segunda-feira, 29 de novembro de 2010



Saari


à filha de Louhi, donzela de Pohjala


A primeira vez que te vi foi a última em que chorei

E tudo o resto de ti será meu, um sonho, uma ilusão sem pernas,

Um engano que cresce e me ocupa o espaço do teu vazio.

A minha casa tornou-se um cofre ferrugento

Onde escondo o coração podre pelos anos que lhe foram arrancados,

Para lá chegar um lago frio e um barco velho e amaldiçoado,

Só desconhecidos se interessam pela visão fantasmagórica de um perdido.

Os sonhos são o que me resta das memórias que tentam outras realidades

Até a manhã fria vir a acariciar-me com a sua mão solitária de morte.

No final, nada interessa, o início um fim que se prolonga até nada,

O chão salgado na hora da partida e no ar um silêncio perdido,

Um não vás, suspenso, um para sempre mentido de todas as vezes

Que o coração conta menos um, menos um e o relógio concorda.

Se um momento é perfeito e valeu a pena,

O horizonte onde se respira, longe, o corpo um milhão de cores,

A terra toda e o corpo mergulhado ao nosso lado a sorrir, sincero,

Sabes que o fim irá trazer a dor do vácuo contra o miocárdio,

Que suga para o nada, buraco negro em miniatura.

A bicicleta leva-te e o vento traz-me a dor do teu perfume longínquo,

O teu cabelo esquecido na minha camisa de cor cansada,

Que guardo dentro de um livro de poemas do Bukowski,

Até me esqueceres, até o teu corpo acolher o esquecimento de uma ejaculação

Estranha e que me trespassará a honra, mesmo sabendo que acabei

E que nunca usei antes tal palavra inútil nestes dias.

Mil vezes perdi e tão poucas me sentei à sombra dos dias quentes,

Mil quilómetros de mão no ar a dizer adeus, nunca sentindo a despedida como certa,

Até à primeira vez em que te vi, olhar nos meus olhos, tornares-te distante,

Estranha, menos verde, mais memória de um Verão de luz doce

Que a chuva turva na hora de trancar o cofre e fingir que a vida continua.



29.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

quarta-feira, 24 de novembro de 2010



Liberdade Em Helsínquia


Acordo numa manhã cinzenta e fria de Outubro,

Já Outubro, num quarto vazio de um hostel barato em Helsínquia,

O Báltico sente-se e a humidade dói quando há solidão.

Duas camas e eu a respirar sozinho, cansado, rei de um mundo sem gente,

Na parede o poster de uma multidão de mil novecentos e noventa, perto desta rua

E eu tão longe, longe de imaginar acordar aqui, hoje.

O jantar soube-me a pouco e sinceramente o apetite do resto era pouco,

Nem os olhos azuis da hospedeira me despertaram do cinzento,

Não desta vez, desta vez nem um hálito a álcool ao meu lado,

Púbicos nem tocá-los, cara de anjo e gritos de diabo no corpo,

Noutro hotel, há meia-vida atrás.

Fascinou-me o par do espelho, ela vinte e poucos, magra, bem metida nas roupas,

Quase que comia sobremesa, ele com uns trinta acima dela, desleixado,

Com uma carteira farta, parecendo um dos muitos de uma pequena terra qualquer do sul:

Russos e nem tenho que os ouvir. Ele paga e sobem os dois.

Não compreendo por que desta vez engulo a comida em seco, sem vontade.

Acordar sozinho, numa manhã tão fria, com fome e longe de tudo em Outubro,

Sem uma dor de cabeça, sem alguém à espera, a pensar em mil novecentos e noventa

Num dos meses de Verão, longe disto tudo, quase que sabe a liberdade,

Aquela da infância que se esqueceu.



24.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva



Dor Fantasma


Porque será que dói quando se perde alguém para sempre,

Mesmo que a morte não esteja na eternidade?

Vejo uma grande parte de mim entrar numa distância que me será impossível,

Depois de tanto tempo, tanta paciência e tantos gritos de punhos na mesa,

Tantas lágrimas embriagadas, tanta birra e tanto problema resolvido

Num orgasmo prolongado, nos lençóis com cheiro a detergente da roupa barato,

Vejo um membro amputado que não tinha manifestação no meu corpo.

