sexta-feira, 28 de maio de 2010


A Neve Que Fica

onde o Neva entra no Báltico

Ao lado do caviar dígitos que nunca mais acabam,
A carteira gorda de rublos, tantos para tão pouco,
A mulher da mercearia a gritar lentamente as palavras,
Que continuam a não fazer sentido,
Tanto barulho por um sumo de laranja,
Sim, sumo de laranja e só se compreende um indicador
A apontar um pacote entre muitos do mesmo,
Nada mais, um indicador que deve vir do tempo de Babel,
Antes das línguas kalashnikov a disparar no ar frio sem parar.
A campainha avisa os sorrisos, escassos pelas redondezas,
Que se acendam, a custo pelo frio que vem da rua,
Garrafas pelas prateleiras, escondem as paredes,
De todas as cores, de todos os tipos, de todos os sabores,
Um arco-íris para cegar, para enganar o frio,
A escuridão das ruas quase agrestes, lembram mansardas
Apesar de largas, o tamanho comprime os sentidos,
O tamanho do maior país do mundo que sempre esmagou os vizinhos.
As ruas quase vazias no seu tamanho difícil de saturar de gente,
Com gente nas paragens à espera, com um ar amarelo e triste,
Com os seus casacos de acordo com o vazio da sua carteira,
Gente que sai quando a luz arrefeceu e se suspende em cabos,
Vão para o trabalho, regressam do trabalho, desiludidos,
Pelo que se pode ler nestas horas de crepúsculo já apodrecido.
Os travestis perseguem quem passa uns metros
Lançando no ar envolvente a provocação de um cheiro híbrido,
Os Ladas passam, quase latas de sardinhas com rodas,
O gordo feio mais pesado que a carne pelo ouro que carrega,
Leva a sua cadela loira, de casaco de pele, mini-saia e botas de salto alto,
Vinte anos mais nova que ele e eu revolto-me com o amor pelo papel.
As salas de jogos com os seus neons a dizer que dentro calor
E o transsexual, demasiado apetitoso, do qual fugimos, a entrar atrás de nós,
A moeda cai e nós saímos de imediato,
Ninguém a querer admitir que tinha umas nádegas que convenciam o toque a cair-lhe,
Ele a olhar para trás arrependido da moeda que perdeu.
Não se encontra um bar, um café dos que estão habituados os do sul,
Uma provável striper convida-nos a segui-las, ia para o trabalho,
Na esperança de mais uns rublos de reconhecimento pela sua ajuda,
Mas afinal o bar tinha um ar pouco seguro, numa cave, de uma rua ainda mais escura,
Nós não, obrigado, bom trabalho, continuamos à procura,
Cartão de membro, pedem os armários à porta, negros por dentro e na roupa,
Membro por uma noite, para isso o hotel com o cemitério em frente
Onde dorme Dostoievsky, com a escuridão apagada no coração.
Na zona dos elevadores as prostitutas esperam a clientela que desce só,
Para subirem com companhia e há de tudo:
Velhas, jovens, demasiado jovens, demasiado velhas,
Várias gerações no mesmo negócio de descarga de peso, assassinas da solidão,
Loiras, ruivas, as ruivas, aquela ruiva se me sobrassem rublos
E me faltasses escrúpulos, morenas, altas, baixas, gordas, magras, das que só à dentada.
Subimos com a porta automática do elevador a fechar-nos os sorrisos
Depois das negociações para amanhã, quando já lá não estivermos,
O bar à espera e mais duas, com um menú de serviços,
A fingir que vestidas com vestidos transparentes a deixar ver os mamilos
Que se adivinham rosados e quem sabe com hálito do último cliente,
A linha fina na púbis a indicar de onde vem a motivação para quase tudo na vida,
Um belo par aquele, irmãs, quem sabe, parecidas sim
E os escrúpulos e as garrafas de vodka ainda cheias a tornar a noite sem sal,
Sem aquele sal daquela pele pronta a tudo,
Assassinas da solidão, da escuridão, da noite e do frio da antiga capital.
Sabemos que depois haverá festa no nosso andar,
Com americanas, francesas, alemãs, italianas, belgas, suecas...
Os quartos esperam e a vodka espera o convite para desculpar
Um assalto ao corpo alheio, pagando o prazer com o prazer,
Que assim é que deve ser. Os seguranças vêm e acaba tudo mais cedo,
Cada um entra aleatóriamente para uma porta aberta atrás de um cartão magnético
E assim se faz um destino, o de uma noite,
Poucas semanas antes do atentado checheno, os tais vizinhos esmagados,
Tanta arte e tão pouco respeito pelos autores, a humanidade, cansa-me.
A ressaca acompanham a dança de Matisse, tão longe da primeira vez,
No livro de educação visual e tecnológica, tão grande que Síndrome de Stendhal
E eu sem saber se aquilo real, se eu a sonhar há muitos anos,
Tão pequeno lá no país da minha língua.
A carteira emagrece, quero lá saber, não quero sair daqui com um rublo,
Não posso sair daqui com um rublo,
O resto é encher os bolsos de recordações,
Como os bolsos vazios do espanhol que nos veio dizer que alguém lhe tinha pedido a carteira,
Menos mal que foi a carteira,
Podia ter lá ficado ele, numa daquelas ruas geometricamente perfeitas,
Cheias de turistas cegos pela fascinação, quase como estar em Paris
E é verdade, com mais água, canais por todo lado
E a cara arranjada e maquilhada de um império grotesco,
Às portas do outro lado da Europa, olhando o poluído Golfo da Finlândia,
Mesmo de cara para o esgoto dos países bálticos,
Faz-me lembrar uma puta cara num bairro degradado,
Com joias como das grandes actrizes, sem clientes e miserável na sua gigante solidão.
Ao longe do outro lado de uma das muitas pontes
Alguém a fazer flexões no meio da neve,
Um louco, ou não, tudo depende da frequência das loucuras,
Repetem-se e tornam-se hábitos, o povo todo repete e tornam-se tradições.
Louco eu, que acho estranho o que me é estranho,
Gosto com um certo sentido masoquista, aquelas punhaladas
Na minha virgem ignorância de tantas coisas.
Tantos contrastes, mas nem é preciso ir longe,
Basta olhar para o lado, através da janela do autocarro,
Ver os monumentos que se tornam cada vez mais raros,
As torres que se tornam cada vez mais parecidas às que há em todas as cidades grandes,
Como se a verdade por fim a ser revelada,
Um acordar ao lado de uma almofada borratada e uma desconhecida feia, envelhecida pela noite,
Um palhaço grotesco, como as marionetas do teatro de marionetas de Nevsky,
Os Ladas ridículos naqueles trinta graus negativos, ultrapassados pelas limusinas,
Os Hummers negros, americanos, blindados, dos homens do petróleo e das drogas,
Aqueles gordos de cadelas loiras pela mão, vinte anos mais novas que eles
E a sustentar a família toda desde a avó até à filha que tiveram aos catorze anos,
Todos num apartamento pequeno, numa daquelas torres a dizer adeus.
Adeus máscara de teatro, com o teu sorriso cortado pela metade triste,
Deixaste-me dentro o mesmo sorriso torcido, o fascínio desiludido da humaniade.

