domingo, 24 de janeiro de 2010


Ausência Presente

a ti na Rua da Boavista


Hoje dei-me conta que tu não estavas.
Olhei para lá do que via e tu não estavas.
Longe no espaço, distante no tempo,
Presente só a tua ausência.
Senti o recorte na minha alma com a tua forma
E tu, longe de mim, do meu corpo que não te sente.
És uma ausência que dói como uma morte que sinto,
Um sonho fracassado porque o espaço levou o tempo,
És frio porque o teu corpo deixou de me aquecer,
Aquecer com a tua presença marcada pelo teu olhar no ar,
O ar que foi nosso e partilhamos e ambos respiramos,
Dentro de mim e de ti, hoje frio, sem a luz dos teus cabelos.
Hoje vi-me só entre eles, porque tu nenhum e tudo.
Tivesse eu dito que sim ao que a vontade de ti me pedia...
Tivesse eu ido ao café onde não me esperavas,
Porque eu um cobarde sempre como o não é cobarde...
Hoje lancei mão ao vazio a pensar que tu em vez do vazio de ti.
Perdi-te, deixei que te transformasses numa ideia com nome.
Deixei que vivesses tempo demasiado na minha memória
E agora és só passado de um futuro onde não te vejo,
Onde te quero, um futuro que não quero.
Se o caminho não ficasse no nada depois de ser caminhado,
Voltava atrás, voltava ao nada se possível.
Porque não me disseste que eras minha,
Que eras a minha e que afinal há alma na gente?

24.01.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

Se

Se conseguisse lavar os meus pecados com palavras inúteis
E pudesse continuar a chamar poesia a isto,
A isto que não toca nem uma gota da sombra do abismo,
Onde a alma não ocupa espaço nenhum e aí vive.
Se conseguisse tocar a ignorância dos outros com a ignorância de mim mesmo,
Porque os fascino com tanta confusão ao dizer o meu nome,
Que ficam a olhar para mim a pensar que eu tanta coisa e eu...
Nem um nome, nem coisa nenhuma a não ser...
A não ser um pedaço de quase nada que se vai
Na ilusão de uma luz que não se sabe se chegou a ver-se,
Ao longe, lá onde a escuridão habita no horizonte das noites solitárias.
Se ao menos eu um nome, nascido de um nome,
Sem ter que criar nada à minha volta para impedir o vento de me derrubar,
Sempre a derrubar-me, sempre a impedir-me que tente,
Porque nem eu gosto de ser um derrotado,
Mesmo que o seja, derrotado adiado.
Se ao menos as fibras do meu coração fossem capazes de uma música
Que não lembre que um dia o silêncio, eternamente o silêncio,
Se ao menos o ar ficasse com o meu cheiro depois de eu expirar,
Se ao menos não fosse tão menos, quase nada, para que isto não fosse tão ridículo.
Se ao menos chamas neste inferno e outra dor menos real,
A consciência de que o pecado levou a isto,
Mas o que levou a isto que é pior que o sono eterno,
Antes de se conhecer que depois sono eterno, outra vez,
Só para provocar as pobres pedras que falam quando o vento passa.
Se ao menos o fim fosse tão fácil como uma palavra...

23.01.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

A Cerveja

Em casa dos meus avós
A cerveja sabe sempre melhor!
Sabe à cerveja às escondidas
Com os meus primos,
Mesmo sem o açucar.
Sabe às primeiras antes do excesso,
Como a vida sabia antes dos anos a mais.
Tem o sabor verdadeiro,
Sem a intenção de esconder a dor de hoje.
Sabe a lombo assado na brasa
Com batatas arrancadas da terra
Pelas mãos nodosas do meu avô,
Regadas com ouro do esforço do ano que passou.

Eu ainda à volta da mesa,
Mais baixo que ela,
Nos olhos da minha avó.

A mim tudo isto me parece gratuíto,
Seguro, garantido, como a garrafa que aperto na mão...
Até a uma caixa de madeira de pinheiro,
Ou de cerejeira, de onde caí,
De onde cai a garrafa e se estilhaça no chão,
Com a ilusão de o que sempre foi, será para a eternidade.

20.01.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

Casa

Tanta expectativa nos alicerces,
Ainda a poucos metros do chão!
Tanta festa quando terminada a placa,
Com metade do trabalho ainda por fazer!
Tanta ilusão e depois a casa uma merda!
Os quartos vazios e frios,
Onde vida, só a do mofo das paredes
E a do bafo da saudade de quem lá entra
Para inspirar o passado de quem lá não está.
A mobília que se foi acumulando,
Deixando de fazer sentido,
Acumulando-se estilos, cores e materiais,
Que ninguém vê.
As paredes começam a ser sulcadas por fendas,
As primeiras infiltrações inesperadas
E a culpa dos vizinhos, sempre dos vizinhos, sempre dos outros.
Os armários demasiado grandes nos quartos pequenos,
Sempre de tamanho insuficiente para o muito lixo que se acumula:
A roupa de Inverno de quem já não está no Inverno,
À espera;
Os brinquedos que não se chegaram a partir
Da criança que partiu para um interior fundo e escuro, além do tempo.
O eco das vozes nos dias de festa,
Longe, no tempo das paredes rebocadas a secar.
As paredes agora mudas,
Confidentes fiéis dos momentos que morreram.
As camas frias esperam quem partiu,
Ignorando que quem partiu não é quem voltará,
Ignorando tudo, porque já não range a madeira dos corpos juntos.
A lareira mais só com o olhar de quem espera que as chamas aqueçam por dentro,
À espera que seja hora.
A mesa que hoje nunca se usa,
Porque não há quem a vista de vida.
Domingo deixou de ser o dia dos paralelos até ao adro da Igreja,
Em família, até ao regresso ao almoço de domingo,
Domingo passou a ser o dormir até não se poder esconder mais.
A casa mais só, porque existe a solidão de quem a pode sentir vazia.
Tanta expectativa nos alicerces...
Cresce e sente a derrota do tempo!

20.01.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

S

Como um copo de vinho apressado,
Contra o estômago vazio de gente.
Fome de gente quando a casa deixa de estar só.
Fome de mim e dos outros que me povoam.
Como um baque seco de alguém que morre subitamente
Contra o pó vazio que se levanta.
Fome de presença na presença.
Fome de ignorar os segundos que o relógio come.
Como uma presença vazia
Contra a nossa existência vaga.
Fome de não ter que lembrar porque presente.
Como um amigo que se inverte
Contra a nossa vontade impotente.

Sei que passa.
Sei que é pela presença da ausência.
Sei que é por estar condenado a mim,
Como o esquecimento de mim
Contra tudo o que aparentemente construo.

22.12.2009

Savonlinna

João Bosco da Silva

Árvore de Natal

ao que está Longe.

Galhos como veias negras que se perdem
No vazio cinzento do céu de inverno,
Ao lado da casa de dois andares com o poço gelado,
Longe do frio que hoje me habita e não sou eu.
Não sei quem são os donos,
Mas pode ser que os conheça.
Não me conheço!

Sei que não gosto de dióspiros!
Comi um verde, certa vez,
No jardim do meu último amor
Que foi o primeiro e não gostei.
Passem-me uma lixa na boca!

Como uma árvore de Natal,
Com umas bolas laranja, simples, quase visceral,
Doce rudimentar para os meus olhos.
É bonito ver gente feliz dentro de uma casa iluminada e com uma lareira,
Acreditando que podia ser eu, que fui eu,
Aquele que vejo da rua onde habito,
De sorriso aberto ao vazio que ignora.
É bonito ver os outros apaixonados,
Enquanto caminho sem sentir mais que a minha dor do caminho.
É fácil ver nos outros, sem ter que o meter à boca.

Longe a casa que não sei de quem é,
Com o seu poço inútil, com a água estéril, congelada,
Com a sua árvore de Natal permanente...
Permanente até que se cansem de esperar os dentes da serra
Pendurada do lado esquerdo, na garagem, ao lado do carro,
Longe de mim, longe de quem deixei de ser e finge que continua.

As veias a levar o que alimentou os meus dedos,
Enterrando-se na terra onde sou o original,
Invertendo-me de forma desigual,
Alimentando os frutos solitários, sem folhas verdes,
Prontos para a boca que os apreciam,
Para os meus olhos que não os vêem,
Por que Longe.

18.12.2009

Savonlinna

João Bosco da Silva

Lista


ao menino jesus


Quero correr pelos montes até o meu cheiro se confundir
Com o das giestas, das urzes, da resina dos pinheiros, dos pinheiros,
Do musgo fresco, da terra aberta, dos carvalhos, das rochas húmidas,
Dos animais que deixaram rasto, dos que se cruzam comigo,
Do húmus, dos cardos e dos fetos,
Do covil escondido, dos ninhos, das asas que se abrem no ar,
Do que ardeu no verão passado e renasce!

Quero jantar com os amigos que me fizeram,
Comer uma posta mal passada de vitela ainda a sangrar, criada nas redondezas,
Pelo avô de alguém conhecido, com batatas fritas arrancadas pelos dentes metálicos
De alguém honesto e por isso com calos nas mãos,
Perto da lareira do restaurante da beira da estrada!
Quero arroz doce para sobremesa, quase como o da minha avó,
Quase como o da minha mãe, mas sem os desenhos com o pó de canela!
Quero acabar com a cerveja fresca do tasco de uma aldeia pequena,
Fazer dela o mundo todo de uma noite!
Quero gritar sem camisa no meio do asfalto, ignorando outras presenças que não
A dos que me fizeram.

Quero entrar numa mulher portuguesa e que ela me entre dentro,
Me sinta além do corpo, além do verde dos olhos que por vezes mentem,
Como todos os olhos de gente e goste de mim porque sou tão vulgar!
Quero dar-lhe o mundo todo numa noite e se sobrar algo de mim,
Deixar que cresça no amanhã para quem vier!

Quero estar no café da terra até fechar, beber e conversar com os que bebem e vivem,
Comungar de uma cerimónia mais sincera e real pela noite dentro,
Conversando sobre o que vagamente conhecemos e é o que temos,
Gozando com a miséria que é a mais miserável das coisas,
Mestres das coisas simples da vida!
Quanta sabedoria desconhecida numa cerveja entre amigos,
Da que não se ensina na escola: na escola não ensinam a felicidade!

Quero ler Miguel Torga com geada da manhã trasmontana além da janela,
Junto à lareira com as brasas que saltam ameaçadoras, violentas contra as pantufas de avô,
Com uma torrada de pão centeio na mão, brilhante do açucar!
Quero sentir-me no que ele escreveu, acreditar que sou capaz e especial,
Apesar de ter nascido da esterilidade da rocha de granito!

Quero atravessar o Marão num autocarro de carreira,
Dos que estão sempre atrasados e por isso não vale a pena correr por eles,
Demorar quatro horas porque cai neve, sem me importar porque estou mais perto do céu!
Quero olhar de cima as aldeias pequenas com a sua gente grande
A lutar pela vida, a viver, ignorando que eu de cima a passar, a imaginar que vida!

Quero comer um salpicão assado na brasa na cozinha dos meus avôs,
Com os pingos do fumeiro que seca como chuva gordurosa e animal,
Mais divina que outra impossível!
Quero passar o serão a jogar à bisca dos nove com o meu avô,
Ignorando a sua batota anciã, até à hora de ir dormir numa cama que foi de um dos tios da França!
Quero acordar cedo e caminhar pelos caminhos de gente e animais
Em direcção às montanhas que nunca chegam,
Até a um lameiro com erva fresca onde possa deitar-me e apagar a minha sede de Anteu!


12.12.2009

Savonlinna

João Bosco da Silva



Sutura

ressaca de fim do mundo
cerveja da sede, a foda sem sede, que tivesse
só para entrar na ruiva quero dizer hoje
de onde saíu o filho ao chileno
nunca fui bom com números
sei lá o que este ano
mas não hoje
adormecer na pedra central do cemitério
sem conseguir
minha família como se um baptismo mais real e natural
fui salvo pelo marido da minha tia
lembro-me agora que será este ano
chorei lágrimas
faltava-lhe carne dentro
o filho do cantoneiro ensinou-lhe a catequese
que eu queria ter aprendido no adro
sem outros não há pecado
no palheiro do pai dela
nos hospitais com o seu cheiro a merda
comigo e o meu primo
sangue, urina doente, suor de febre e enfartes
entretanto torno-me bolo
o humor a adoçar-se no meu sangue
por fim algo no estômago que não me suporta
desinfectantes, antisépticos, antibióticos
medicamentos que cheiram sem nariz
se não dependêssemos do mundo deus não estaria morto
batas brancas lavadas com perfumes franceses
de cona aromatizada e de púbis bem aparada
garrafas de plástico vazias
e horas prolongadas
morte e familiares dela
branco de luto e brancos de luto, amarelo
como eu não suporto grandes comidas
dependemos do mundo para tudo e é triste
até o bolo me torna mais lúcido
o cérebro diluído com a cerveja
da noite anterior.



João Bosco da Silva

04.12.2009



Cinza Cinzenta

O fogo passa e revela a verdadeira cor dos homens.
O tempo arde e os cabelos ficam brancos
Quando a melanina se cansa.
As vaidades, as intolerâncias e outras incoerências,
Vão-se com o fumo, toxinas em vapor de água.
Só a verdade fica, cinzenta,
Só a cinza de tons heterogéneos
Onde não se vêem pecados ou passados.
Só ossos mal acabados pelo fogo,
Um anel esquecido da sua inutilidade,
Um dente que persiste no seu brilho dourado...
A cinza que resta, mais real do que qualquer ideia,
Ou deus mudo na hora do
Último estado.
Todos o mesmo fim, todos o mesmo início,
O que está entre é só da sorte.
A cor do meu irmão é a da minha cinza cinzenta
E essa ja não importará.

29.11.2009

Savonlinna

João Bosco da Silva

O Fim do Princípio


Ao meu avô Estevo


Começo e com isto condeno-me a mais um fim.

Anjos que caem como frangos depenados de patas abertas
Expondo o vazio para o ginecologista de cutelo.
Chuva pesada que espalha gordura divina
Nas rochas de granito sagradas que a chuva não apagou.

As nuvens incham, mulheres que se casam,
Mulheres que nunca se casaram,
Mulheres que foram visitadas
E lhes deixaram uma estranha presença familiar.

Tudo para cair.
Tudo para deixar de ser.
Tudo para se tornar a ausência do que se foi.

Pétalas de rosa podres com o seu cheiro a cemitério,
A cera de uma vela derramada sobre o mármore,
Sólida ejaculação de um deus de dor,
Presença impossível do que torna tudo ausência
Com o seu toque da vazio onde a alma deveria estar,
Caixão aberto fechado pelas lágrimas que cegam
E levam o que está, o que esteve...

Mais um fim que se torna real,
Deixando atrás de si o rasto de uma existência desnecessária.

21.11.2009

Savonlinna

João Bosco da Silva

Ode à Merda

É boa esta hora, é boa, muito boa!
É a hora que tenho, a hora que me resta,
Até às horas que as mãos nunca tocarão.
É boa, é, uma boa merda, é o que é.
Despejado, esquecido de que cano de esgotos,
De qual a sanita, de que cu de deus.
Eu, uma hora com corpo, uns sessenta relativos,
Um clarão de consciência inútil na noite universal.
Venham-me com horas boas, venham-me com momentos
Que fazem valer a pena e se vão cobardes,
Tornando-se pedras no saco da melancolia!
Venham-me com mais dessas mentiras contadas às crianças que procriam!
Mandem-me dessa merda à cara!
Pelo menos sente-se que é mentira, que é algo.
É hora é, é hora, mas já não é mais a mesma.
O tempo como uma puta que nem acaba de foder um cliente e já tem outro no cu,
Por todos os lados a entreter, a entreter, a consumir e mandar pelo cano dos esgotos
A merda sagrada dos deuses que somos nós,
Não deuses, a merda da sua impossibilidade,
Digeridos por uma imortalidade improvável,
Caídos num monte maior, sempre convencidos de que especiais,
De que únicos, com parte de um pedaço dentro que se confunde,
Dentro de outro pedaço parte que nos faz confundir...
Todos um grande pedaço de merda!
É boa hora é, uma hora para fingir de deus e cagar um poema.

13.11.2009

Savonlinna

João Bosco da Silva

Trás-os-Montes


A Miguel Torga e Sebastião Alba.



Das fragas quentes, cobertas de musgo como esfregão verde,
Dos horizontes turvos pela canícula do meio da tarde,
Onde as montanhas rasgam a monotonia e penetram na atmosfera,
Do monte rasteiro e tímido que resiste como os avôs,
Dos rios pequenos que se tornam no grande e se corrompem no fim,
Dos castelos esquecidos nos altos do presente,
Disto e de muitos com quem partilho o magma quente da vida...
A minha terra.

Dos toscos berlindes dos deuses, esquecidos desde o tempo da criação,
O meu olhar tem o tamanho do mundo,
Um mundo maior que as páginas impressas com o atlas mundial,
O meu olhar mais forte que Atlas,
O meu olhar mais rápido que qualquer pedaço de lixo ordenado para voar,
Viajando à velocidade da luz de aldeia a aldeia, montanha a montanha,
De Portugal onde me sento à Espanha, que o calor da distância cobre de cinzento quente.

Nenhum rei tem um trono como eu tenho!
Granito dos gigantes, esculpido pelos milénios de erosão,
Antes de qualquer deus ou ideia de o inventar.
Tenho pena dos que não existem no meu mundo,
Ignorantes da grandeza disto tudo, tão grandes se julgam na sua jaula de betão,
Apertados contra uma existência de horários e monóxido de carbono,
Com tanta pressa de chegar que se esquecem que é o caminho que vale a pena.
Serei torgueiro, mas livre e dono do meu caminho,
Desprezando qualquer fim e acumulação de inutilidades no nada.

Incapaz de produzir o prodígio de um carvalho inesperado
Que nasce de uma ínfima fenda na rocha granítica,
A abre como a mais difícil das mulheres,
E dela se torna existência,
Escrevo, tentando acompanhar, lado a lado,
Os passos que o vento não apaga, do conterrâneo que o espaço apagou,
Mas o tempo não apagará, enquanto houver gente,
Fragas inconscientes, giestas inocentes, torgas resistentes,
Palavras persistentes na dureza desta terra maravilhosa.

09.11.2009

Savonlinna

João Bosco da Silva

Lixeira

Aqui perduro, sentado neste monte de lixo,
Olhando as memórias e os tesouros que foram,
Hoje merda, hoje longe, só o cheiro...
Rei do universo que apodrece,
Nesta montanha fumegante, bêbedo, confuso de tanto que me pintou.
Perdi a cor, entre pedaços lascados, pinceladas aleatórias, obras delinquentes,
Temporais de arrancar a pele à alma.
Tenho a cor de uma lixeira a arder.
Montanhas da acumulação de anos,
Ondulando à minha frente, vales pequenos à minha frente,
Onde se esconde o que ainda virá.
Aqueles boxers que de tanto os usar se abriram nos elásticos,
Com os ursinhos que a minha avó achou adequados,
Que abriram pernas como se fossem cuecas de homem,
Naquela vareta de guarda-chuva, como uma bandeira de ejaculações gloriosas no vazio.
Aquele boneco que alguém me enterrou por maldade, como se fosse a minha infância,
Ali à vista, com a sua presença inalcançável,
Como todas as tardes de cabra em cima das fragas, sentindo a liberdade na brisa do sol,
O mundo todo à volta, ao alcance dos olhos verdes.
A bicicleta que me abriu a carne tantas vezes,
Hoje castanha, ao lado dos patins da minha rebeldia, hoje sem rodas,
Com os posters das actrizes a cobrir-lhe a miséria, esfarrapadas, abertas, como as de carne.
As revistas de banda-desenhada, mais preciosas que bíblias, com os heróis mais verdadeiros,
Mais presentes, mais vivos que todos os escritores, de cores em punho,
Prontas para me dar cor à vida, mãos que moldaram a massa quando ainda era moldável.
“Com grandes poderes vêm grandes resposabilidades.” e eu sem poderes para poder com isto tudo.
Hoje sou rei deste monte de merda preciosa,
Que se confunde, que perde o brilho que teve nestes olhos cansados.
Há anos que devia ter deixado de tentar.
Já sou imortal, só falta vir a morte e que olhos se abram para esta lixeira,
Esta merda que me habita, onde me sento sentado,
Com o olhar de horizonte limitado pelos fumos dos anos perdidos,
Com a vida a deixar de consumir e a consumir-me.
Perduro, duro, seja o que for que é preciso, frio, fórmula do homem,
Iludido... com os vapores do seu lixo que fermenta.
Sou o rei deste universo, o seu único habitante,
A única testemunha que lhe cria a existência,
Numa quase impossibilidade dando vida a esta massa viscosa que se arrasta pela realidade.

João Bosco da Silva

Savonlinna

22/10/2009

Quando era pequeno gostava de dinossauros,
Depois percebi que as pessoas também morrem
E passei a gostar de pessoas.
Percebi que deus não pode morrer
E deixei de acreditar nele.

João Bosco da Silva

10.10.2009

Rantasalmi