Afinal sou além de mim e aquele corpo, aquele cérebro, foi meu e perdi-o,

Necrosou com o silêncio, o desprezo, o esquecimento por alguém que se julga melhor,

Sempre melhor o que fora de nós, a vida dos outros, só por não sentirmos as dores alheias.

Dói como um suicídio arrependido, uma amostra de morte, quando a porta se fecha

E se deixam correr as lágrimas livremente, nunca chegarão lá, inúteis,

Sempre inúteis, os sentimentos líquidos que escorrem

Quando o corpo não percebe a separação que a mente vomita angustiada, culpada.

Quem quer viver para sempre, se a maior dor é a da eternidade?



24.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

segunda-feira, 22 de novembro de 2010



“The Kids Aren´t Alright”


Treze ou catorze, menos (quem sabe?), a nova geração,

Sabem já tudo, nasceram ensinados, não querem saber, a vida é deles.

Ao sol, com terra nas unhas, a espiar de longe as netas da vizinha,

Na esperança de um olhar ou de um olá, um primeiro beijo no verão,

Atrás de uma carrinha encostada a um muro,

Com os amigos à espera para perguntarem como foi,

Acho que comeu cebola, de resto o coração inchou e parecia explodir.

Treze ou catorze anos e um táxi para a perdição,

Alguém que abriu, que lhe mostrou e gostou,

Os pais não têm nada a ver, eles fizeram o mesmo ou pior,

Já tenho pêlos, já rapo os pêlos, sinto uma vontade quando passam suados de jogar à bola,

Quero-os dentro de mim, treze ou doze (quem sabe?)

E até me dá haxixe, nos bancos de trás do carro dele,

Depois de termos ofegado bastante, depois de o ter engolido

E de ele me ter chamado puta: gosto que me chame putinha.

As unhas cheias de terra, de sol, suado de correr pelos montes,

Comer batatas fritas em cima de uma rocha, beber uma Coca-Cola de lata

E regressar antes da hora do jantar com o irmão de outros pais. Perdem-se todos.

As minhas tetinhas, bem gostosas, a circular nos bolsos de quem quiser ver,

Sou como a filha dos donos dos hotéis, apesar de não valer uma merda,

De ser um projecto de gente de catorze ou onze anos, de ter mais dentro

Da minha excitação húmida que dentro do crânio, sopram-me no ouvido

E dá impressão de uma garrafa vazia, mas deve ser uma fase,

É da idade. Embebedo-me e deve ser por isso,

Mas depois vomito e fico bem, conduzo o carro do meu novo namorado,

Enquanto ele me está entre as pernas e morremos os dois,

Já sabíamos tudo, éramos deuses, agora para sempre, nunca mais.

Devo ser um grande bandido, escondo a revista de mulheres nuas,

As páginas já se colam e na próxima semana já tenho que a entregar

Ao próximo, vou para o inferno, é certo, mas rezo uns Pais-Nossos e finjo-me arrependido,

Debaixo das cartas das amigas do Sul (devem vir no Natal),

Gosto de uma delas, mas ela só quer andar com os grandes: já fumam.

Engravidei, os meus pais que paguem o aborto se quiserem,

Ou então a minha mãe terá que criar outro garoto,

Que eu ainda sou muito nova para aturar berros, sou eu que berro e gemo e grito,

Com o que vier e me der uma importância que não tenho: olhem para mim!

Às onze e meia em casa e cem escudos para uma Coca-Cola,

Obrigado, até logo, vou ter com o… e o… vamos até…

Subo para a mota e sei que vamos até ao monte dar umas, eu aguento,

Gosto que abusem, já não sou nenhuma garota, tenho treze ou por aí,

Já me agarram as mamas com a mão cheia, tenho umas ancas que eles adoram olhar,

Passar a mão, apertar contra a coisa deles, sou uma deusa, todos me conhecem:

O teu mundo pequeno. Afinal, quem me fez santo? O paramento não.

“The Kids Aren´t Alright” na cassete dos The Offspring e eu sem perceber bem

O que a letra diz, até alguém me arranjar o texto escrito à mão com caneta verde,

Afinal a coisa está mal, mas nós somos diferentes, viveremos para sempre,

Somos novos, só temos treze ou catorze anos, faz parte,

O futuro virá e trará sonhos além dos que vivemos acordados,

Sonhos grandes que as nossas mãos omnipotentes enrolam, metem, carregam, clicam,

Puxam, viram, matam… somos o resultado do que comemos todos os dias.