28.05.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

Momento Trazido

de Bragança

Sentado num muro à espera, com o Sabor em frente,
O Eça a fazer-me companhia, na cidade onde nasci,
À espera que venham do médico para regressar.
No meio da rua adormecida pela hora de trabalho,
Com os carros que passam atrasados, sempre atrasados,
Sempre a chegar onde nem vale a pena pensar,
Com o livro, inclinado sobre o papel, quase lá dentro,
Não fosse a brisa primaveril e os passos no passeio.
Será que um dia lhe saberei o nome, a ela que passa?
Deve ser da minha idade, uns quase dezassete,
Também deve andar a ser Eça e pensar que os seus problemas
São tão grandes, enquanto o rio passa e vai para longe
De onde eu nasci.
E o próximo ano será o último, depois, depois tão longe
Do que imagino, perdido em ruas ainda mais desconhecidas
Que estas da cidade onde nasci.
O castelo, sei tão pouco sobre o castelo, sobre o Gungunhana,
Só que deve ter sido alguém muito grande para ter as calças num museu.
Sei que gosto e me faz lembrar tempo que nunca vivi,
Mas que alguém viveu até eu nascer nesta cidade,
Como se toda a história do mundo fosse para eu estar aqui,
A ler Eça, que certamente escreveu este livro para não estar só
Enquanto espero que venham do médico.
Não tarda a avalanche de carne apressada e com fome
A caminho do cheiro das batatas fritas,
A dar-me movimento aos olhos para fora, só para fora.
Não tardo e chego a meio, depois mais umas tardes ao sol
E acabo a outra metade. Hoje não, hoje a hora do almoço está próxima
E ainda temos que atravessar a serra, a terra fria até casa.
A serra, verde, cheia de segredos e de casas vazias.
Um dia irei vasculhar aqueles interiores vazios,
Enquanto faço horas, como se fosse um criador de tempo.
Um dia irei vasculhar interiores vazios na companhia daquelas casas,
Sem me importar dos carros solitários que passam,
A caminho da cidade, ou regressando da cidade onde nasci,
Iluminando por momentos os suspiros e os gemidos nos vidros.
Que nome terá? Era bonita, o nome não interessa,
Mas qual será? Um dia direi que gosto dela: gosto de ti.
Não. Gosto do livro que leio. Nunca pensei, mas nunca o tinha lido,
Gosto desta cidade, que tão poucas vezes visito,
Apesar do cordão umbilical e da gente que passa e nem me faz ser.
A culpa é do cheiro do almoço e das prioridades,
Das pressas que não deixam ver, que não dão tempo à gente de ser gente.
Um dia quero voltar a visitar o castelo, a Domus Minicipalis,
Passar uma noite na serra a fingir amor, para que outra noite venha.
Afinal de contas todos nos sentimos sós, mesmo numa rua cheia de gente,
Onde ninguém dá por ninguém, enquanto esperamos, um olhar, um sorriso,
A esperança de um nome de olhos bonitos,
Uma recordação para levar pelo mundo fora,
Para quando um quarto fechado e estranho, apesar do nosso cheiro nas paredes.
Não estranho nada o tempo do livro, deve ser assim que se vive nas grandes cidades,
Lá longe, na capital, da qual só me lembro da gente esquisita,
Sem olhos, dos autocarros como concertinas, do sono nos barcos do rio largo,
Da forma de falar muito asséptica, dos bancos de jardim onde mora gente,
Das ruas tão grandes e cheias onde custa respirar,
O cheiro a alcatrão quente, os táxis com cheiro a pele e fumo,
O táxista simpático de bigode, como os imaginava,
Os olhares no chão de manhã, os olhares no chão...
Porquê os olhares no chão quando se pode levar o Eça
Para amparar o olhar?
Aqui ainda passam tractores, gente com enxadas às costas,
Um cavalo, ou um burro de vez em quando.
De onde virão os cavalos, ou acabei de ler algo sobre cavalos?
Os burros nem pergunto, vêm de todo lado.
As rãs? Quase as ouço, ou será uma noite de primavera sentado numa manta,
Fora da cidade à beira de um açude, a contemplar os dedos nas estrelas,
Enquanto as minhas ideias humedecem o ar?
O ritmo dos passos aumenta, os passo aumentam,
A gente nasce de todos os lados, na mesma cidade onde eu nasci,
São todos meus irmãos.
Sinto umas pontadas no estômago. Deve ser fome,
Ou saudades do que não poderei levar comigo,
Quando eles chegarem do médico e eu me for.
O velho da boina diz-me bom dia,
Parecia o meu avó, mas com boina, já deve ter almoçado.
Dá-me mais fome por saber que há quem não a tenha,
Sinto-me mal, pela quase inveja, olho o sol no rio para acalmar.
Regresso ao Eça, que se continuar à espera, não passarei da metade.
Eles que venham quando vierem, por enquanto espero,
Já com fome, pela hora do almoço tardio.

28.05.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Admirável Mundo Novo

não o de Aldous Huxley

Um louco-obrigado atravessa as noites cada vez mais altas,
Vestido de moléculas instáveis, onde se cruzam carros flutuantes
Com gente que será gente depois da gente.
Os vivos-mortos, os mortos-vivos e outros ressuscitados,
Porque já se pode brincar com o que antes definitivo.
As megacorporações com o poder de fabricar deuses,
Novas religiões fundadas na ciência esquecida da ética,
Fabricantes das leis à sua medida.
A velocidade vertiginosa das novas guerras,
Reduzem multidões a pasta fertilizante, sem dar tempo a um grito,
A beleza dos nanoconstructores a tornar entulho em palácios,
Enquanto os habitantes de uma capital se tornam estrume homegéneo,
Quando bio-aviões bombardeiam plasma pelos seus genitais grotescos.
As ruas cheias de ladrões de implantes de crédito,
De punhal em punho prontos para te abrirem as tripas
Por roupa de marca das megacorporações
E as novas drogas sintécticas, mais viciantes que o oxigênio,
Ladrões-assassinos capazes de lágrimas e de pedir clemência
Quando os seguranças corporativos os vão fritar nas horas-vagas depois do trabalho.
O ciberespaço cheio de vida virtual, vigilantes, vírus com ideias de apocalipse
Capazes de instalar o caos no mundo dependente da cibernética.
O amor impossível de um holograma pelo seu patrão,
Incapaz de tocar, de sentir a não ser aquela estranha fusão de informação
Que leva a um erro no sistema, aproximando o que foi criado pelo humano do humano,
Condenado a uma imortalidade informática, enquanto a informação tiver lugar para estar.
Passeiam-se, uns por vaidade, outros por necessidade, os dos implantes cibernéticos,
Já além do humano, um lugar entre a criação e o criador,
Facilitando a vida tão dificultada pelas facilidades modernas.
Os sociopatas sadomasoquistas capazes de usar o sofrimento e a dor para criar arte,
Teatros de gritos, berros e suspiros cansados e resignados,
Com telepatas capazes de trazer de volta os momentos mais dolorosos que já viveste,
A infalibilidade da tortura telepática, quando o corpo já não chega,
Em nome da arte, mas mais em nome dos créditos ganhos por satisfazer os fetiches modernos.
Se tens créditos suficentes, envelhece sem medos, abusa do corpo,
Dá cabo de ti com as sensações mais extremas,
Depois trocas o teu corpo decrépito por o de um jovem são com a familia pobre,
Se tens créditos suficientes compras quem tu quiseres.
Ainda há caça às bruxas, apesar de se ter dissipado há muito a cinza das inocentes,
Caça aos geneticamente diferentes, o novo racismo anti-evolução,
O mesmo medo do que é diferente, num mundo tão diverso, cada vez controlado por menos.
Apesar do cheiro, do tráfico de drogas, das ruínas do século passado, de toda a miséria,
Ainda é no submundo que a humanidade é mais humana, longe dos que vivem nas alturas,
Alheados, esquecidos das suas origens, viciados nas suas drogas legais, marionetas das corporações.
Os novos programas públicos, as execuções ao vivo,
Com os julgamentos feitos nas rodas da sorte, ou do azar,
O entretenimento das massas à custa da dor humana como nos tempos antigos,
Já que a bestialidade dos homens não muda, moderniza-se.
Deuses, os que a ciência quiser criar, por manipulação genética,
Nada está fora do alcance das mãos do mortal,
Desde que a bioética ficou no velhinho início de século, em nome do progresso,
Que para empatar chegaram os séculos de ignorância religiosa.
As cidades flutuantes, para os que são dignos do céu em vida,
Pelo seu implante de crédito de platina, longe dos ladrões, dos mutantes degenerados,
Das misérias da terra, na companhia dos deuses das megacorporações,
Mesmo onde flutuam as estações de controlo meteorológico,
A dar chuva ou sol quando se quer, para quem paga, sempre para quem paga,
Só para quem pode pagar.
Este é o admirável mundo novo, onde a minha criança cresceu,
Não muito diferente do velho mundo do adulto que sou.

26.06.2099

Valhalla

João Bosco da Silva

segunda-feira, 24 de maio de 2010


Ninguém Me Mor(r)a

O fogo que se propaga pelo esófago até cair
Lá no fundo onde também não sou eu
Dentro do corpo, perto de onde moro,
Mas não sou.

