terça-feira, 28 de setembro de 2010



Palavras


As palavras que me desculpem,

Mas elas é que têm que baixar as calças à minha vontade.

Não estou aqui para lhes satisfazer desejos,

Nem para lhes prestar vassalagem, são pedras até eu disser que vivam.

Elas que me ressuscitem os mortos,

Que me tragam a ilusão de uma proximidade impossível,

Elas que façam de uma noite anos de aventuras,

Desde o misticismo obscuro de quartos bafientos,

Até aos anos loucos a ler poesia entre árvores e multidões,

Apesar de um Sol a nascer mais pequeno do alto de um castelo em ruínas,

Numa das muitas curvas eróticas das montanhas e dos montes em frente,

E gritos quase uivos ao sol, ao deus único e possível.

Palavras que escrevem caminhos que só se viveram por quem os percorreu,

Palavras que não me sobem às costas, que não trago comigo,

Eu é que as vou agarrando até parecer bem,

Até me cansar de as mastigar sozinho.

Sem experiência as palavras são vazias, são só símbolos, sons e ideias

E as ideias nunca mataram ninguém sem mãos para asfixiar os sonhos.

Que sabem as palavras do verde que amanhece nas vísceras da história da humanidade,

Que sabem dos olhos que se comovem com o vento quente

Que traz o cheiro fresco do dia jovem?

Sabem o que eu lhes conto, apenas isso e tomam a forma que eu lhes der,

Baixam os olhos quando vêem os sentidos passar e esperam

Que alguém lhes conte o que já passou.


28.09.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva



Acordar Tarde


Já é tarde até para os aromas que o fumo do cigarro engoliu,

Já é tarde mas os sapos continuam de olhos amarelos na luz da Lua

À espera que umas lágrimas chovam na despedida do dia.

É tão tarde que só o roçar dos lençóis, longe onde se adivinham dois corpos,

Onde se adivinham dois pés frios e um esquecimento no sentimento.

O frio não deixa que o ar agarre os cheiros das coisas,

No inverno gelado só cheira a branco, seja tarde ou cedo.

Os vidros do copo cansado espalhados pelo chão,

Que amanhã se acordará se houver vontade e para o fundo de uma memória azeda,

Que hoje já é tarde para levantar derrotas.

Noutro tempo, noutro lugar e já estaria a regressar o dia após uma quase pausa

De poucas horas, onde e quando nunca é tarde e deixa-te estar,

Vale a pena, deixa-te andar, chegarás lá, vem, estou à tua espera.

Agora não que já nem o hipocampo me dá o que sou longe,

Existo só porque penso que sou e a pedra também,

Só porque a penso como um limite e a atiro e a “náusea” a estas horas…

É tarde e Sartre já dorme há anos, há anos a atravessar o que se percorre num fechar de olhos

E é a eternidade, o infinito até nunca mais, num fechar estrábico de olhos: blink e já lá estás.

Por isso é tarde, por isso e por aquilo tudo que deixarás por fazer,

Mesmo que os gatos nunca cheguem a atravessar o caminho e encontrem o sapo

Com olhos a dar um tom amarelo à Lua,

È tarde para tudo o que ficou no dia, tarde para os beijos que ficaram no ar,

Tarde para o último adeus, tarde para mais um gole asfixiante para a insónia,

Tarde para o copo que vai no ar e já se vê em estilhaços, tarde para não pensar em ser pai,

Tarde para não ter dito que sim, ou que não (usem o não com moderação),

Tarde para olhar o céu da noite que arrefece tudo com os olhos fascinados e assustados

Pelo tamanho de tudo que lhes entra dentro.

É tarde e só agora abri os olhos e já cansado, vou adormecer para mais um dia,

Enterrando os sonhos que julgo ter tido como meias verdades só para dentro,

Relembrando os gritos que não se ouviram, só por ser tarde.

Não fosse este aroma a tabaco entranhado desde a língua até à ponta dos dedos,

Tão forte como a morte, tão inocente como outra planta qualquer,

E sentiria no ar o cheiro do canto dos galos, da terra a deixar de arrefecer

E se torna azulada, o cheiro do corpo adormecido com quem não me deitei,

O cheiro da porta do café da esquina a abrir e das vassouras a abrir caminho por entre as beatas,

Da padaria a abrir as portas e do autocarro a atravessar as aldeias, vilas e cidades.