22.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

sábado, 20 de novembro de 2010



“Mind The Gap” (No Metro 2)


Entram e saem na Babel metálica que atravessa o submundo,

Olham-se e esquecem-se no momento em que se dão conta da cor dos olhos,

Ouvem-se e estranham-se, pés à cabeça, cabeça aos pés e nunca mais,

As portas abrem-se para os túneis do formigueiro até à superfície e adeus.

O senhor com a companhia do jornal nos joelhos a olhar os jovens

À sua frente, cheios do que antes foi dele, não os inveja,

Sente saudades dele mesmo, um que perdeu e aperta o guarda-chuva

Com uma felicidade triste, longe, num mundo só dele, mais pequeno.

Uns correm, empurram-se, nunca chegarão a tempo,

Temem as horas marcadas, limites fictícios, quando só há um

E é o mesmo para todos e é certo e inevitável, abrem-se as portas e engolem-se

Mais uns quantos para a superfície, outros entram vindos de não sei onde,

Para não sei que estação, por não sei que razão, andamento, não param,

Nem se sentam, mesmo quando a hora não deixa, e obrigam a uma proximidade distante.

Encostam a braguilha, roçam as virilhas uns nos outros, orgias enlatadas,

Desconhecidos com vontade de desconhecidos, estranham-se e querem-se.

Abre-se mais uma vez e eu não sei ao certo se vou na linha certa,

Avisam “Mind The Gap”, não vou sair aqui, acho que ainda não é a minha estação,

Vejo, sou olhos para a vida, sou os olhos nesta Babel de milhões de corpos.

Olham discretos, bem vestidos os que querem só o que os teus bolsos levam.

“Mind The Gap”, ninguém ouve, ninguém ouve de verdade.

Alguém chora enquanto olha o vazio de fora, as luzes pequenas, uma linha,

Uma linha que se cortou, outra vida morta nesta, as portas abrem-se,

Leva as mãos aos olhos, enxuga as lágrimas, levanta-se, sai e deixa no rasto a tristeza,

Perdeu algo, perdeu-se um pouco, a vida é perder até ao limite, até não se poder mais.

Sei que no fim isto irá vazio, metro vazio, pelas tripas da cidade morta,

Até ao infinito, fantasmas de mil línguas, mil cores, mil dores,

Atravessando o vazio em direcção a um nada que os preenche, ou não.

Tantos de pé a ler, um sonho dentro de um sonho na cabeça de alguém,

Mas nem tanto, um mundo que entra e se constrói.

A mim chega-me a poesia dura disto tudo, o suor azedo de quem se senta ao meu lado,

Veio a correr, morrerá deitado, cansado, vazio e amargurado,

O cheiro que me trinca o lábio inferior de umas leggings pretas, param, de pé,

À frente da minha vontade hoje triste pela dor do mundo que entra e sai,

Francês, oui, je t´aime e há mentiras que sabem tão bem quando só o corpo fala.

“Mind The Gap”, ninguém vê, ninguém vê de verdade.

Todos passam, olham o que estará à espera, dentro de uns minutos,

Umas horas, nunca o verão, os olhos são para agora, aqui, esta multidão perdida

Nas entranhas escuras e tristes, cabos eléctricos, quantos mortos em cima,

Quantos anos de fracasso e desilusões nuns metros cúbicos de metal em movimento

E “Mind The Gap”, mas haverá mesmo, nesta Babel onde todos falam uma língua comum,

Onde todos correm, e se sentem, nem que seja por um momento,

Corações acelerados, cansados, adormecidos, feridos, congelados, partidos,

Todos com um. Às vezes, pára um e fica até ao fim da linha, não acorda,

Não saiu pelas suas pernas, ficou e a eternidade já o esperava há muito.

Alguém come, alguém tem fome, ainda não teve tempo, ainda não arranjou trabalho,

Ainda não pagou a renda, ainda não perdeu os dez quilos para caber nas tais calças,

Ainda é cedo. Alguém grita que deus é grande e tarde demais.

