quarta-feira, 26 de maio de 2010

Admirável Mundo Novo

não o de Aldous Huxley

Um louco-obrigado atravessa as noites cada vez mais altas,
Vestido de moléculas instáveis, onde se cruzam carros flutuantes
Com gente que será gente depois da gente.
Os vivos-mortos, os mortos-vivos e outros ressuscitados,
Porque já se pode brincar com o que antes definitivo.
As megacorporações com o poder de fabricar deuses,
Novas religiões fundadas na ciência esquecida da ética,
Fabricantes das leis à sua medida.
A velocidade vertiginosa das novas guerras,
Reduzem multidões a pasta fertilizante, sem dar tempo a um grito,
A beleza dos nanoconstructores a tornar entulho em palácios,
Enquanto os habitantes de uma capital se tornam estrume homegéneo,
Quando bio-aviões bombardeiam plasma pelos seus genitais grotescos.
As ruas cheias de ladrões de implantes de crédito,
De punhal em punho prontos para te abrirem as tripas
Por roupa de marca das megacorporações
E as novas drogas sintécticas, mais viciantes que o oxigênio,
Ladrões-assassinos capazes de lágrimas e de pedir clemência
Quando os seguranças corporativos os vão fritar nas horas-vagas depois do trabalho.
O ciberespaço cheio de vida virtual, vigilantes, vírus com ideias de apocalipse
Capazes de instalar o caos no mundo dependente da cibernética.
O amor impossível de um holograma pelo seu patrão,
Incapaz de tocar, de sentir a não ser aquela estranha fusão de informação
Que leva a um erro no sistema, aproximando o que foi criado pelo humano do humano,
Condenado a uma imortalidade informática, enquanto a informação tiver lugar para estar.
Passeiam-se, uns por vaidade, outros por necessidade, os dos implantes cibernéticos,
Já além do humano, um lugar entre a criação e o criador,
Facilitando a vida tão dificultada pelas facilidades modernas.
Os sociopatas sadomasoquistas capazes de usar o sofrimento e a dor para criar arte,
Teatros de gritos, berros e suspiros cansados e resignados,
Com telepatas capazes de trazer de volta os momentos mais dolorosos que já viveste,
A infalibilidade da tortura telepática, quando o corpo já não chega,
Em nome da arte, mas mais em nome dos créditos ganhos por satisfazer os fetiches modernos.
Se tens créditos suficentes, envelhece sem medos, abusa do corpo,
Dá cabo de ti com as sensações mais extremas,
Depois trocas o teu corpo decrépito por o de um jovem são com a familia pobre,
Se tens créditos suficientes compras quem tu quiseres.
Ainda há caça às bruxas, apesar de se ter dissipado há muito a cinza das inocentes,
Caça aos geneticamente diferentes, o novo racismo anti-evolução,
O mesmo medo do que é diferente, num mundo tão diverso, cada vez controlado por menos.
Apesar do cheiro, do tráfico de drogas, das ruínas do século passado, de toda a miséria,
Ainda é no submundo que a humanidade é mais humana, longe dos que vivem nas alturas,
Alheados, esquecidos das suas origens, viciados nas suas drogas legais, marionetas das corporações.
Os novos programas públicos, as execuções ao vivo,
Com os julgamentos feitos nas rodas da sorte, ou do azar,
O entretenimento das massas à custa da dor humana como nos tempos antigos,
Já que a bestialidade dos homens não muda, moderniza-se.
Deuses, os que a ciência quiser criar, por manipulação genética,
Nada está fora do alcance das mãos do mortal,
Desde que a bioética ficou no velhinho início de século, em nome do progresso,
Que para empatar chegaram os séculos de ignorância religiosa.
As cidades flutuantes, para os que são dignos do céu em vida,
Pelo seu implante de crédito de platina, longe dos ladrões, dos mutantes degenerados,
Das misérias da terra, na companhia dos deuses das megacorporações,
Mesmo onde flutuam as estações de controlo meteorológico,
A dar chuva ou sol quando se quer, para quem paga, sempre para quem paga,
Só para quem pode pagar.
Este é o admirável mundo novo, onde a minha criança cresceu,
Não muito diferente do velho mundo do adulto que sou.

26.06.2099

Valhalla

João Bosco da Silva