É tão tarde a estas horas que o melhor é nem ser até mais logo.


28.09.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

sábado, 25 de setembro de 2010



Poente



para quem me ama e não o sei




Como pode ser ou não ser triste um poente,

Se é o amanhecer de outro lado, mais o fim de um pesadelo,

Mais uma vez a luz sobre a miséria?

Como podem os olhos manter-se secos

Se a luz desafia-nos a olhar e o vento já arrefece o mundo

Ainda iluminado pelo vermelho que torna a pele mais dourada?

Não se pode viver onde o sol lança gritos pelas bocas dos vizinhos,

Asneiras de uma voz feminina e mais jovem que eu: à mãe?

Não se pode viver onde as estações vêm sempre tão duras,

Duras nas palavras e nas cores lentas, sempre um desbotado,

Cheias de uma personalidade única a cada mês: impossível!

E a noite vem mesmo e eu nunca acreditarei nela,

Nem nas suas doces provocações a uma distância segura,

Porque a manhã vem longe, sempre longe, a roubar a luz de um lado,

Para acender noutro e a noite vem.

Não sei quantos tachos e panelas a lançar no ar cheiros que me chegam

E eu sem fome, apesar de não ter tido o prazer de uma boca cheia: de mim.

Só os cães… tenho-o dito tantas vezes que só os cães mesmo,

Apesar de desconhecer a sua cor e apesar de abusar no apesar.

Já me chama a casa vazia, menos quente que a despedida,

Tão certa como os prémios que nunca vencerei, por ser demasiado eu e meu

E do mundo grande além das brincadeiras dos grupos no recreio: a vida não é um recreio.

Querem dar-me a mão enquanto o Sol naufraga nos montes,

Querem que eu fique e não vá com ele para a profundeza de mim mesmo,

Eu que tão cansado de todos, tão cansado de todos os que me habitam,

Que falam ao mesmo tempo e nem se deixam ouvir, nem ser.

Um dia serei do tamanho de todos os poentes,

Com uma tristeza grande e universal e eu uma pedra, um pássaro, uma folha amarela,

Uma migalha de pão numa mesa cheia, um copo vazio, um beijo, um poema ou canção,

Um olhar triste numa partida, um coração aos saltos numa chegada,

Uma lágrima de desilusão, um orgasmo e outro não,

Um cadáver apodrecendo pela eternidade num caixão barato, um sem nome,

Lá longe daquilo que sou agora, uns olhos por onde entra um poente: triste.


25.09.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

sexta-feira, 24 de setembro de 2010


Palidez De Um Black Label


Nem o Johnnie Walker Black Label me irá salvar da consciência de que isto,

Sei lá onde me sento, não tem o mínimo sentido, a mínima razão para continuar a ser.

Acordo e é só mais um dia para levar até ao fim, contrariado.

Já nem sinto os paralelos, tão batidos pelo tempo, pelos meus pés de outro tempo,

Batidos, batidos a janelas semi-abertas e gente a ressonar no seu sono de duas da manhã,

No seu sono de duas da manhã a duas da manhã e nem acordam,

Fecham-se caixões e o sono continua, só o ressonar cessa.

Raios partam que só os cães têm voz a esta hora! Só os paralelos me respondem ao que nem sei,

Só as estrelas, com a sua luz longínqua, me dão mais um passo tímido e sem vontade.

Dói-me, dói-me tudo como o peso de tudo que deixei por uma ilusão,

Que sabia antes do erro, ser uma valente cegueira de saudade, quando no fim de contas…

Uma insónia que é paga a anos de vida a cada minuto que passa,

Que se sente, em ecos de enlouquecer multidões, a cada segundo no Swatch negro comprado em Zurique na despedida até ver.

Isto nunca será real, não esta vida consciente. Venha o que vier, pode abalar o corpo também,

Mas que venha! Posso ter vivido noites no fim do mundo, noites de inferno numa vida que nem para isso caminha,

Que ninguém vê, ninguém sentiu e só eu caminho com o saco às costas que tão pesado,

Mesmo que o vinho ainda nem fermente. Querem dormir, mas já estão a dormir,

Desde que acordaram neste mundo. Olhos abertos, quem os tem?

Black e nem assim me dá gosto a vida a estas horas, depois de os cães que só a mim me ladram,

Depois das casas vazias cheias do sono de quem desconheço, só sei mesmo o nome.

Vamos, dizem-me. Estamos a ir ou ainda não te deste conta, nem digo. Para quê?

Vamos lá que já sinto o que tem levado os antepassados que não conheci.

Vamos lá que o tempo chama e eu nem sei quanto tenho, só quero ir enquanto der para ir.

Tantos grandes nestas horas e eu só, eu menos do que o que acreditei ser quando acordei sem vontade,

Sem vontade: como poderia ter vontade numa manhã fria e cheia de nuvens em Setembro?

Só o nada espera por mim, mas aí sei que serei, serei grande, mudo mas grande:

Quem não ouviu, está morto e nunca vai viver. Já passa das duas, o tempo não espera

Por quem passa a correr e nem quer ouvir, nem quer perder tempo porque tem pressa do fim.

Sigam então, que os paralelos vos levam no ritmo de pedra até ao jazigo com anjos para a família chorar,

Coitadinho era tão boa pessoa e ninguém vos viveu de verdade.

Os violoncelos chamam-me, de tão longe que nem quero acreditar que fui,

Mas fui e ninguém acredita que eu além da verdade que só se conhece,

Apesar de muito além disso o mundo, a vida, a carne que se rasga e é tão doce,

Que escorre e se sorve com vontade e prazer e se sente nos gemidos, tão sincera, sem esperanças.

Só se pode ser sincero quando a esperança de nada nos toma a mão pela escuridão.

Sorrisos que me tocam como moscas numa manhã quente que passou,

Depois de uma noite de insónia até além das duas da manhã da minha vida:

Hoje vejo que o Sol não demora a amanhecer mais um dia que eu não pedi.

As ruas de Savonlinna acompanhavam-me com o ranger do meu peso na neve,

As ruas do mundo rangem com o peso da minha leveza no tempo de cada passo

E tudo é kitch e tudo é vida além do bem e do mal. A arte fica em casa a dormir

Entre duas omoplatas e o que vem de mais acima, com ou sem maresia, esteja vento ou cheiro

À expectativa de sexo, seja ele de palavras bafientas ou de carne extrema além de sonhos impossíveis que se sentem.

Amesterdão chama-me a gritos arrastados, com uma vontade de cinza e tulipas que nunca vi,

Quando nem quero saber das urzes que me fazem os ossos tão rústicos e deste país.

Não quero saber, não hoje às duas da manhã, quando já o Sol me diz que já não vou dormir mais uma noite,

Quando o Black Label me diz: lê mais um poema do José Agostinho Baptista.

Não, hoje não. Chega-me de estar longe de mim, chega-me não me ter encontrado dentro de ti,

Sempre tão longe, tu, vizinha do meu coração, sempre longe nas noites infantis.

Hoje nem a tentativa de um Hunter S. Thompson, tão longe da realidade

Que só um pode encontrar dentro dele, quando tão longe dentro onde se julgava impossível.

Multidões de paralelos de granito nos pés que me falam directamente nos cães

Que eu sou quando a gente ressona, e nem gente é, mas sonhos:

Arte é o que se faz quando o Black Label nos diz que a vida não é tão pouco, não pode ser tão pouco,

Mas é e o sono diz: aguenta que a manhã já te trouxe as moscas e tu ainda respiras.


24.09.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

quarta-feira, 22 de setembro de 2010



Portugal


Portugal, estás a gozar comigo ou és mesmo a brincar?

Portugal, abres portas para um futuro que é um mar,

Uma vida à deriva, um cérebro desperdiçado a fazer contas numa caixa de supermercado,

Uns olhos que vêem, que trabalham numa livraria cheia de mortos, de olhos para sem vida?

Portugal, quando nos levas a sério, a nós que te julgamos um país tão exemplar,

Com tantas leis que tentamos cumprir como crianças sem compreender a vida de verdade?

Portugal, quando regressam as naus dos aventureiros que morreram no passado,

Dos que nunca deram origem aos portugueses de hoje, porque tem tanto medo de saber que és a brincar.

Portugal, quando deixas o passado e te agarras ao futuro que deixaste desprezado no passado,

Quando uns pisavam a revolução industrial e tu esperavas que o ouro roubado fosse para sempre?