“Mind The Gap” e não consigo perceber onde, até gosto do cheiro azedo,

Gosto da tristeza, dos sorrisos solitários, quase loucos, dos olhares penetrantes,

Verdes, azuis, castanhos, pretos, pérolas que escondem línguas doces,

Sovacos quentes por baixo de braços obesos, caras tapadas pupilas dilatadas,

Guarda-chuvas com cheiro a cão molhado, gente com cheiro a guarda-chuvas,

Italianos a quebrar o silêncio, o doce perfume da Babel horizontal.

Mais uma vida que acaba, “Mind The Gap” e olho para o chão,

Antes de sair, de mais um fim, para um início com eternidade falsamente prometida.



20.11.2010

Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

terça-feira, 16 de novembro de 2010



Savana Urbana


Anoitece e o cheiro dos cadáveres chama ao risco

Nas ruas quase abandonadas e as hienas farejam,

Os abutres circundam os passeios, os becos, antes que tudo se decomponha

E desapareça, a vida, a miséria essencial,

Para o dia amanhecer limpo e bonito,

Como se ali não tivesse havido antes vida, novo, falso, fachada.

Levantam as tampas dos caixotes, algo que ainda se coma, já é tarde,

Empurram papelões de caixotes de coisas com que nunca sonharam,

Cujo preço lhe dava para viverem até ao fim do ano sem fome,

Sem frio, com um sorriso de vez em quando,

Pobres necrófagos, transparentes à luz do dia.

Isso é meu, estranhamente dito, como se houvesse algo de alguém,

Mesmo assim há quem tenha a vida de outros.

Passa um Mercedes SLK 55 AMG negro e também transparente para eles,

Com as mãos lá fundo no lixo perto de um restaurante de uma cadeia multinacional.

Os ratos morreram na selva de pedras amontoadas,

Agora só gente e a sua peste negra por dentro, a matar aos poucos,

A escurecer o coração, escoar a esperança.

As unhas sujas escavam no passeio em busca de uma ponta de cigarro

Para a dor da cabeça do fim de um dia de fome,

Sorte ter havido alguém apressado para apanhar o autocarro para os seus trabalhos,

Quem lhe dera, quem me dera, a quem lhe dera.

Olhem para isto, estes gajos são mesmo burros,

Vamos antes que comece a chover, depois não serve e não se aquece,

Não interessa se ainda há leões por ali,

A entrar em bares e clubes nocturnos em busca de uma carne cheirosa,

Cinquenta mililitros a sessenta e três euros e noventa cêntimos,

Para abusar, fazer suar, gemer, cuspir, ejacular,

Fazer escorrer pelas pernas o cheiro a sexo bruto, clisteres,

Defecar em tetas perfeitas de seis mil e quinhentos euros,

Levar na cara a urina de uma desconhecida, uma puta ou uma vaca rica,

Outros como cães nos becos,

Menos selvagens, mal cheirosos, sujos, doentes por fora.

Passam e sorriem, as leoas vestidas com pele de bisonte,

Vacas de leite seco, cheias de engolirem leite de velhos de números grandes.

As estrelas não escolhem a quem se mostrar,

Deixam-se ver e pronto, para quem quiser e tiver tempo,

As hienas olham, quando a noite está quente e seca,

Deitados sobre os cadáveres do consumo, umas vezes de barriga cheia,

Outras vezes cheias de vazio e mesmo assim,

Conseguem espremer umas gotas às cascas de laranja

E dar alguma doçura à vida,

Mesmo que ela só brilhe dentro das casas fartas,

Mesmo que só quando passa um carro invisível, com gente cega lá dentro.



16.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva


segunda-feira, 15 de novembro de 2010



Kurt Cobain


Passo a língua na mão suja e está salgada,

Sinto as veias esponjosas, tubos horríveis,

Teias pelo corpo até ao fim,

Ramos em direcção ao céu,

Punhos de seis dedos amputados

E o som estridente de uma guitarra eléctrica

Que se apaga na rua húmida e verde triste.

O peso cresce sempre, os ossos cedem uns atrás aos outros,

Arames finos numa estrutura cada vez maior e tão quase vazia dentro,

Cheia de uma luz amarga que todos querem nas suas noites pequenas.

A camisa vermelha de flanela de cores cansadas,

Cortada como se fosse carne por vingança à morte,

Ao chumbo e miolos espalhados na parede suja e uma carta exausta.