Sou esse fogo a atravessar este corpo
Emprestado para a passagem das coisas.

As mãos capazes de tudo,
Capazes de entrar em todos,
Mais profundas que os olhos,
Atrás dos quais não habito.

Sou todos os pecados das mãos inocentes,
Todos os milagres roubados ao vazio.

Aquela imagem cá dentro que os olhos roubaram
Ao momento que não é mais,
Que não é minha, que nem vejo
Apesar dos olhos abertos tão longe de mim.

Sou aquele mundo que se acende
Quando os olhos se fecham mesmo abertos.

Entrar no corpo naturalmente lubrificado
Pelos sussurros da língua nas orelhas e no pescoço,
Mesmo que eu fique sempre de fora
A assistir às conquistas do meu corpo.

Sou a confusão dos dois corpos
Na noite quente e suada, roubada ao verão que passou.

24.05.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

domingo, 23 de maio de 2010


Adeus Vida Merecida

ao miúdo do sorriso,

A vida, a vida é só a desculpa para a morte,
Um mostrar à fome pão cada vez mais longe.
Deus nem morre, nem tem nada a ver com a morte,
Só quem nasce, só quem é, pode levar com a injustiça
De caminhar para o vazio, convencido que um dia, um dia,
Um dia nunca mais e todos os sonhos apagados,
Todas as conquistas ridículas, todas as tristezas inúteis,
Que seriam arrependimento se a escuridão o permitisse.
A vida uma ilusão consciente, uma ferida aberta na eternidade,
Um mergulho breve entre o nulo e o nada,
Onde um monte de matéria sente a outra por onde passa,
O tempo a escorrer lento, aparentemente tão lento.
Tão breve a eternidade que somos,
Entre um acordar e um adormecer inesperado.
A vida oferecida e roubada quando nos habituamos a ser,
Um brinquedo que nunca será nosso,
Nem emprestado, nem alugado, assim, um engano antes do sono,
Uma mão que nunca chega ao horizonte,
Um beijo que seca antes de se ter dado,
Um corpo que nunca sentimos de verdade,
Só o nosso a dizer que outros e nós ignorantes de outras vidas,
Nós que nem da nossa somos donos.
No cinzeiro os momentos persistem em filtros,
Filtros que já se esqueceram dos lábios sedentos de vida,
De sensações, de novidade, de gotas que secam sempre,
Antes de caírem, antes de se confundirem na terra que somos.
As cortinas vazias de presenças movem-se com a brisa quente
Que nos deixa a saudade dos que agora atravessados por raízes,
Trancados em órbitas vazias, de olhar no infinito até ao fim dos tempos,
Até que venha o fim de todos, o esquecimento inevitável,
Já que nem as estrelas brilharão para sempre.
Quantas lesmas viscosas, peçonhentas, a ocupar existência,
Com um lugar tão merecido que deixaram vazio,
Lá de onde vieram... mas a vida é para os filhos da puta,
A morte é para todos, para os que mereciam mais que uma vida,
Para aqueles a quem o deus não-vivo ignorou.
O mundo tão vazio a cada voz que se cala,
Cada vez mais vazio, naqueles corações que ficam a bater nas lágrimas
Que se engolem em silêncio, que se secam em murros no pinho,
Mão cheia de terra que o vento espalha antes de cair,
Antes do eco na escuridão eterna.
Deixai que me dispa num adeus gritado,
Deixai que deixe a roupa espalhada pelas vossas casas,
Na esperança que o meu cheiro mais um pouco,
Depois dos olhos fechados a minha presença mais uns momentos
E um sorriso: era ele, dentro, aqui mesmo, onde já nunca mais.

Tão insignificantes as lágrimas que os dedos choram.