Portugal, para que me deixaste acreditar que eu era capaz, se sabias que não me ias dar asas para voar?

Nem valorizas as laranjas que as mãos honestas colhem, nem o azeite, nem o vinho, nem a cortiça, nem o Sol: só os ingleses, os espanhóis é que têm bom gosto?

Portugal, para quê as tuas mentiras de cabelo branco para os cérebros de telenovela,

Se me andaste a fazer gente com olhos para fora? Para que me deixaste ser olhos para fora

Se andas de agulhas ferrugentas a furar glóbulos oculares?

Não tenho mais nada a fazer em ti a não ser afogar-me na tua produção nacional de cerveja,

Porque ainda tento valorizar a produção nacional de alguma coisa,

Mesmo que seja para não ver as pontes que caem porque tu andas de olhos fechados

E nos deixas andar por aqui, a pagar direitos que afinal nos deixam cair nas águas escuras

E morrer. Ainda pagas o direito ao uso das pontes do império romano?

Somos sempre os melhores, mesmo que nunca perto dos primeiros,

Convencidos de que afinal… convencidos do nosso erro, cegos por ti, Portugal.

Amanhã é que vai ser, mas tem sido sempre amanhã desde que me lembro

E o amanhã chega e nada, tudo pior que o igual, sempre mais uma mentira que ontem.

Números que poucos percebem e todos votam nas caras sorridentes da mentira

E tu deixas, Portugal, tu deixas e ardes todos os verões e és inferno todos os invernos

Nas cidades grandes, em especial nas cidades grandes, além de papelões das riquezas de poucos.

Tu és uma merda Portugal. Dá-me uma ponte alta, dá-me um cartucho cheio de chumbo, de verdade,

Dá-me uma liberdade que seja real e não a falsa igualdade de direitos.

Não sabes que as tuas crianças sofrem, que os teus deuses são uns filhos da puta que estão a matar o teu futuro?

Deixa-te andar que o fim é sempre em frente, não pares que o abismo está lá no fim

Desse caminho. Levas-nos a todos, já devias saber, mas tu também vais,

Também vais porque somos todos Portugal, ou julgas-te um nome, uma ideia: somos nós.

Só as terras lavradas por burros são dignas da tua glória passada,

Da tua glória duvidosa. Nunca te vivi como agora, sei lá das páginas que têm escrito,

Se tudo em ti me parece uma mentira, tudo a brincar.

És o meu país Portugal? És mesmo um país? Não sei mesmo, já não sei nada,

Depois de tanta desilusão, de tanta ilusão consciente de mentira.

Já não se pode ter voz em ti, mais uma vez, andas para trás orgulhoso das tuas revoluções: para quê?

Estou aqui a enterrar-me na areia do parque infantil só porque já bebi o suficiente para abrir a voz dos olhos.

Já não conheço as tuas cores e a televisão de manhã, diz-me que és um país ridículo,

Um país que quer agradar a quem anda por andar, que nem tenta abanar a vida

E dizer, acordem, estão a viver a vossa vida, a vossa vida: a vossa vida!

Que interessa o que diz um brinquedo? Não estou aqui para brincar, sou dos muitos brinquedos,

Para satisfazer a imaturidade de líderes de merda: disse “líderes de merda”?

Portugal, estou fodido e ainda por cima disse que estou fodido.

Deixas andar homicidas de almas pelas ruas da rua de todos, enquanto condenas

Quem rouba um pão para matar a fome a corpos que morrem de miséria.

Ser lento para quem queres, para quem pode brincar, deixas andar…

Implacável para quem não tem um centavo para dizer “eu sou gente”

E um grito mudo que só a família sente no coração colectivo.

Sinceramente… deixa-te de merdas de uma vez por todas!

Sê no que podes ser e deixa-te de mostrar aos outros de outros tamanhos que ainda és capaz.

Já foste e agora cala-te, agora agrada a quem és: és os portugueses…

Ou só alguns? Queres ser uma Rússia de hoje? Estás a passos, mesmo tão longe,

Mesmo sem o tamanho real. Oito e oitenta mortos de fome no frio da injustiça social.

Pensas que te basta acreditar no comprimento dos braços para alcançar?

Querias ser, estar além do Atlântico há tantos anos…

As revistas cor-de-rosa a dar corpo à vida da conversa do que tu és

E eu quase a vomitar, apesar de não ter bebido para tanto.

Não és um país disciplinado, sabes bem que não. Não exijas ser o que não és,

Começa por ti, por cada um de ti, aos poucos. Não podes arrancar valores e transplantar valores,

Ou não sabes o que é a psicologia? Vamos, envia mais uns soldados com bandeiras minúsculas

Ao ombro, para te fazeres notar no mundo real,

Enterra-te mais no teu buraco e finge que és importante. Ninguém te liga puto Portugal!

Têm pena de ti e mesmo assim te pagam e te fodem, porque até a cultura vendes por…

Diz-me tu Portugal, por que te vendes? Essa ferrugem ainda é para ficar por muitos anos?

Está na hora de levares a vida a sério, de seres um país para todos,

Ou só cagas filhos para os deixares na merda? Ainda os adoptas para os tratares como escravos?

Para que dizes que dás direito a todos de serem eles, eles portugueses, se depois te armas em anos quarenta?

O papa não é Jesus, ninguém é Jesus, ninguém mais, para quê tanta subordinação,

Tanta vela desperdiçada em mentiras. Luxo desperdiçado em imagens enquanto os teus filhos choram de estômagos vazios.

Ponham-se a andar, não esperem por milagres. A fome não se cura com orações.

Os teus filmes: merda, porque são demasiado reais na sua ficção,

Porque tentam dizer demasiado que é ficção a puta da verdade que sente quem nem é actor.

Pensas que os primeiros têm a graça do senhor e se põem a dormir à sombra do passado?

Pensas que as lágrimas dos pesadelos das crianças são a brincar? Não sentes o salgado na tua língua fria de país cego pelo poder? Poder… ridículo!

Que é afinal deus nesta merda? Quem se vai safar da morte, quem não cai depois de garrafa e meia de Jameson, quem mata e não morre um pouco por dentro (nem sente a morte dos que ainda se arrastam)?

Como podes pedir ao teus filhos maiores que deixem de ser portugueses,

Não te sentes bem com a verdadeira grandeza? És uma inquisição cerebral,

Queimas as ideias plantadas em becos sem saída e um salário para comer durante um mês,

Um mês a menos para a miséria de uma reforma: um dia menos para morrer, que isto nem vale a pena.

Gostam que lhe caguem em cima e eles é que o fazem a quem está a tentar viver a vida,

Inocentes das perversidades dos deuses (sempre feios apesar dos cabelos brancos a imitar actores de Hollywood).

Só queremos apagar as horas depois do jantar para acordar de manhã

Para a máquina de engrenagens irregulares que tu és: Portugal.



22.09.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva

segunda-feira, 20 de setembro de 2010



Horas Do Fim


à Beirute,


É no silêncio da noite que se ouvem melhor os gritos

Da consciência, ou de algo com outro nome, ou sem nome,

Mas que fala de dentro, de longe, onde mora o que é verdadeiro.

Não vale a pena nem mais um segundo com palavras que nem merecem

A saliva que um dedo leva à página, que foi escrita para se vender,

Para se prostituir nas noites solitárias dos verões que morrem,

Sempre todos ao mesmo tempo, enquanto as uvas deixam o açúcar

Tornar-se álcool. Horas em que nem o vinho chegou a abrir a porta,

Nem o corpo se deixou cair nas garras do tédio, só a indiferença por cada inspiração.

Não terá valor quem já viveu muitas vidas, mais vidas que muitos mortos?

Hoje dorme-se melhor ao lado do cemitério, onde as palavras ficaram por dizer,

Onde o silêncio conta as verdades que se ignoram ao longo do dia.

O coração que não se cala, apesar de se ter desistido há muito tempo,

É a única companhia dos cães vadios que atravessam a estrada já vazia,

Enquanto os lençóis envolvem um corpo sem vontade de acender o Sol da manhã.

Nada interessa, mas nem que arranquem os nervos do poeta maior,

Que não vive mais, o toque dos dedos nas frias palavras valerá algo,

Não a estas horas. Agonizam os dias quentes, as lareiras estão vazias de calor,

As garrafas vazias a ser espelhos de gente, a roupa pelo chão de ser só um,

As portas trancadas que não esperam ninguém, os olhos fechados apesar do cérebro,

O cérebro a chamar vidas mortas, vidas que ficam apesar de o sabor ter ficado longe

E nem umas reticências são merecidas a estas horas. Que se acabem de vez

Todas as horas escuras de janelas abertas para o vazio das estrelas moribundas!

Já foi tempo, já foi tempo, agora o vazio quer ser tudo,

Como se fosse possível relembrar os momentos decisivos onde cabe deus para alguns.

É possível, mas não vale a pena, não a estas horas, a horas do fim.



20.09.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva

sexta-feira, 17 de setembro de 2010



Lição 100



Deixa-te cair todo, todo o que te vês ao espelho dos outros,

Todos os pedaços que são o que tu és, que adoptaram o teu nome,

Mas não és. Despe-te, sem pressas que já vens tarde.

Usa os punhos para lavar esses olhos da tua cara,

Usa os punhos até os olhos serem os teus,

Ignora a mancha de tinta que se espalha à volta deles,

Era o que vias, a verdade que comias logo de manhã.

Não sabes que ao dizeres que és,

Queres dizer que foste feito assim,

Convencido de que és original e único.

Esquece, esquece tudo. Abre as mãos e deixa cair esse lixo,

Deixa as mãos livres do que dizes ser e abre-as ao vento.

Sente o toque da realidade. É isso que realmente és:

Uma mão aberta, nua, contra o vento que passa.



17.09.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva

quinta-feira, 16 de setembro de 2010



“Encore… une fois”


a Zach Condon,


Não tenho fome de nada e isso vê-se no espírito farto de vazios,

Cansei-me de mastigar, da ânsia de querer entrar ou meter dentro no que os olhos me fazem querer,

Estou cansado da obrigatoriedade de ser no mundo uma entrada e uma saída para lado nenhum.

Hermann Hesse e Henry Miller já me escreveram as possíveis biografias,

Mais um Lúcifer caído no deserto, onde longe a flor de lótus,

Longe as prostitutas de Paris, as santas dinamarquesas, que um Desperto.

“Je t´aime”, nunca sincero, só nos olhos acesos de vontade,

Só nos lábios vermelhos de desejo, até que se sente a queda,

Se vêem as portas do Inferno onde deus dorme desde sempre,

Se sente a alma a ser maior que o corpo, se morre e só o corpo fica,

A latejar, como se uma dor que é vazio a tomar conta da casa de carne suada.

Uma vez e nunca foi, uma vez e depois já não serás tu,

Uma vez tantas vezes, até que o sorriso deixa de se sentir,

Até que os lábios só uma pele estranha e quente, até que dentro só alguém que não te diz nada,

Se a boca fechada, se os olhos apagados na escuridão de dedos selvagens e línguas desesperadas.

Os Domingos tornaram-se numa oração silenciosa além da hora do almoço,

Numa dor esperada, mesmo assim “un dernier verre (pour la route)” depois de o bar fechar,

Depois de já estarmos tão longe todos, num Nirvana ridículo sem paz de espírito,

Onde as almas esperam o julgamento do dia seguinte,

Do Domingo seguinte nas paredes sagradas dos lençóis húmidos se houver um nós que sobreviveu ao amanhecer.

“Je t´aime”, nunca sentido na pele, só nos ossos da ilusão, onde a luz da evidência

Não ilumina a consciência de que tudo um ridículo humano.

Quem nunca dormiu em Montparnasse ao lado da Simone, com uma pedra na mão a ser gente?

Fumar charutos ao lado de consciências apagadas, como se o fumo envolvesse o pouco que somos,

E lhe desse, ao menos, a ilusão de outra profundidade.

Somos tão pouco e o pouco que somos é tudo o que há. Mais uma vez…

Um sorriso da cor do Sol nas tardes do Inferno de Agosto neste país de brincar,

Um sorriso para a vida, como se ainda tivéssemos interesse nela,

Um sorriso para lhe dizer que sim, sim, sem vontade, para lhe dizer um “Je t´aime”,

Mas já sem catorze anos, num Nirvana ao lado do cemitério,

Um Nirvana com cheiro a vinho azedo, pão bolorento, óleos que fazem chorar as crianças,

Cera queimada, paredes com centenas de anos de tosses, espirros e outros cochichos,

Ao lado da pia da água colonizada por milhões de crentes.

Mas a vida sabe melhor, quando alguém nos canta ao ouvido o que faz valer a pena,

Nos sopram sem palavras a verdade de um momento: passa, passa, passa…

Quis regressar como o Gatsby, mas não interessa o enriquecimento que não se vê,

Não neste Inferno fechado por falência. “If I was young”, porque os sonhos já estão enterrados.

Vamos lá, pegar no acordeão, chamar as almas dos grandes que aqui ficaram,

Em papéis amarelecidos pelos dedos sujos do tempo,

Acordar com a trompeta os adormecidos na vida, mais umas garrafas de vinho, um pôr-do-sol,

Um ukulele para lhe dar tons pacíficos e textura a areia quente nos pés,

E caminhemos em direcção a mais um fim, que o resto foi há muito, muito tempo atrás.


16.09.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

domingo, 12 de setembro de 2010




Fogueiras de Pavese e Rum Pécoul



aos que lá ficaram



As fogueiras de Pavese lá longe da Itália, longe deste meu país de brincar,

Longe das noites de brasas curtas, sempre excessivamente ébrias,

Frias, apesar do dia quente, noites sempre frias mesmo com estrelas.

As fogueiras dentro, onde se queimam almas passadas, onde se bebem corpos líquidos

Dos pecados que ficarão no esquecimento. Ardem as fogueiras de Pavese

E eu com dezoito anos a fazer trinta daqui a uns dias, se lá chegar,

Se a lenha não arder toda, se os pecados não deixarem de ser novos,

Se os sonhos não voltarem a tomar conta do desejo, se o amor não se revelar na sua dor.

O Sol já não interessa nestas horas do fim, nestas horas do fim da manhã que nem se viu,

Do fim da tarde que passou e nem se sentiu, o Sol já não interessa e os vampiros podem sair,

Eu posso sair sedento do sangue da minha vida que passa, onde vou, às vezes meio adormecido,

Cabeceando contra o vidro dos meus olhos. Brilham as chamas das fogueiras que não existem,

Nos meus olhos cansados pelo vento dos dias poeirentos.

Porque é que o rum acaba sempre, antes de se adormecer na areia enquanto uma voz amiga:

Vamos sonhar que somos piratas, arr arr arr!

Fazer fogueiras numa praia deserta, como as que não existem nas noites frias de gente,

Fogueiras como as de Pavese, lá longe deste país a brincar, onde piratas a sério,

Saqueiam almas ainda pequenas, onde pescadores não têm barcos, onde arde tudo,

Menos fogueiras como as de Pavese.

Pelas noites ébrias, percorro sóbrio a melancolia das ruas desertas das quatro da manhã;

Surpreende a quantidade de gatos negros nas terras deste país,

A quantidade de pão de côdea dura, vazios por excesso de fermento, que ressonam,

Fartos de uma fome que se julga ter que ser, por resignação.

Arr arr arr, passa aí o Pécoul e vamos dizer adeus aos barcos apressados,

Tão vazios, tão rápidos, tão longe das fogueiras que dentro temos. Arr arr arr!

Apagam-se as palavras, lavadas a cinquenta e quatro por cento de noites puras,

Apagam-se as fogueiras de Pavese, que nunca serão as mesmas.



12.09.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva

segunda-feira, 6 de setembro de 2010


Pela Estrada Fora

a Jack Kerouac

As imagens que se tem engolido pelos anos do que passamos, tornam-se em pedaços do espelho partido,
Roubado ao universo e no fim de contas só a barba de Walt Whitman era universal,
Ou a barba de Allen Ginsberg, de um universo mais seu, mas do mesmo tamanho de qualquer outro.
A estrada faz-se mesmo que sentados à sombra de um cedro a ver as carrinhas a passar, cheias de gente morena,
Cheias de sol na ferrugem, com o cheiro a uvas no ar, até se perder na linha que os olhos cortam.
Se fosse jovem, deixar-me-ia cair da cama para o vazio, abraçava-o sem medo, cortava todos o cartões,
Esquecia todas as moradas, todos os números, todas as lições inúteis que não foram ensinadas na vida,
Partia para a morte certa, porque toda a morte é certa na vida que se vive sem as correntes
Que nos dão como os objectivos da vida. Quem já viveu a vida de outro para lhe dar indicações?
Segue o teu caminho Jack, esse que se vai criando à tua frente, com a pele salgada das mexicanas,
Das adolescentes doces e loiras, inocentes algumas, das noites loucas de Denver, o regresso louco a Nova Iorque,
Sempre o regresso, apesar de a estrada ser sempre em frente, o teu professor em Nova Orleães,
O professor da vida, o único estudante real e possível da vida, a fuga para o fim da viagem sem destino.
Imagens, de vidas, da vida que vai desde as terras mais frias, noites chuvosas em Estocolmo,
Noites surreais, brancas e ultracongeladas de São Petersburgo, horas vazias, gastas a tiros de cerveja quente
Na Europa que nos roubou tantas vezes no passado, a fuga dos lábios roxos de Bordeaux para a noite de Paris,
O hálito confuso nas ilhas da costa Africana, aromas andaluzes, escoceses, minhotos...
A visita a Kansas, logo ali, à mão da noite fria Europeia e afinal os filmes americanos nem sempre filmes.
O cabelo empastado pelo suor de tantas imagens, sem nunca se ter visitado a Interzona, tão próxima,
Tão longe dos olhos que se abrem todas as manhãs desde o princípio dos tempos.
Imagens da branca Helsínquia, tão aparada que dá vontade de passar as poucas horas de Sol de Inverno
A acariciá-la com as solas encharcadas de Finlandia ou Suomi viina, se não der para melhor,
Se a vontade não chegar para querer percorrer o interior doce e quente de uma alma livre.
Sei que Picasso teve uma namorada finlandesa, apesar de ter sido um sueco a dizê-lo,
Tinha uma bicicleta e vestidos de tecidos leves com flores estampadas na brisa leve de Julho.
Quem se perder no caminho, pode dizer que finalmente se encontrou.
A primeira e última vez em Barcelona, com os olhos demasiado sedentos de tudo em pouco tempo,
A promessa do regresso que ficou pendente no parapeito e gelou numa manhã da Terra Fria,
Apesar dos convites italianos, dos olhos castanhos e quentes do longe de aqui.
Seja no Bom Inverno, ou no Inferno Mau, há dias em que imagens nos dão mais ao que diziamos ser,
Mais uma quebra num pedaço de espelho já partido, mais uma pincelada no quadro abstracto que só nós,
Ou melhor, nem nós compreendemos. Somos arte, não tem que ter um sentido, é um caminho,
Dos caminhos de Jack, com um destino quântico, pela estrada fora.



06.09.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

sábado, 4 de setembro de 2010



Aqui Nunca É

Ali sim, seriam todos felizes, aquele lugar antes da chegada,
Antes de os pés marcarem com a presença física , ali sim,
Onde só o sonho é ainda, onde só os olhos chegam a muito custo
E não é o que dizem ao cérebro que vêem.
Pregam a alma nas árvores brancas, como se o apocalipse viesse com as estrelas,
Como se valesse a pena ficar para o vazio,
Deixam os cães soltos com medo dos salteadores que vivem dentro da gente,
Cortam o verde com medo de que a amargura não venha,
Vem sempre, às lambidelas ácidas nas feridas que ficam pelo caminho,
Abertas e as moscas, sempre moscas, negras de olhos demasiado olhos para a consciência,
Cospem nas sagradas memórias ainda a latejar na pele do que se é.
Mas ali sim, ali todos terão tudo, quando ainda vem dentro o desejo,
Ali, onde os lagos são como o ventre quente de uma terra fértil,
Que recebe os corpos cansados das violências do dia que morre, lentamente,
Até ao pescoço, com os olhos lá longe e a fazer crescer o indivíduo pelo horizonte,
Quebrando o limite do, sou da pele para dentro, até ao fim, além que foi ali.
(Sou dos olhos para fora e o que dos olhos me vem.)
O tempo aumenta a impossibilidade da distância e só o perfume traz o que ficou,
Só o olhar tenta dizer o que se cala, só a dor, a dor dá comprimento aos braços para o abraço de longe.
Agarram-se com os dentes ao que não se é, sempre em qualquer lugar, menos ali,
Sempre má, sempre má e a culpa é por não se estar ali.
Condenados do dia e da noite até ao aqui onde não se estará,
Por fim uma paz, ou nada, quase ali, ao lado da incerteza, quase no sonho, no fim que nunca se toca.

03.09.2010

Torre de Dona Chama

João Bosco da Silva