Tenho uma arma: é a minha mão,

A minha voz silenciosa numa noite tão apertada,

Uma veia fina além da pele salgada e suja que sou eu,

O gatilho metálico, frio e o sabor adivinhado do sangue gelado e sólido

Na boca antes da explosão de matéria negra

E o mergulho para a eternidade redentora.



15.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva



Pequeno-Almoço Tardio


Quer comprar esta revista, ou pelo menos dê-me algum, estou esfomeado

E eu pergunto-me, onde terás deixado a vida, amigo.

Deixaste cair a alma pelos rasgões na tua casaca de poliéster,

Envenenaste o espírito com pequenas agulhas, chupaste-te até te perderes,

Perdeste a vontade de fazer a barba pelo menos de três em três dias,

Deixaste de poder tomar banho, a família não quer ouvir falar de ti,

As portas fecharam-se todas, é isso amigo?

Sei que a tua fome é outra mas levo a mão ao bolso, porque ainda é cedo,

Cedo para ti, é sempre cedo para perder um pedaço de nós, grande ou pequeno

E dói sempre se não há o que nos anestesie o processo.

Também passei meses bêbado, também tive fome porque a ressaca,

Sabes bem o que é a ressaca, estás incapaz de comer neste momento.

Sabes que também tentei esquecer, tanto que os outros é que acabaram por me esquecer

E agora ainda tenho uns trocos para ti, amigo.

Leva a tua revista, descansa a dor numa imagem que te agrade, encontra respostas

Em palavras insuspeitas, um sentido numa frase aparentemente inócua,

Enche o forro do casaco se vier frio, que o papel ajuda.

Não te mintas, porque estás perdido se também deixares de acreditar em ti.

O mundo encostou-te a um canto, estás só, mas levo-te comigo, sujo, loiro e sujo,

Olhar perdido de quem só procura a redenção do aniquilamento,

Andar andrajoso, cansado da vida e do mundo que ela carrega. Não é amigo?

Também te prometeram que ia ser fácil, que é uma brincadeira,

Que terás sempre uma mão, um bom dia pela manhã, um beijo pela noite

E uns braços que te aconchegam nas noites frias? O mundo é uma grande mentira

E só a fome que dizes sentir é verdade neste momento, eu sei amigo.

O pior não é ser abandonado, o pior mesmo é abandonar,

Abrir as mãos, ficar livre e vazio e com o peso todo e escuro,

Sem olhos para além de uns meros passos, porque o momento também já passou.

Toma lá estes trocos e dá-me um momento de paz, fazer a diferença,

Seja ela qual for, porque me tenho sentido tão inútil, tão pequeno, tão só e incapaz.

Tenho-me sentido tão sujo por dentro, passo horas no banho,

Deixo que a barba me esconda, não visito a família, eles sentem a minha falta

Mesmo quando estou, sou o fantasma da vida que me morreu.

Quantas vezes se pode morrer, amigo, antes da última vez?

Uma não é? Depois é uma vida de morto-vivo, de cemitério andante,

Navio fantasma condenado à eternidade do que o corpo nos deixar.

Boa sorte amigo, que a vida te sorria, ou pelo menos dias de Sol no Inverno que atravessas.



15.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva



O Violinista Da Bond Street Station


Tocava música celta, que subia até ao primeiro passo nos túneis do submundo.

As toupeiras passam cegas, apressadas, desligadas até chegarem.

Será que chegarão lá de verdade?

Tocava as cordas do violino com uma dor que se entranha nas fibras tristes

De um coração violado pelo tempo e pela distância, a metros do chão onde caminham mortos.

Vem-me de longe, sempre, além do mar, dos vales verdes, das montanhas viúvas de ângulos agudos,

De ovelhas, outras, porque aqui não é Irlanda e sou da terra de poetas tristes, todos mortos,

Os realmente poetas.

A vida é dura e serve para arranjar uns cobres para se continuar na sua agressão,

Nas noites frias, nas manhãs solitárias de café frio e uma fome que mal deixou dormir,

Pegar no violino e esperar que haja gente com moedas a mais no bolso.

Os gatos têm que comer e um dia os filhos virão fazer uma visita

E é para isso que faz falta o dinheiro.

Chora o violino na esperança de uma chuva metálica e a tinta deixa-se ficar onde a mão passou.

Passam e fica em alguns, outros vão no seu inferno interior,

Incapazes de inspirar um pouco de verde no ar pesado e monóxido,

Fica apesar de faltar um nome, o violinista da Bond Street Station.



15.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

domingo, 14 de novembro de 2010



Partida


Que dirias tu Bukowski, ao ver-me chorar quando ela parte?

Bebe uma cerveja e deixa que já choras, à noite,

Quando tiveres um tesão irracional por causa das ancas

Com quem te foste cruzando pelo dia fora.

Do que valem umas pupilas sempre dilatadas

Que penetram pela vontade da tua penetração,

Se no fim não existe um suspiro sincero que venha do peito?

Só a humidade entre as pernas murmura

E gritos exagerados de quem é pago com carne dentro.

O braço esquerdo dói e deviam ser lágrimas,

As que se engoliram, tantas em jorros quentes

Entre dentes brancos e mentirosos de sorrisos imaginários.

Abre-se a mão há tanto tempo fechada e afinal estava vazia.



12.10.2010


Londres


João Bosco da Silva



Retrete Em Gaiola De Ouro


Zombies sorridentes no Harrods atiram milho aos pombos,

Depenam-nos, pavões que podem exibir-se entre nós.

Labirinto de ar infectado por aromas estranhos e violentos,

Lábios vermelhos como que uma excitação armadilhada de dentes falsos

E no fim o que interessa é que a carteira tenha muito e saia vazia.

Não pertences aqui, dizem-me no fundo, como se o meu tamanho

Fosse um número que decresce mais que o desejado,

Um número que me permitisse a vida,

Quando ela é simples e de números incertos e pequenos.

Sabe melhor deixar os dejectos que são mais gente entre cheiros conspirativos

Que olhares ao lado da virilha.



11.10.2010


Londres


João Bosco da Silva



Earl´s Court


Ainda se ouvem os cavalos arrastando as carroças pelas ruas

Ou é só uma memória de há uns dias que se difunde,

O aroma do chá inglês às dez horas da noite num copo cheio de Young´s Gold,

Afinal quase vazio o dia, enquanto alguém debaixo de um cobertor com motivos escoceses,

Pede uns trocos por favor, tudo por favor, já ninguém faz nada sem favor aqui.

Psiquiatras ficaram com a sua religião segura, convencidos de que comer sobremesa

Os faz mais doces, dentro do esperado normal.

Bebo uma cerveja e chamo-lhe jantar enquanto os copos cintilam e faíscam

Entre amigos de olhos vermelhos e brilhantes.

Dava-lhe bem à franginhas, nesta noite quase solitária entre ingleses e pouco ingleses,

Como à escocesa de uma vida que estes esqueceram assim que me viram.

Pieces of eight compram tudo menos uma cerveja no inferno,

Nem castanheiros para lá ir dormir numa noite de chuva e vento.



09.11.2010


Londres


João Bosco da Silva



Passagem


Rosas amarelas, cabras loiras de andar apertado e dissimulado,

Cansadas da humidade presa e só os olhos saltam

Às braguilhas pesadas que os pés chocalham.

Cheira a leite azedo nas esquinas e há muitas,

Luzes que brilham dentro, apagadas almas, desmaiadas cores pelos passeios.

A gasolina não apaga a fome de sapatos a pisar, pisam éguas como cabras,

Vermelho o nariz do tinto, varrem e deixam ficar tudo.

Saudades serão nada quando tudo areia e esquecimento

Além da complexidade de todas velas que arderam.



09.11.2010


Londres


João Bosco da Silva



Porquê?


Aqui deve viver alguém muito grande, diria um eu que fui ao ver o Palácio de Buckingham,

E deve ter muito medo e ser ao mesmo tempo muito mau.

Deve ter muitos amigos para estar tanta gente à chuva a olhar para a sua casa grande,

Inocentemente, como os que não sabem bem o que esperam e afinal

Há burros de todas as nacionalidades a olhar para palácios enquanto a falange da lei

Em cima de um pobre cavalo que também não percebe bem, mas já se resignou há muito.

Expliquem aos eus que foram, para que servem as casas grandes,

Se há gente do tamanho das outras a viver em passadeiras subterrâneas

E a dormir em cartões molhados pelos peões distraídos de passos apressados.

Tantas janelas, e que grandes janelas, para mãos tão pequenas lavarem.

Será que é o gigante que faz os trabalhos lá de casa?

De onde terá vindo tal pessoa, das memórias de um conto qualquer antes de adormecer?



09.11.2010


Londres


João Bosco da Silva



Um Poema Para Levar


As pirâmides já não interessam porque os deuses morreram e a língua deles também.

Hoje se nevar é porque a felicidade existirá em flocos lentos e frios, brancos e puros.

Partem os barcos sem velas em busca de se encontrarem

Algures no deserto, mas as mãos cansadas e gretadas, pesadas dos calos do trabalho,

Caiem no colo resignado junto de uma lareira apagada.

Onde estive, por onde andei, o que fiz de mim?

Pergunta a lenha que crepita no fim de uma noite pagã.

Fui moda, fui grande, cheguei longe e agora aqui, isto e velho.

As luzes quase apagadas no meio da escuridão de uma noite solitária.

Só não há noites solitárias quando se está em alguém,

Se sente o ouvido de alguém sobre o peito

E o coração a contar-lhe o segredo de estarmos vivos.

Os deuses morreram, ficaram os monumentos que não interessam,

Só a gente e ignoram-se, passam e nem se deixam ser nos outros.

Anos e anos a viver na mesma rua sem se conhecer as linhas das mãos

E a morte já é certa ainda antes de os olhos nos chorarem pela primeira vez.



08.11.2010


Londres


João Bosco da Silva



Taylor Walker


Since 1730


Tudo me parece igual e sabe a fome

Às treze numa cidade desconhecida, tão conhecida.

A velhinha de cabelo invariavelmente branco deixa no marco vermelho

Um pouco de saudades e chove dentro da gente.

Aqui também são os melhores do Mundo.

Quem não o é? Quantos génios e não génios e gente que faz o mundo,

Atravessaram e atravessam a rua além deste vidro,

Quase eu, um restaurante numa esquina de uma rua qualquer,

Numa cidade igual a todas as outras.

A loira bebe o seu café de pé à espera do autocarro e olha-me azul,

Eu respondo-lhe com um verde melancólico.

Afinal nunca cá tinha estado e não sinto o sorriso que o ébrio leva.

Pede-se um copo já morto e a vida toda nele que se bebe

E a razão disto é cada golo fresco.

A vida é ter sede, mas o que fazer quando cada trago sabe ao mesmo?

Os muros são feitos de paciência e hoje morrerão tantos aqui.

Acende-se mentalmente um cigarro enquanto o prato não vem,

Para me distrair das línguas que tento adivinhar de que lugar,

De que gentes iguais neste canto do mundo onde eu estou sempre,

Mesmo que seja a primeira vez.

Que estaria Byron a fazer a esta hora num dia como os outros?

O chão é sempre sujo se os olhos caminham atrás de cada passo,

A gente é sempre feia se for vista de demasiado perto

E eu estarei condenado a este restaurante, a ver o Mundo sempre o mesmo,

Desta janela que me diz “Sunday Roasts Served Traditionally Every Sunday from 12-10”,

Tão baixo que quase não ouço quando passam umas calças pretas

Que me despertam a alma fálica.

São sempre as mesmas e entra-se sempre, é uma questão de distância

E a gente passa ao lado além deste vidro.

Eu sentado como um deus impotente, o único possível em todo lado.

Passaria por aqui Rimbaud, tão grande e jovem a iluminar

A escuridão das ruas do passado que ainda estão?

Apago as palavras que a rua espera mais um.



08.11.2010


Londres


João Bosco da Silva



Insustentável


Os segundos,

Os quilómetros,

As gentes,

As cidades

Acumulam-se no esqueleto simples de

Oliveira,

Castanheiro e

Videira.

O granito pesa e

O xisto já não deixa escrever.

O café não tem o sabor salgado

Do suor de quem o colheu,

O vinho não cheira a Setembro,

Não tão longe,

Não depois de tanto tempo

Em cima.

Quantas vezes mais

Terá que crescer o rio?

Secará a nascente

No próximo Verão?

É bom estar tão longe

Dos ossos,

Não se sente tão bem

A carne dura

Da alma verdadeira,

Que também morre.

Quanto mais?



08.11.2010.


Londres


João Bosco da Silva