23.05.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

segunda-feira, 17 de maio de 2010


Ruas De Longe


Nunca ninguém me disse que tão longe fosse possível
E apesar da distância, ainda tão em cima de mim,
Que mal me consigo distinguir dos paralelos sujos da rua gasta pelos passos dos anos.
Não sabia que fosse possível uma rua estreita chegar ao futuro das grandes avenidas,
Mantendo o cheiro a peste negra, e as conversas de janela a janela,
As lutas de viola, sem viola, só o som das cordas a cortar o silêncio dos meus olhos.
Nem o rio sabe o que leva, nem eu o que levo dentro e me corre,
Sem parar, quase como se a vida de água, puxada a murros lentos que aceleram
Quando subo para a cegueira dos que passam mais barulhentos
E me acordam para o hoje onde se misturam as muralhas de outras infâncias.
Estive para ficar nas águas escuras, naquela tarde quente até que se cansou,
Até que a cerveja acabou e o último comboio ameaçou partir,
Estive para ficar na escuridão do outro corpo que nem se ofereceu,
Foi eu, mesmo que eu quase para ficar nas águas escuras,
Provocando todos os afogados dos séculos santos, com camisas rotas nos cotovelos
E os joelhos cansados das orações que ninguém ouve debaixo de água.
Se calhar não sabem, mas deus não ouve debaixo de água,
Por isso mergulhem e digam-lhe as verdades que nunca irá ouvir,
Que as ruas não têm palavras suficientes nos brasões dos nossos avós.
A rua logo ali, logo ao fundo desta, ao lado, a acompanhar e nunca a ser a minha,
Quase impossível, não fosse a mão dela na minha, a dizer com um olhar egípcio
Que há vida além da minha vontade de morte, nas ruas quase apagadas a altas horas.
As roupas que passam com almas dentro, lá no fundo, quase duvidosas,
A transpirar um medo que se dispersa nas ruas vazias e contagia quem passa,
Matando a solidão segura, deixando no nariz a ureia persistente dos becos frios
Até a porta se fechar atrás e a chave rodar duas vezes e um puxão.
Um gato atravessa a rua, como no sonho, atravessa dentro, além dos olhos,
Selvagem e impossível na noite de pó e sombras da cidade, patas como os pensamentos,
Sobre a calçada que desce até ao abismo, onde não há senão a presença do futuro.
Imitação, porque tudo imitação, francesa, a fingir que a distância aqui ao lado,
Com mais pó, arquitectura mais cansada, povo aborrecido, com olhos só no que brilha,
Nunca passando o lustro no que envelhece, deixando ir, pela noite fora, até à escuridão absoluta.
Deixo cair umas palavras no silêncio para anunciar a madrugada ao táxistas
Que passam como espectros, abutres quase, em busca de almas que querem cair mortas,
Numa estalagem, numa casa de alterne, no sofá da mulher que não parecia cama suficiente,
Num beco onde espera uma gota de água no inferno, na erva fresca que anoiteceu o rio,
No último comboio que tanto ameaçou que agora vai mesmo,
Na casa de banho do bar onde o álcool o único cheiro na almofada de loiça.
Parece que cada passo dado é para ficar no ontem, com as pedras a fazerem casas vazias,
Janelas pequenas só para se espreitar a ascensão e a queda do império individual,
Acrescentando mais aos ontens que virão até o longe se tornar impossível.

17.05.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

quinta-feira, 13 de maio de 2010


Epifania Na Aurora

O tempo não muda, acrescenta.
...uma sensação de plenitude,
como quando olhava o céu estrelado nos verões quentes...
...o fascínio de uma aurora,
as mãos que podiam tudo antes de se lançarem ao trabalho...
...o meu tamanho a medir-se para dentro,
maior que o vazio dos dias negros...
...a vida é um momento de luz na escuridão,
um segundo de lucidez na loucura da noite eterna...
...o gato que brinca com as sombras,
eu que me rio invejoso da sua inocência...
...a ilusão tão real que se sente dentro,
o primeiro amor que deu vida aos primeiros poemas...
...tudo igual à primeira vez,
eu mais confuso e com o peso do pó dos anos...
...o ar fresco de um dia que nasce,
sem a noite ter morrido...
...a beleza da doçura de uma maçã nos dentes dela,
quando ela não está e só a maçã...
...os sonhos que deixaram de o ser,
agora mãos cheias de areia e os dedos finos...
...o mundo que não pára de encolher,
mesmo que cada vez mais pesado...
O tempo não muda, acrescenta.

13.05.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

terça-feira, 11 de maio de 2010


Só Faz Frio Quando Se Está Fora

aos carneirinhos que me tiram o sono

Só me dei conta de que te amava quando as minhas mãos vazias de ti.
A distância tornou-se tempo em cima do que sou,
Tornou-me branco e aí vi que estava perdido de ti.
Aquele beijo de manhã, antes de ires para o trabalho, antes de te perder,
Que só tu sabias que era o último e me deixou um gosto de haver mais,
Mas só tu sabias que era um adeus mudo ainda com a cama quente dos dois.
Hoje sentado sobre o passado, onde vejo as pequenas verdades em que nem reparei,
Pegunto-me se saberias mesmo. Saberias mesmo?
Ainda como um eco nos meus lábios, um prazer que se tornou em dor latejante,
A cada batimento do meu punho vazio da tua presença, no meu peito.
Não sabes que depois de ti foi só entrar em vazios e sair deles com um novo dentro,
Porque também se perdem mãos cheias de nada, quando se teve o que não se tinha.
As noites de bebedeira só me adiam para a manhã seguinte a agonia da tua ausência,
Todos os gritos violentos dentro dos que nunca terão os teus olhos nos meus,
No meu fundo do que nem me conheço, enquanto não sei se eu tu, ou se só dentro,
De joelhos, adorando-te como se adora de verdade,
Sentindo-te como se sente o que somos, mas sabendo que reais,
Com os suspiros a dizer que sou e os gemidos a dizer que és.
A sede nos meus poros do teu suor, o teu cabelo a frisar entre os meus dedos
Agora inúteis, agora tristes e só palavras para tentar encontrar-te nelas,
Mas tu longe, esse teu corpo que me fazia tremer de calor,
Longe, tão longe que a tua textura só dentro, a que os dedos escrevem sem tocar mais.
Sei que não me dei por dentro, porque só me dei conta quando vi as mãos vazias de ti,
Só quando o tempo me tornou os braços curtos, os mesmos que te abraçavam,
Quando em ti, os mesmo que nem aí me davam o que dentro,
O que dentro que nem sei se habita mais, porque eu já não te moro,
Só agora sei que fora de ti faz frio e atiro pedrinhas à janela da casa abandonada.

10.05.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

domingo, 9 de maio de 2010


A Ponte Que É Uma Ilha Quando Se Quer

Da ponte romana só saímos quando a vontade nos chegar,
Só quando o luar acabar, o rio deixar de correr,
Os corações se cansarem de bater e a amizade, que é imortal, morrer.
Em cima da ponte a acrescentar ao rio, gozar a vida a cair,
Enquanto caimos juntos na inevitabilidade do futuro que ameaça e é sempre presente.
A luzes atravessam e nós indiferentes, dentro vão apagadas
E nem dão pela ponte que passam, nem pela água que corre em baixo,
Nem pelos sonhos que ali nasceram e morreram, noutras tardes antes de outras noites,
Quando eramos maiores nas mãos que esperavam o que vinha.
Veio e tão pequeno e pesado que não se sabe se vale a pena aguentar,
Não fosse o poder de evocar os ecos que já tinham desaparecido
E ressuscitar os sorrisos que pareciam ser os últimos sinceros.
Lembras-te daquela vez? Lembro, está a acontecer.
Morrer é como entrar amanhã no bar,
Sem saber que hoje lá vou estar e perguntar, ontem estive cá?
Morrer é só esquecer que se viveu, sem pontes para lado nenhum,
Sem a brisa fresca da primavera em cima de um rio,
Onde se podem ouvir as crianças que fomos na água,
Em verões que deixamos para ser estes tão pobres de sonhos.
Olhemos as estrelas que são as únicas que tem idade suficiente
Para nos iludirem com a eternidade,
Olhemos a escuridão que nos esmaga como insectos
Com um grito de quem está vivo e é uma força individual.
Cá estamos, em cima da ponte de tantos mortos para que hoje nós,
Em cima dela, à espera da vontade para chegar ao outro lado,
Mas hoje virá tarde, hoje virá só quando o luar acabar, o rio deixar de correr,
Os corações se cansarem de bater e a amizade, que é imortal, morrer.

09.05.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

quinta-feira, 6 de maio de 2010


A Casa Dos Braços Abertos

ao Pedro e à Andreia

Deus levou os avós e deixou a casa vazia,
Encheu-lhes os olhos de terra, plantou-lhes ciprestes nos ossos
E deixou-lhes o nome para ser esquecido.
Veio o amor ou o que aproxima dois corpos,
O frio da uma cama sem pulmões no nosso silêncio,
Com os suspiros solitários da insónia,
Veio o amor ou uma noite em que se entrou dentro
E se ficou mais fundo do que a carne pensa
E a casa dos avós, com os sons de quem tem vida dentro,
Ainda jovem, dos netos daqueles olhos cegos pela eternidade.
A amizade visita-a e enche as noites de risos sinceros
Mesmo que amanhã seja outro dia de trabalho,
Não interessa, não se sabe quando as raízes nos ocuparão o olhar.
Teima-se pela noite dentro, até irem altas as horas, baixas as garrafas,
Os paralelos já frios de esperar por uns passos incertos de regresso
Para um silêncio de quem adormece com um sorriso nos lábios.
A casa dos braços abertos onde os copos nunca estão vazios,
Onde o silêncio não sobrevive às violências da única felicidade possível,
As paredes guardam os ecos das gargalhadas para outros invernos
E o tempo não se sente, não interessa, nem parece passar.

06.05.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

terça-feira, 4 de maio de 2010


A Madrugada Da Noite Que Nunca Morreu

um brinde a vós,

A noite que eterna nos vem trazer a amizade de granito,
Quando entramos no dia sem deixar de ser quem somos,
Com o grito da verdade que acorda os pulmões e a Lua,
A sinceridade que só quando a sobriedade se esqueceu
E os abraços de sempre, que ecoam nos músculos felizes.
O vidro que castanho nos canta a letra que escrevemos dentro,
Erguido no ar, entre o luar e a eternidade, na companhia da brisa leve,
Quase quente, quase como dentro de nós.
Os cães que não dormem cruzam as ruas em baixo,
Ladram no vento que nos leva até ao amanhã aos poucos,
Mesmo que o amanhã a ser agora, em cima do muro de granito,
No adro da capela, próximos dos deuses impossíveis,
Única realidade na noite que suspira o amanhecer em tons azuis,
As nossas vozes, a cortar a distância que se aproxima, lá longe.
Não se podem agarrar os momentos, por isso só resta que sejamos eles,
Esgotá-los até ao limite, até à exaustão do corpo,
Até que a alma se canse e adormeça e um leve gosto na boca a ser recordação.
Hoje neste monte, em cima do mundo que há no nosso olhar,
Somos a eternidade e o infinito, o Luar é um capricho nosso e o amanhecer o nosso medo.
A vila dorme, só nós vivemos neste momento,
Humanos quase deuses, quase selvagens, quase ramos que o vento anima,
Quase os grilos que impedem o silêncio de uma escuridão completa,
Quase um uivo os nossos gritos contra o horizonte polvilhado de almas que dormem.
A noite que cede, cansada dos nossos olhos que insistem em criar mundos,
Levanta além dos montes, além da bruma da distância, os primeiros dedos quentes,
Do astro que nos diz que é hora, que o hoje já cá está,
A gente abre portas, entra em carros, acende fogões, aperta cordões,
Escova dentes, a gente acorda, faz o café, abre o jornal fresco,
É domingo e alguns a cortar a luz do amanhecer com moto-serras.
Nós sabemos que o mundo nos espera,
Mas não sabemos o que esperar do mundo.
Descemos quase contrariados para a luz do dia que aquece os nossos corpos
Ainda frios da noite e dos inúmeros brindes gelados,
Os madrugadores entram no café, quando nós já lá estamos,
Sentados a agarrar o que resta da noite, metendo o vazio nas garrafas
Que nos trazem à mesa, falando do que só sabemos nesta manhã,
Só nós nesta manhã e ainda há tão pouco tempo só nós e a Lua.

04.05.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva