sexta-feira, 2 de abril de 2010



Hoje


Hoje...sou eu como tenho sempre sido
E muitas vezes odiando ser.
Sou mais um nada, não um desses grandes nadas,
Que comigo e com inúmeros outros nadas,
Constituem a humanidade, que não passa de uma palavra.
Hoje encerro em mim um universo,
Como ontem encerrei, e encerro a cada segundo que passa.
Um universo tão grande, ou maior que o que me contém,
Tão cheio de sonhos que sufocam
A realidade impedindo a sua materialização.
Sou aquele que tudo tem, que tudo é,
Mas que não sai de si, nada mostra
E o mundo não vê, ignora e por isso é nada.

Hoje vou esmurrar violentamente um muro de granito
E pintar nas pedras o meu desespero com sangue,
Até secar e se tornar mais uma mancha do tempo que passa.
Só para sentir dentro deste crânio outra dor
Que não a de respirar e sentir o ar dentro dos pulmões,
Sentir o peso da minha realidade nos ombros,
Na coluna e no resto dos ossos,
Sentir o ar frio, quente ou ameno que não sou eu,
Sentir-me eu, a mim e a separação do que sou
E do que não sou.
Hoje vou estirar todos os meus músculos...
Vou correr até o ácido láctico queimar as terminações nervosas
E aí vou correr ainda mais
Até aos níveis de toxicidade serem fatais...
Mas não vou correr, porque estou trancado em mim,
Não saio deste muro ósseo.

Fecho os olhos e voo para longe,
Respiro o ar fresco das alturas,
Absorvo a cor fria de uma montanha gelada no topo,
Sorvo a frescura do brilho do sol na água...
Abro os olhos e vejo a inutilidade e a mentira
Das minhas imagens mentais.
Abro os olhos e tomo consciência da estupidez
De estar sem sentir,
Viver sem viver!

Contraio um músculo só para me sentir vivo,
Sinto-o duro, sinto-o meu, penso-o a separar-se dos ossos,
A ficar laxo e podre...alimento para outros que vivem
Uma vida, talvez mais digna que a minha.
Sinto-me vivo, penso-me morto.
O sentir é coisa de agora, do já, deste momento...
Mas eu sempre fui do que foi e do que será.
Sempre fui do que está dentro e não se pode mais viver, nem sentir
E do que não existe, porque não se passa e nem se passará.

Já não bebo pela sede, pela comunhão,
Pela estranha sensação de liberdade e pelos episódios maníacos,
Bebo só para me não sentir dentro,
Mas com isto, não sinto o de fora,
Nem os de fora que não viram o abismo do eu sóbrio.
Sóbrio penso e não tenho espaço para sentir,
Ébrio nem penso, nem sinto, nem sou...
Passo, embalado pela embriaguez libertadora do que sou e do ser,
Dormindo num estado acordado, esquecido de mim.

Mas hoje não bebo... hoje escrevo!
Hoje sou eu dentro de mim e esboço o que sou
Nestas palavras inúteis e sem significado para quem não sou.
Escrevo e tenho aquele diálogo impossível
Que nunca ninguém me proporcionará.
Estou eu, sozinho a falar comigo,
De dentro para fora... e de fora para dentro.
Como um cão que vomita
E depois come o que vomitou... assim sou eu.
Cão, mas sem a felicidade de não saber sequer
Que é feliz.

Hoje queria sentir o sabor metálico
De um sangue que não fosse meu...
Água de uma fonte cardiaca diferente
Do meu taquicárdico músculo.
Hoje...queria dormir, sem sentir a inutilidade que isso é
Perante toda a eternidade em que o farei.
Hoje... agora... queria ouvir alguém a bater-me à porta,
Alguém que me quisesse pedir desculpa
Por me olhar e me fazer com isso existir de outra forma
Daquela que não experimento;
Que me desse as mãos e mas apertasse como quem ama,
Ou seja, daquela forma como ninguém faz.

Lá fora ouço os ruídos de uma cidade prestes a adormecer.
Ouço as pessoas que se apressam para chegar ao seu sossego,
Ao seu descanso, ao seu ocioso bem estar e estéril calma.
Mas nesta hora em que o sossego me devia visitar e embalar,
Chega-me a melancolia e a insatisfação de ter vivido mais um dia
Para a inutilidade de um outro dia que se repetirá.

Se ao menos fosse especial de alguma forma,
Se fosse importante, essencial...
Mas a ironia é que sou apenas um saco pequeno
Que encerra o mundo todo;
Um saco a que ninguém tem acesso ao conteúdo,
Nem o conhece, nem o pode ver...
A minhas pupilas são buracos negros
Para dois universos que se fundem e me fazem quem sou.

Hoje sei que o que quero está na outra margem
E que a minha vida passa entre a margem onde estou
E aquela onde está o que quero
E nunca poderei alcançar enquanto a vida passar.
Sei isto, mas sonho formas de construir uma ponte
Que me permita alcançar...
Mas o que construo são ilusões e mais ilusões
Que se amontoam no sótão das desilusões.

Hoje o que sou, será parecido ao que muita gente pensa que é...
E como se sente...
Não se enganem, nem se iludam,
Só sentem o que estão a sentir ao me ler,
Não o que eu senti ao escrever.
Por mais que me esforce o que sou realmente,
O que sinto, ou penso dentro desta tigela de miolos
Nunca passará para a experiência dos outros.

Se hoje fosse o último dia da minha vida,
Tudo o que restaria de mim
Seria um nada adiado
E umas pinturas abstractas de palavras
Que cada um interpretará à sua maneira muito única e errada.

Por agora vou beber um copo fresco de água
E sentir o que não sou refrescar-me as entranhas,
Fazendo perdurar mais uns momentos a minha dolorosa existência,
Sem razão para ser,
Mas também sem razão para não ser.

07/10/2006



Porto

João Bosco da Silva