quinta-feira, 28 de outubro de 2010



Fim Do Mundo



Não pode ser, não quero, deixem estar, mesmo que não respire,

Deixem estar o fecho aberto e a minha cara pálida entre o plástico negro,

Tenho que acordar entretanto, não fechem enquanto não acordar.

É impossível, eu que sou a razão deste universo, eu que ao abrir os olhos crio a cidade,

Crio as cidades além desta com as minhas ideias infinitas,

Crio o futuro com os meus sonhos, o caminho com os meus desejos,

Estar deitado e sem me conseguir mexer: Impossível!

Quem irá correr atrás do cão, quem irá acordar com o cheiro do café logo de manhã,

Quem irá abraçar o meu amor, quem terá os filhos que eu não tive?

Não pode ser. Trata-se obviamente de um pesadelo,

Nem consigo gritar, nem consigo mover um centímetro do meu corpo,

Nem vejo o movimento ritmado de uma respiração, nem sinto o calor nas têmporas,

Não sinto nada de nada, só o céu meio cinzento e uma gota ou outra que me incomoda

Quando me cai nos olhos abertos. Que faço na rua, tão abaixo?

Devia estar a dormir no décimo terceiro andar, completamente bêbado,

Devia estar a dormir na casa de banho banhado em desespero,

Porque os meus problemas são os piores do mundo.

Morrer? Eu? Nunca pensei que fosse possível!

E sem deus, agora como vai ser? É isto, assim, um zíper que se fecha,

Uma escuridão que me engole e amanhã a gente a falar de mim no trabalho,

Como se fosse mais um? Eu não sou mais um, sou Eu,

Os outros… que aconteça aos outros, a mim nunca, não pode,

Sou o centro disto tudo. Quem me fez isto? Eu? Quem chora ao meu lado?

Não consigo mover os olhos, não sei quem é, mas diz que sim,

Que sou eu. Não posso ser eu, eu estou vivo, eu sou vivo:

É assim que se pode ser, assim que me conheço.

E agora nada? Quero acordar! Isto não é para mim, é para os outros todos,

A minha hora não é esta, é daqui a cem anos ou mais,

Porque sei que um dia a gente nem irá morrer mais

E eu terei a sorte de viver nesse tempo. Terei essa sorte?

Quem me acorda? Como me pode incomodar a chuva nos olhos,

Quem chora por mim? Recuso-me a aceitar que isto seja a minha morte,

Ela não está nos meus planos, não a morte a sério.

Assim não se resolve nada, assim não consigo nem dizer que não,

Que não me fechem no escuro frio, que não chorem por mim,

Que não me esqueçam, como se isso me mantivesse vivo de verdade.

Quem me inventa deus num instante? Queria pedir-lhe que não fosse desta,

Que estava a brincar, que afinal não era mesmo isto que queria,

Não sabia o que isto era, como podia querê-lo?

O fecho-de-correr sobe em direcção à minha cara,

Quero gritar, mas nem grito por dentro, é inútil,

Ao ver o último ponto de luz antes de fecharem completamente o saco,

Sei que os meus olhos se irão abrir… irão? É este o fim do mundo?

Um fim solitário? Enquanto os outros ficam, sem ficarem de verdade?

Quando morre alguém morrem todos os que ficam, não é assim?

Que sei eu da morte, eu não estou morto, eu não posso estar morto,

Eu serei o último a morrer, sem mim o mundo não fica.



28.10.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva

terça-feira, 26 de outubro de 2010



Alma Lada


Um sofá velho numa rua cinzenta,

Com o Sol frio nos ossos,

Debaixo de uma árvore morta,

O silêncio como companhia,

Um cão que passa repetidamente,

Com um olhar de quem percebe

A miséria dos olhos fechados.

Um carro estacionado sem portas,

Onde vivem gatos,

Uma voz de uma janela numa língua desconhecida.

Um piano?

Os anos pintam as paredes cansadas

E os amarelos vivem só para a noite.

Ninguém trabalha a estas horas do jantar,

Nem jantam, nem vão dormir que ainda é cedo.

Dormito um poema deitado num lugar desconhecido,

Numa rua possível no leste do meu descontentamento,

Quase um cão de olhar triste,

Que passa repetidamente, olha e parece perceber,

A miséria feliz.



26.10.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva



Erecção


Deixa-me ficar,

Dentro, escondido em ti,

Quente, no teu corpo,

Esquecido da dor e do tempo.

Deixa-me estar,

Esculpir a tua cara,

Num ritmo cardíaco,

Fundo, todo eu,

Para sempre, neste momento,

Quando somos outro.



25.10.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva




Sou De Todas As Cidades


Eu sou de todas as cidades,

Chego e sinto-me a espalhar pelas ruas desconhecidas,

Sempre as mesmas.

Sou todos os pecados dos becos escuros,

O vício da rua das putas e do bairro da droga,

Sou os caixotes de papelão aquecidos pelo corpo frio e alcoolizado,

Sou o beijo dos amantes, dos amigos, dos Judas,

Sou o colar de pérolas que rodeia as pregas dos anos

E a careca do dono do carro desportivo italiano.

As tradições da cidade correm-me nas veias,

Mesmo que as desconheça,

Os seus costumes fazem parte da minha pele

E o mundo todo é a minha casa.

Sou o bairro da fome, degradado, a degradação,

A ponte fechada, o hospital sobrelotado,

A escola que pinga e se desfaz,

Sou o museu de arte contemporânea e o de história natural,

Sou o metropolitano e entro por todos os túneis debaixo da minha vida.

Sei que sem querer, ao ultrapassar um nome,

Roubo-lhe a identidade porque afinal, aquilo é feito de gente,

E eu que chego sou parte da cidade.



25.10.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva

segunda-feira, 25 de outubro de 2010



Panero


Se as vozes se calassem e me deixassem um momento

Num quarto vazio, um minuto à espera de nada,

Esquecia-me dos anos até nem uma memória.

Bebo e se bebo é para que a música me entre

E me lave e me deixe sem mim,

Vazio e pronto para abraçar a vida.

Deito-me sem sono no granito frio das horas dos esquecidos,

Cansado de ser derrubado pelos demónios da fome dos sentidos.

Só queria um momento de esquecimento,

Uma síncope sagrada e essencial no epicentro do meu universo possível.

Há olhares tão fundos, tão distantes em terras de super-homens,

Perdidos na proximidade castrante das ruas de gente de pedra,

Com multidões maiores, qual Legião.

As noites cansam-se do vazio e plantam o terror

Nos sulcos onde o dia violou a criança que fui.

Se bebo é para me tornar uma criança grande,

Sedenta dos seios das virgens que nunca serão,

Curioso do corpo que me olha e me faz e sou.

Os cães não deixam dormir as estrelas,

Não se acendem e o sino da igreja ainda vibra,

Porque hoje morri e ressuscitei.



27.10.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva



Meios Beijos


Não se compreende certo calor nas noites que arrefecem,

Não se conhecem os meios beijos que ficaram pendentes na excitação

Dos dias quentes, dos olhares entrelaçados, entre multidões cegas

De olhos para uma realidade à sua imagem, uma realidade sua.

Não se acredita que dentro dos olhos que nos vêem com vontade,

Que alguém possa entrar-nos tanto dentro, ficar tanto tempo nos poros,

Entranhado na memória do olfacto, escondido nas sombras do cérebro

E aniquila toda a incoerência dos momentos além daquele.

Lentamente se entra, se vê uma chuva quente que envolve as lágrimas dos dias,

As dilui, nos dilui por dois em partes desiguais num jogo violento de carne e moralidade,

Um jogo que tem todo o sentido, sente-se que está certo.

Hajam mil orgasmos numa noite mais quente, num país que ainda não nasceu,

Hajam gatos pretos a horas improváveis por caminhos esquecidos,

Hajam barcos perdidos em terra e cadáveres que nunca viveram,

Haja a miséria, a fome de uma ressaca infernal, ou o cavaleiro do apocalipse,

Haja a morte, a vida demasiado longa,

Haja o que houver, não há quem compreenda, nem quem forje palavras

Que expliquem o calor nas noites que arrefecem à distância de meios beijos.



24.10.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva

domingo, 24 de outubro de 2010


Regurgitaciones

Sé que hay jóvenes esperando el autobús al final del día,
Engreídos y de sueños rebeldes e inocentes.
Sé que aún hay Sol y yo me lo bebo desesperadamente
Porque sé que este es siempre el último día.
Tengo el color de la muerte en la piel y sólo la luz consigue esconderlo,
Sólo los gritos de adolescentes ansiando una boca ávida
Detrás del muro, una mano emancipadora
Que le encuentre el alma en llamas a lo largo del futuro,
Me dan la ilusión de otro color.
Cierro los ojos y mi sangre roja en los párpados,
Todavía, caliente el día y el verde persiste.
Sé de tractores más allá del monte, de corcho,
Más allá del tiempo que me separa de la infancia,
Aceleran, entierran los dientes metálicos y me rasgan en tantos,
Los colores por mí, un prisma.
Me viene otro día luminoso, a pesar de grisáceo,
A la orilla de un río de otra vida,
Con adolescentes, unas mismas ganas para la vida,
Todos los caminos abiertos, hoy volviendo a los padres abuelos,
A los sueños, cabellos blancos
Y a las traiciones, huídas de la vida que sin querer se eligió.
Me recuerdo en este color, que nunca fui a Noruega
Y eso me duele como no tener dios, por mi culpa,
De las elecciones que me fueron impuestas,
Tuve que ser y dentro de mí
Aún hay carros con gente muy quemada por el Sol,
Un frío de pobreza y paredes muy gruesas de granito
Con olor a humo de diez décadas.
Los perros ladran, pero están al máximo en Tromsø
Y yo siempre he preferido Thor a Cristo, cuando era de la edad de la mitología.
Síntoma de la Sierra de Orelhão que recorta el horizonte
Como las Montañas Místicas y al cabo
Allí vive gente, con perros, con jóvenes que regresan,
Parten, todos los días para nunca jamás,
Mientras haya Sol y yo rasgado por el sonido del trabajo arduo
Y el rojo de mis ojos cerrados,
Que se abren para el verde de una santateresa.
El Sol no se pone, es mi alma lo que se extingue.


João Bosco da Silva, versão de María Alonso Seisdedos

quinta-feira, 21 de outubro de 2010



Regurgitações


Sei que há jovens à espera do autocarro até ao fim do dia,

Cheios de si e de sonhos rebeldes e inocentes.

Sei que ainda há Sol e eu bebo-o desesperadamente

Porque sei que este é sempre o último dia.

Tenho a cor da morte na pele e só a luz a consegue esconder,

Só os gritos de adolescentes ansiando por uma boca ávida

Atrás do muro, uma mão emancipadora

Que lhe encontre a alma em chamas pelo futuro adentro,

Me dão a ilusão de outra cor.

Fecho os olhos e o meu sangue vermelho nas pálpebras,

Ainda, quente o dia e o verde persiste.

Sei de tractores além do monte, de cortiça,

Além do tempo que me separa da infância,

Aceleram, enterram os dentes metálicos e rasgam-me em tantos,

As cores por mim, um prisma.

Vem-me outro dia luminoso, apesar de cinzento,

À beira de um rio de outra vida,

Com adolescentes, uma mesma vontade para a vida,

Todos os caminhos abertos, hoje a tornar os pais em avós,

Os sonhos em cabelos brancos

E as traições em fugas à vida que sem querer se escolheu.

Lembro-me nesta cor, que nunca fui à Noruega

E isso dói-me como não ter deus, por minha culpa,

Das escolhas que me foram impostas,

Tive que ser e dentro de mim

Ainda há carroças com gente muito queimada pelo Sol,

Um frio de pobreza e paredes muito grossas de granito

Com cheiro a fumo de dez décadas.

Os cães ladram, mas estão no máximo em Tromsø

E eu sempre preferi Thor a Cristo, quando era da idade da mitologia.

Sintoma da Serra de Orelhão que recorta o horizonte

Como as Montanhas Místicas e afinal

Lá vive gente, com cães, com jovens que regressam,

Partem, todos os dias para nunca mais,

Enquanto houver Sol e eu rasgado pelo som do trabalho árduo

E o vermelho dos meus olhos fechados,

Que se abrem para o verde de uma louva-a-deus.

O Sol não se põe, é a minha alma que se extingue.



21.10.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

quarta-feira, 20 de outubro de 2010



Descontentamento


A minha mãe diz que os meus poemas são bonitos
E isso dói-me como ser ignorado.
Os meus poemas não têm nada de bonito,
São só palavras com cheiro,
Um cheiro que todos evitam.
Palavras de um espelho de alma atormentada
Pelo vazio de uma noite escura
Que cai em cima de um nada tão grande
Para dentro, um grito de luz tímido no vazio.
São pestilentos, os meus poemas,
Cheiram ao hálito de um alcoólico
Com um acidente vascular cerebral,
A um fluxo menstrual que vem com o esperma
Ainda quente que cai no chão
Cheio de urina de outros dias,
Onde perto, um caixote do lixo
Com um gato morto de fome,
Ao mesmo tempo que um sem-abrigo
Roça com o acto
E palavras silenciosas,
Nas ruas pequenas de uma cidade grande.
Se os meus poemas fossem bonitos,
A vida era como antes de a conhecermos de verdade,
Ou seria um cego, ou iludido,
Ou artista que usa as palavras para limpar o cu
E ficar assim limpo e estéril,
Branco e sem sangue e carne.
Só é capaz da verdadeira poesia
Quem brinca aos dados com a morte,
Quem lhe dá um beijo todas as noites
E lhe diz: até amanhã, se tu quiseres.

20.10.2010

Torre de Dona Chama

João Bosco da Silva

terça-feira, 19 de outubro de 2010



Lavandaria Em Laos


Sei de uma lavandaria em Laos

E coca coca, muita coca

Bang bang, chop chop

E uma cabeça pendurada numa Kalashnikov

Uma catana a pingar quente

Um carro pára e Boom

Uma esplanada em Istambul

A lâmina do beco escuro

Atravessa a grelha e um pulmão sangra

Moedas caiem no vazio de umas mãos

Chop chop, lava-se o sangue

Mogadíscio come poeira ao entardecer

Uma criança loira é violada no décimo quinto andar

Enquanto a vida corre em monóxido de carbono

Sirenes, motores e gritos

Um morto ainda vive e um pobre mesmo morto

A prostituta tailandesa casa-se com o sueco

E o filho fica abandonado em Banguecoque

Em Bangladesh todos os meus sonhos de adolescente

Chop chop, hoje sangram e morrem

Dostoievsky chama-me à Sibéria

As prostitutas russas chamam-me querido

De forma dura e fria e tanto frio

Quando um submarino nuclear

Um teatro arrasado

E tantos países esmagados pela sombra do Gigante de Neve

Pelos labirintos dos morros

Coca coca, muita coca e balas

Como moscas, mosquitos

Malária e beri-beri

Tiamina e bombardeiros B-2

Bandas gástricas e botulismo injectado em pregas

Bang bang, brilhantes a voar

Bocas sem dentes e ouro a brilhar

Roleta russa em Moçambique

Se a água acaba e roupa suja

Sei de uma lavandaria em Laos

E coca coca, muita coca

Muitos sessenta e sete anos

E Thompson já dorme

Muitas nas praias francesas

Num dos dias que chop chop

Se mudou o mundo

Entro na Gare de Saint-Lazare

Que tenho roupa para lavar


A Hungria sangra o Danúbio

E o mundo chora a morte de mais um do mesmo tamanho

Alguém não gosta da cor do mar

E o Golfo do México coitado

Salvem o Báltico, dizem uns

Vomitam outros em uníssono

Só mais um copo

E o carro é disparado a 190

Contra um monovolume

A multiplicar e nem sei

Três milhões de desempregados e escravos, coño

Deixa-te ficar e mais um aborto, menos mal

Vai-te embora e bang bang

A música acabou há anos

E o silêncio parece a eternidade

Kafka com um exoesqueleto

E eu uma lavandaria

Chop chop, corta-se o cabelo

Ao macaco nu de Desmond Morris

Macaco espacial em pilas

Enormes e de metal

A explodir em direcção a deus

Houston, temos um problema

São Pedro ri-se de cabeça para baixo

A cabeça um edema grotesco

Avé Itália de César Berlusconi

Imperador da palavra

Pier Paolo Pasolini, chop chop e nunca mais

Bang bang Hemingway Sá-Carneiro

Os sinos dobram por todos nós

Por isso mais un Mojito en La Bodeguita y un puro

Beijar a saliva de uma desconhecida cubana

Chop chop, acender

Bang bang mais uns pregos no caixão

E ainda não é dia dos mortos

Vinte e cinco dólares faltam

A carne cai aos pedaços

Nem azeite nem Miguel Torga

Estes são outros contos

Outros cantos desencantados

E se durmo, Lautremont

Sussurra-me até acordar

Acordo e Boom

Enola Gay vai no ar

Sei de uma lavandaria em Laos

Roupa suja, roupa suja

What a wonderful world, canta Armstrong



19.10.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva

sexta-feira, 8 de outubro de 2010



Ovos, cães e poetas


Os cães ladram e parecem-me gente a ralhar,

Aquela miúda ou a mãe abandonada,

Com aquela casada com o homem no Luxemburgo

Ou lá onde está

E a estas horas nunca houve nesta terra uma pastelaria

E o Cesariny já dorme.

Os santos olham ávidos os dedos que abrem segredos

E orações e convulsões

Na escuridão de uns lençóis húmidos,

Frustrações de santas que esta noite

Sem maridos nem bancos traseiros de carros abandonados,

Choram, choram desesperadas vulvas sedentas.

Deste lado só tinta escorre como o sangue

De uma desculpa sem sangue,

Porque os anos tornam a vontade azeda.

Todos os amigos são Gregory Corso

E eu um traído por desconhecidos,

Quando os cães ralham e me parecem gente a ladrar.




08.10.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

quarta-feira, 6 de outubro de 2010



Árvore Genealógica


Caminho fascinado pelas pedras que o esquecimento escondeu.

Passo-lhe os dedos no musgo húmido e cheiro-os como se fosse outra humidade,

Inspiro fundo uma ancestralidade mística e imagino romanos por estes lados,

Imagino assaltos, violações onde hoje preservativo usado pendurado numa giesta,

Imagino um movimento que hoje é apenas água que lava os anos,

Que me incomoda por estar sozinho, com uma companhia excessiva.

As árvores tentam contar-me histórias que as heras estrangulam,

Só as pedras me dizem que ali já foi gente, que hoje só por vezes,

A visita de uns faróis furtivos penetrando na escuridão para uma penetração

Rápida e de alívio quase, quase alívio, um beijo, um abraço forçado e o desejo de partir

Para outra era, deixar o caminho de terra e pedras espalhadas

Por um asfalto negro e tracejado, marcado com cruzes na hora da morte de alguém

Que era como quem é, mas deixou de ser.

Os líquenes dão a sensação que não há carros a dez metros, constantes,

Dizem que a união é possível e que atravessa séculos, cheiram a corpos suados, ou quase.

Chegaram tão longe, os romanos, até ao Bótnia e aqui, um mundo quase esquecido,

Um microcosmos onde se pode ler a história da humanidade,

O amor imortal que fica nas pedras do arco de uma ponte, hoje inútil,

A ponte como o amor. Como pode um corpo arrastar um império,

Um caminho que ninguém vê, dentro, já percorrido e outro que nem daqui se sabe?

Lembro-me das pinhas e do medo do Inverno de outros anos, de outras gentes,

Meus antepassados, miseráveis, menos tristes talvez, mais úteis as suas mãos

De granito, que hoje cheiro, longe do vento verde do Golfo de Bótnia,

Onde os romanos deixaram os seus vestígios e eu um dos vestígios prováveis,

Apesar do amor pelos castros e pelo gosto do pão de bolota.

Todos mortos, todos dentro de um desconhecido, uma voz confusa

De multidão, de cheiros húmidos que se misturam com a pele triste e amarela

Vazia de desejos, falange do corpo da humanidade até ele,

O único com tacto possível, nesta hora de fim dos tempos, que é sempre até um acabar.



06.10.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva




Força


Dei-me conta, lá do fundo de um negro mal-estar,

Além das vísceras gastas pelas engrenagens do tempo,

Da dor de cabeça de uma noite tão inútil e deprimente,

De um dia cinzento mal gasto em sonhos de traição contida,

Que se me calar de vez, se deixar de ser, simplesmente como antes de ter sido,

Não haverá ninguém que note o súbito silêncio,

Ninguém dirá no escuro o meu nome esperando uma resposta,

Ninguém terá notado que eu passei, quis tocar,

Mesmo que tenha tocado tanto o interior de alguns corpos

Que logo arrefecem do meu calor e eu morro.

Quando estiver frio, os corpos quentes não se darão conta

Da ausência e essa é a pior morte.

O cansaço chame-me para apagar os dias

Mas a força desta dor impede-me de escrever a carta suicida,

Quando os anos já vão além do esperado

Porque nunca esperei muito de mim, nem anos de mim,

Sentado nesta cadeira, de onde vejo que está tudo feito.

Epifania como uma ejaculação de bílis no fundo de uma garganta queimada

Por horas de cigarros de tédio.



06.10.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva

segunda-feira, 4 de outubro de 2010



Heróis


aos esquecidos que por cá andam


Tantos segundos passaram que já nem se dá conta da batida dos ponteiros,

Até a passagem dos dias pouco se sente, não fosse o arrefecer e os tons rosa e cinzentos

Com que o céu ameaça a despedida do Sol, já afogado além dos montes longínquos

A uma distância desprezível para quem já percorreu anos e já conquistou rugas.

Tão longe ficou o caminho até Goa, passando por Cairo, Beirute e o regresso de Nice a Lisboa,

De avião, como se uma devolução apressada, hoje na despedida do dia,

Um que ouça, porque as árvores que tombam numa floresta sem ouvidos

Nunca caem de verdade. As tardes que só a enxada acompanha enquanto a terra se abre,

Abrindo-se as memórias quase pesadelos, enquanto o suor escorre pelas pregas dos anos.

Heróis anónimos, esquecidos no mundo esquecido pelos putos de cabelos brancos e gravata,

Pelos putos que são o país, que dizem ser o país, que só por ele alguns lutaram,

Tombados e ignorados, no limbo entre a queda e o embate no chão duro da realidade.

Agora adormecem com um medo ébrio à porta dos cafés que lhes apagam a dor

Do passado, num presente calejado, curtido pelo Sol dos dias. A roupa de Inverno é a de Verão,

Porque o Verão ficou naquelas terras de longe, onde a terra era de outra cor,

Onde até as vacas eram diferentes. O Verão ficou com a parte da alma que lhes arrancaram

E hoje os putos… riem-se dos náufragos, dos heróis das histórias desconhecidas

Que só eles guardam, lá no fundo, nas florestas de plantas estranhas,

Com febres de doenças impossíveis neste lado dos montes.

Beirute é bonito, aquilo é bonito, com os olhos antes da guerra civil,

Passei por lá noutra vida, quando ia a caminho da guerra, numa das três colónias da Índia.

Regressa, sozinho enquanto o dia se despede, com menos anos pela frente,

Com os filhos num país mais pequeno, dizem que melhor:

Como não pode não ser melhor, se não arrancou pedaços de gente à gente a troco do esquecimento?

Aqueles dias tão claros, hoje, quando se confunde uma rapariga que nem é desconhecida com a neta.

Vive-se tanto, para no fim o dia acabar e mais uma manhã num mundo que não se lembra

Da dor, do medo, dos cortes no corpo e na alma, que não nos lê a pele maltratada,

Ou além da pele que antes com outro brilho, não fosse o peso dos anos,

Que a puxa para baixo, onde muitos já não vivem. Passa-se por tanto por tão pouco,

Mas deus é justo e a missa do Domingo é a única esperança, agora que já ninguém se lembra

Que eu fui muito mais que um velhinho de enxada às costas, que fui o país,

Enquanto o dia se despede em tons quentes e frios, de fim e início.


04.10.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva