil de estar noutro,
Mesmo que nunca se possa conhecer verdadeiramente.

15.04.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

quarta-feira, 14 de abril de 2010


Caminho De Olhos Fechados

até Mirandela

Caminho, sentado ao longe, caminho de olhos fechados,
Bem fechados, apertando com força até que anéis brancos,
Até que caminho de verdade, longe do caminho.
Caminho sobre cheiros de portas abertas a dizer que papel,
Comida quente na hora do almoço, roupa nova saída de caixas e plásticos,
Cabelo no chão com a quarenta e sete onze das barbearias,
Relva aparada, a ser mais verde com o sol que a rega, do outro lado,
O asfalto quente e os pneumáticos a dar-lhe razão de ser,
O fumeiro e outros aromas familiares das lojas de comida regional,
Caminho sobre os cheiros da cidade até que a luz vermelha quando atravesso.
Paro e olho. Tão longe! Sentado, num banco de jardim,
A olhar o rio que passa e eu que passo, longe do rio,
A ter pena dele, para não ter pena de mim,
Porque espero que os outros tenham, porque eu longe,
Afinal esquecido, só pernas quando olhos fechados,
Asas quando longe e pernas quando olhos fechados.
Verde. Pés no caminho, no cheiro do café,
A frescura da água que rega a relva, a ponte velha,
Com cheiros inesperados em noites quase impossíveis, lá longe,
O cheiro que se adivinha vir da farmácia, mais roupa,
Gente de plástico atrás de vidros quentes, com gente a vesti-la,
Real, do outro lado da rua,
O quase cheiro da sombra que me cobre por momentos,
O fumo do cigarro de quem passa apressado e eu longe com saudades.
Paro e olho um pinheiro por perto e bronze a ser figura de gente, verde,
Olhos abertos e o branco salpicado de negro,
À espera que um carro pare, que o asfalto quente para pés por momentos,
À espera de poder atravessar.
Estou do outro lado, longe, uma vez mais de olhos fechados,
Apertados com a força de quem quer regressar a um sonho bom,
Caminho. O cheiro do dinheiro que sai das paredes,
Do ar portiço que se escapa do interior do banco e gravatas,
Mãos de papel, a vida a vida aqui, mentira,
Eu caminho, fora sobre a doce realidade das pastelarias,
Um pastel de nata e um café, se faz favor, longe,
De olhos fechados, na esplanada, com o sol lá fora,
Como um estranho que passa e me olha pela janela,
Caminho sentado na esplanada, passo por borracha, pele,
Pés que provam o tamanho para passos, na sapataria ao lado.
Atravesso, sem abrir os olhos, já não passam por aqui sentados sobre pneus,
Só sentados de olhos fechados, bem apertados, até que sol,
Do outro lado, o cheiro impossível da visão, do ouro,
Até que papel, útil para olhos que se fecham e caminham,
Entro na Lusitana, onde conheci Vergílio Ferreira, longe, tão longe.

14.04.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

Mini Antologia Poética 2003


Árvores, águas e pontes

Neste parque, sempre verde,
Sinto-me a voar.
Quebro a dura parede,
Que me obriga a pensar.

Devoro o verde, bebo a luz,
Corro pelas pontes,
Minha alma reluz.
Sou a criança de antes.

Não sinto o corpo maior,
Nem actuais conhecimentos.
Sinto-me melhor,
Longe de todos sofrimentos.

Nem dou por mim a rir,
Com toda a sinceridade,
Dali não quero sair.
Quero viver lá toda a eternidade.

16-09-2003

João Bosco da Silva


#


À noite a luz da Lua,
Despe-me de toda a razão.
Minha alma fica nua,
Calmo é meu coração.

Se uma nuvem por ela passar,
Não tenho nada que temer.
Sinto sua presença no ar
E sua luz o vazio encher.

E aqui na noite serena,
Meu coração é domado.
Nesta terra agora morena,
Vem a mim o passado.


25-06-2003

João Bosco da Silva


#


À beira do rio

Sento-me à beira do rio,
Vejo uma frágil folha a passar,
Fecho os olhos e rio,
Da nossa efémera vida a voar.

E a folha vai tão pequena
Levada pela água, soprada pelo vento,
Sua fraqueza é meu descontentamento.
Minha alma já não é serena.

O vento dá-lhe uma forte rajada,
Ela estremece, mergulha, emerge,
E aí prossegue sagrada,
Na sua simplicidade herege.

O rio que a leva inconstante ,
Sereno aqui, turbulento ali nos rápidos,
O vento é suave e constante,
Ouvem-se gritos e risos.

Quando irá parar a folha?
Será que é além na parte baixa?
Ela não se importa nem olha.
Para quê se o fim é uma caixa?

É agora um pontinho ao fundo,
Sempre diferente e sempre na mesma,
Envolta de um verde profundo,
Não pensa, nem sonha, nem cisma.
02-06-2003

João Bosco da Silva


#


A Origem

No inicio, escuridão,
Silêncio, infinitamente vazio;
Matéria imaterial,
Nada que tudo é.

Então fez-se Luz,
Imensa, fulminante,
Infinitamente quente,
Dilacerante, destruidora;
Nada destruído pela luz.
Luz material sem se ver,
O agora é Agora.
O que é, ainda não é.

Água, substâncias em folia,
Trovões, moléculas − Vida.
Milhões de tempos. Reinados;
Conquistas marítimas, terrestres,
Aéreas. Gigantes mortos,
Nobres por terra, imortalizados,
Na pedra. Rato ancestral,
Cresce, torna-se primata.
Primata pica pedra, mata,
Come carne, rouba fogo.
Então fez-se Deus,
Aquele que tudo fez,
Aquele que tudo criou.
Criou o Homem, o amor,
As guerras, a morte,
A dor angustiante − o Inferno.

A Luz em fim apagada,
A matéria imaterial,
No inicio escuridão

20-01-03

João Bosco da Silva

quinta-feira, 8 de abril de 2010


Criança

Existe uma criança que te segue para todo o lado.
Segura uma faca ensanguentada, com a qual se matou,
Pinga, pinga e deixa gotas de sangue no teu rasto.
Existe uma criança tão pálida quanto o dia,
Que te olha perplexa como a um estranho familiar.
Existe uma criança que te odeia quando não sabes sorrir
E te puxa a manga do casaco para que vejas de verdade.
Tem as calças rotas nos joelhos,
Está suja como quem brincou na terra dias e dias,
Ou foi desenterrada. Tens terra nas mãos?
Existe uma criança no reflexo das tuas mãos,
Onde te vês e quase não te reconheces.
O cabelo é castanho claro, descolorado pelo sol,
Pelas tardes antes da terra nos olhos,
Antes dos olhos fechados que agora te seguem.
Existe uma criança que tem as órbitas vazias
Da cor do desespero, com lágrimas negras como tatuagens,
Que não escorrem. Tens um lenço impossível?
Existe uma criança que te dá a mão
Que tu sacodes com vergonha, finges que não a conheces,
Mesmo que ela desde que tu nasceste.
Existe uma criança que leva um mochila aberta e vazia,
Só com uma alça no ombro, com a outra pendente e descozida,
Vai eternamente atrasada. Tens um tempo para ela?
Existe uma criança que é tua irmã,
Que eras tu e que abandonaste com uma faca na mão,
Numa tarde de sol, mesmo antes do crepúsculo lançar o cheiro fresco a noite
Sobre a terra, a terra que lhe pinta a palidez,
Que te esconde a vergonha, que lhe cobre os olhos agora cegos e
Lhe suja a mão que tu recusas. Tens vergonha de quê?

08.04.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

quarta-feira, 7 de abril de 2010


Canção Lógica ou Ode A Vós

Encheram-me com o entulho da civilização
E agora chamam-me gente.
Tive profundidade no olhar espaço dentro
Com braços até ao infinito, capaz da novidade,
De sentir a luz de outro dia como nova.
As flores tinham cor para que eu as achasse belas
E essa era a razão de todas as coisas serem como são.
Os rios tinham pontes para eu ter medo ao atravessa-los,
Medo de abismos sem fim com criaturas possivelmente reais
E por isso tão fantásticas.
Dizem que vazio, que incompleto, que página em branco,
Eu digo que sim, agora sim,
Mãos que só conseguem o vazio, que nunca chegam, página onde se desistiu do impossível.

Obrigaram-me a tudo, até a um deus.
Nem isso me deixaram criar, já o tinham criado,
Há muito tempo, quando a civilização também criança, prestes a perder a inocência.
Queria tantos deuses, dos que sorriem e não têm a agonia nos olhos,
Dos que vivem porque é bom viver e há flores,
Deuses sem madeira nas costas a criar símbolos, futilidades.
Tinha o poder criador capaz de deuses novos, frescos,
Com mais sentido, mas obrigaram-me ao deles,
Acima do homem e de todas as coisas visíveis e invisíveis, impossível,
Capaz pela mão do homem de atrocidades cegas.

A tradição, a tradição criança, mata-te.

Obrigaram-me a matar completamente a crianca em mim
Para conseguir livrar-me do vosso crucificado
E outros símbolos irracionais, ridiculamente mais importantes que a vida.
Lá por terem os pêlos todos no corpo
E a culpa de se tocaram na alma,
Não quer dizer que a criança que acredita tenha morrido.

As crianças sem inocência, das que carregam armas e ignorância,
Acorrentadas a uma cegueira adulta.

Deram-me tudo, tudo já feito, já inventado,
Já imaginado, já criado,
A mim que era o inventor de um novo mundo,
A matéria-prima para um universo melhor.
Cortaram-me a infância, amputaram-me a inocência
E tornaram-me em gente triste.
Crescer é tornar-se triste e sem imaginação.
Os olhos tornaram-se duplos vendo segundas intenções em tudo,
Significados em tudo além da verdadeira significação,
Símbolos por todo lado a provar que somos gente.

Meteram-me tudo em caixas, rotularam-me tudo,
Fizeram-me negar o que lhes parecia errado,
Só porque estava na caixa errada,
Na caixa onde alguém muito morto colocou.
Ergueram-me paredes com leis escritas,
Ecos de regras ridículas, enforcaram-me a liberdade,
Para que fosse gente.
Crescer é perder a liberdade original e real.

É porque tem que ser, dizem-me.
É porque também os outros, obrigam-me.

E um dia eu terei que lá chegar,
Onde eles não esperam, eles sempre um passo à frente,
A serem sempre maiores, mais sabedores das verdade que criam,
Donos das leis que criam para os que vêm atrás.
Eu cada vez mais a invejar os cães,
Até os que me morrem e os choro como mais um pedaço da minha infância perdida.

Tudo o que me sabia bem,
Tornaram-no em pecado, trancaram-no com a culpa.
Ofereceram-me o cinto de castidade da liberdade,
A culpa, obrigado.
Até as flores quase pecado olha-las.
Até os rios quase pecado senti-los no corpo,
Inferno se sentir o corpo no corpo à beira-rio.
A gente é falsa e dissimulada,
Come às escondidas a luxúria da sua gula
E tranca-se em portas grandes e frias.
Sê gente, dizem-me. Precisam de companhia nos seus jogos.
Para quê a culpa e a invenção do pecado?

Tudo em caixas.
Quem comeu os chocolates para deixar as caixas vazias?
Torna-te gente, gritavam-me.

Eu, que só queria que me deixassem estar, a ser,
Sentir porque me sabia bem,
Sem querer saber que tinha um nome aquilo,
Se tinha uma etiqueta, um lugar numa caixa.

Nunca pedi a ninguém o manual de intruções para a vida,
Mas vieram logo entregar-me um, com uma página nova todos os dias,
Como se alguém já me tivesse vivido.
Como me querem ensinar a viver a minha vida,
Se nunca ninguém viveu a minha vida?

Eles a quererem que me torne neles,
Me junte a eles naquela massa disforme,
Onde já não há indivíduos, só pedaços de um monstro maior.

Encheram-me com o entulho da civilização
E agora chamam-me gente.

Eu como a gente a fazer o que esperam de nós,
Como animais amestrados e eles a chamarem-me inteligente e esperto,
Só porque macaco de imitação,
Só porque dou passos atrás deles, cego.
Até deus criaram à sua imagem e semelhança
E o que não for semelhante a eles não é gente.

Não te mates, é pecado.
E o suicídio é a única carta de liberdade que me resta.
Na verdade, já morri, só o corpo a acolher o entulho,
Que pelos anos fora me foram lançando,
Asfixiando o que realmente fui e viveu,
Antes de me obrigarem a ser gente.

Obrigaram-me a ser gente
E nem me deixaram despedir de mim,
Daquele com o infinito no olhar,
Com mãos capazes de tocar na vida como se a primeira vez,
Todas a vezes.
Adeus ó não-gente que fui,
Coberto pelo entulho da civilização,
Civilização lixo de civilizações mortas,
Monstro de retalhos putrefactos e nós nisto,
Eu nisto.

Deixo cair a alma,
Uma mancha pequena e negra,
Um ponto-final.

07.04.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

sexta-feira, 2 de abril de 2010



Hoje


Hoje...sou eu como tenho sempre sido
E muitas vezes odiando ser.
Sou mais um nada, não um desses grandes nadas,
Que comigo e com inúmeros outros nadas,
Constituem a humanidade, que não passa de uma palavra.
Hoje encerro em mim um universo,
Como ontem encerrei, e encerro a cada segundo que passa.
Um universo tão grande, ou maior que o que me contém,
Tão cheio de sonhos que sufocam
A realidade impedindo a sua materialização.
Sou aquele que tudo tem, que tudo é,
Mas que não sai de si, nada mostra
E o mundo não vê, ignora e por isso é nada.

Hoje vou esmurrar violentamente um muro de granito
E pintar nas pedras o meu desespero com sangue,
Até secar e se tornar mais uma mancha do tempo que passa.
Só para sentir dentro deste crânio outra dor
Que não a de respirar e sentir o ar dentro dos pulmões,
Sentir o peso da minha realidade nos ombros,
Na coluna e no resto dos ossos,
Sentir o ar frio, quente ou ameno que não sou eu,
Sentir-me eu, a mim e a separação do que sou
E do que não sou.
Hoje vou estirar todos os meus músculos...
Vou correr até o ácido láctico queimar as terminações nervosas
E aí vou correr ainda mais
Até aos níveis de toxicidade serem fatais...
Mas não vou correr, porque estou trancado em mim,
Não saio deste muro ósseo.

Fecho os olhos e voo para longe,
Respiro o ar fresco das alturas,
Absorvo a cor fria de uma montanha gelada no topo,
Sorvo a frescura do brilho do sol na água...
Abro os olhos e vejo a inutilidade e a mentira
Das minhas imagens mentais.
Abro os olhos e tomo consciência da estupidez
De estar sem sentir,
Viver sem viver!

Contraio um músculo só para me sentir vivo,
Sinto-o duro, sinto-o meu, penso-o a separar-se dos ossos,
A ficar laxo e podre...alimento para outros que vivem
Uma vida, talvez mais digna que a minha.
Sinto-me vivo, penso-me morto.
O sentir é coisa de agora, do já, deste momento...
Mas eu sempre fui do que foi e do que será.
Sempre fui do que está dentro e não se pode mais viver, nem sentir
E do que não existe, porque não se passa e nem se passará.

Já não bebo pela sede, pela comunhão,
Pela estranha sensação de liberdade e pelos episódios maníacos,
Bebo só para me não sentir dentro,
Mas com isto, não sinto o de fora,
Nem os de fora que não viram o abismo do eu sóbrio.
Sóbrio penso e não tenho espaço para sentir,
Ébrio nem penso, nem sinto, nem sou...
Passo, embalado pela embriaguez libertadora do que sou e do ser,
Dormindo num estado acordado, esquecido de mim.

Mas hoje não bebo... hoje escrevo!
Hoje sou eu dentro de mim e esboço o que sou
Nestas palavras inúteis e sem significado para quem não sou.
Escrevo e tenho aquele diálogo impossível
Que nunca ninguém me proporcionará.
Estou eu, sozinho a falar comigo,
De dentro para fora... e de fora para dentro.
Como um cão que vomita
E depois come o que vomitou... assim sou eu.
Cão, mas sem a felicidade de não saber sequer
Que é feliz.

Hoje queria sentir o sabor metálico
De um sangue que não fosse meu...
Água de uma fonte cardiaca diferente
Do meu taquicárdico músculo.
Hoje...queria dormir, sem sentir a inutilidade que isso é
Perante toda a eternidade em que o farei.
Hoje... agora... queria ouvir alguém a bater-me à porta,
Alguém que me quisesse pedir desculpa
Por me olhar e me fazer com isso existir de outra forma
Daquela que não experimento;
Que me desse as mãos e mas apertasse como quem ama,
Ou seja, daquela forma como ninguém faz.

Lá fora ouço os ruídos de uma cidade prestes a adormecer.
Ouço as pessoas que se apressam para chegar ao seu sossego,
Ao seu descanso, ao seu ocioso bem estar e estéril calma.
Mas nesta hora em que o sossego me devia visitar e embalar,
Chega-me a melancolia e a insatisfação de ter vivido mais um dia
Para a inutilidade de um outro dia que se repetirá.

Se ao menos fosse especial de alguma forma,
Se fosse importante, essencial...
Mas a ironia é que sou apenas um saco pequeno
Que encerra o mundo todo;
Um saco a que ninguém tem acesso ao conteúdo,
Nem o conhece, nem o pode ver...
A minhas pupilas são buracos negros
Para dois universos que se fundem e me fazem quem sou.

Hoje sei que o que quero está na outra margem
E que a minha vida passa entre a margem onde estou
E aquela onde está o que quero
E nunca poderei alcançar enquanto a vida passar.
Sei isto, mas sonho formas de construir uma ponte
Que me permita alcançar...
Mas o que construo são ilusões e mais ilusões
Que se amontoam no sótão das desilusões.

Hoje o que sou, será parecido ao que muita gente pensa que é...
E como se sente...
Não se enganem, nem se iludam,
Só sentem o que estão a sentir ao me ler,
Não o que eu senti ao escrever.
Por mais que me esforce o que sou realmente,
O que sinto, ou penso dentro desta tigela de miolos
Nunca passará para a experiência dos outros.

Se hoje fosse o último dia da minha vida,
Tudo o que restaria de mim
Seria um nada adiado
E umas pinturas abstractas de palavras
Que cada um interpretará à sua maneira muito única e errada.

Por agora vou beber um copo fresco de água
E sentir o que não sou refrescar-me as entranhas,
Fazendo perdurar mais uns momentos a minha dolorosa existência,
Sem razão para ser,
Mas também sem razão para não ser.

07/10/2006



Porto

João Bosco da Silva