sexta-feira, 28 de maio de 2010


A Neve Que Fica

onde o Neva entra no Báltico

Ao lado do caviar dígitos que nunca mais acabam,
A carteira gorda de rublos, tantos para tão pouco,
A mulher da mercearia a gritar lentamente as palavras,
Que continuam a não fazer sentido,
Tanto barulho por um sumo de laranja,
Sim, sumo de laranja e só se compreende um indicador
A apontar um pacote entre muitos do mesmo,
Nada mais, um indicador que deve vir do tempo de Babel,
Antes das línguas kalashnikov a disparar no ar frio sem parar.
A campainha avisa os sorrisos, escassos pelas redondezas,
Que se acendam, a custo pelo frio que vem da rua,
Garrafas pelas prateleiras, escondem as paredes,
De todas as cores, de todos os tipos, de todos os sabores,
Um arco-íris para cegar, para enganar o frio,
A escuridão das ruas quase agrestes, lembram mansardas
Apesar de largas, o tamanho comprime os sentidos,
O tamanho do maior país do mundo que sempre esmagou os vizinhos.
As ruas quase vazias no seu tamanho difícil de saturar de gente,
Com gente nas paragens à espera, com um ar amarelo e triste,
Com os seus casacos de acordo com o vazio da sua carteira,
Gente que sai quando a luz arrefeceu e se suspende em cabos,
Vão para o trabalho, regressam do trabalho, desiludidos,
Pelo que se pode ler nestas horas de crepúsculo já apodrecido.
Os travestis perseguem quem passa uns metros
Lançando no ar envolvente a provocação de um cheiro híbrido,
Os Ladas passam, quase latas de sardinhas com rodas,
O gordo feio mais pesado que a carne pelo ouro que carrega,
Leva a sua cadela loira, de casaco de pele, mini-saia e botas de salto alto,
Vinte anos mais nova que ele e eu revolto-me com o amor pelo papel.
As salas de jogos com os seus neons a dizer que dentro calor
E o transsexual, demasiado apetitoso, do qual fugimos, a entrar atrás de nós,
A moeda cai e nós saímos de imediato,
Ninguém a querer admitir que tinha umas nádegas que convenciam o toque a cair-lhe,
Ele a olhar para trás arrependido da moeda que perdeu.
Não se encontra um bar, um café dos que estão habituados os do sul,
Uma provável striper convida-nos a segui-las, ia para o trabalho,
Na esperança de mais uns rublos de reconhecimento pela sua ajuda,
Mas afinal o bar tinha um ar pouco seguro, numa cave, de uma rua ainda mais escura,
Nós não, obrigado, bom trabalho, continuamos à procura,
Cartão de membro, pedem os armários à porta, negros por dentro e na roupa,
Membro por uma noite, para isso o hotel com o cemitério em frente
Onde dorme Dostoievsky, com a escuridão apagada no coração.
Na zona dos elevadores as prostitutas esperam a clientela que desce só,
Para subirem com companhia e há de tudo:
Velhas, jovens, demasiado jovens, demasiado velhas,
Várias gerações no mesmo negócio de descarga de peso, assassinas da solidão,
Loiras, ruivas, as ruivas, aquela ruiva se me sobrassem rublos
E me faltasses escrúpulos, morenas, altas, baixas, gordas, magras, das que só à dentada.
Subimos com a porta automática do elevador a fechar-nos os sorrisos
Depois das negociações para amanhã, quando já lá não estivermos,
O bar à espera e mais duas, com um menú de serviços,
A fingir que vestidas com vestidos transparentes a deixar ver os mamilos
Que se adivinham rosados e quem sabe com hálito do último cliente,
A linha fina na púbis a indicar de onde vem a motivação para quase tudo na vida,
Um belo par aquele, irmãs, quem sabe, parecidas sim
E os escrúpulos e as garrafas de vodka ainda cheias a tornar a noite sem sal,
Sem aquele sal daquela pele pronta a tudo,
Assassinas da solidão, da escuridão, da noite e do frio da antiga capital.
Sabemos que depois haverá festa no nosso andar,
Com americanas, francesas, alemãs, italianas, belgas, suecas...
Os quartos esperam e a vodka espera o convite para desculpar
Um assalto ao corpo alheio, pagando o prazer com o prazer,
Que assim é que deve ser. Os seguranças vêm e acaba tudo mais cedo,
Cada um entra aleatóriamente para uma porta aberta atrás de um cartão magnético
E assim se faz um destino, o de uma noite,
Poucas semanas antes do atentado checheno, os tais vizinhos esmagados,
Tanta arte e tão pouco respeito pelos autores, a humanidade, cansa-me.
A ressaca acompanham a dança de Matisse, tão longe da primeira vez,
No livro de educação visual e tecnológica, tão grande que Síndrome de Stendhal
E eu sem saber se aquilo real, se eu a sonhar há muitos anos,
Tão pequeno lá no país da minha língua.
A carteira emagrece, quero lá saber, não quero sair daqui com um rublo,
Não posso sair daqui com um rublo,
O resto é encher os bolsos de recordações,
Como os bolsos vazios do espanhol que nos veio dizer que alguém lhe tinha pedido a carteira,
Menos mal que foi a carteira,
Podia ter lá ficado ele, numa daquelas ruas geometricamente perfeitas,
Cheias de turistas cegos pela fascinação, quase como estar em Paris
E é verdade, com mais água, canais por todo lado
E a cara arranjada e maquilhada de um império grotesco,
Às portas do outro lado da Europa, olhando o poluído Golfo da Finlândia,
Mesmo de cara para o esgoto dos países bálticos,
Faz-me lembrar uma puta cara num bairro degradado,
Com joias como das grandes actrizes, sem clientes e miserável na sua gigante solidão.
Ao longe do outro lado de uma das muitas pontes
Alguém a fazer flexões no meio da neve,
Um louco, ou não, tudo depende da frequência das loucuras,
Repetem-se e tornam-se hábitos, o povo todo repete e tornam-se tradições.
Louco eu, que acho estranho o que me é estranho,
Gosto com um certo sentido masoquista, aquelas punhaladas
Na minha virgem ignorância de tantas coisas.
Tantos contrastes, mas nem é preciso ir longe,
Basta olhar para o lado, através da janela do autocarro,
Ver os monumentos que se tornam cada vez mais raros,
As torres que se tornam cada vez mais parecidas às que há em todas as cidades grandes,
Como se a verdade por fim a ser revelada,
Um acordar ao lado de uma almofada borratada e uma desconhecida feia, envelhecida pela noite,
Um palhaço grotesco, como as marionetas do teatro de marionetas de Nevsky,
Os Ladas ridículos naqueles trinta graus negativos, ultrapassados pelas limusinas,
Os Hummers negros, americanos, blindados, dos homens do petróleo e das drogas,
Aqueles gordos de cadelas loiras pela mão, vinte anos mais novas que eles
E a sustentar a família toda desde a avó até à filha que tiveram aos catorze anos,
Todos num apartamento pequeno, numa daquelas torres a dizer adeus.
Adeus máscara de teatro, com o teu sorriso cortado pela metade triste,
Deixaste-me dentro o mesmo sorriso torcido, o fascínio desiludido da humaniade.

28.05.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

Momento Trazido

de Bragança

Sentado num muro à espera, com o Sabor em frente,
O Eça a fazer-me companhia, na cidade onde nasci,
À espera que venham do médico para regressar.
No meio da rua adormecida pela hora de trabalho,
Com os carros que passam atrasados, sempre atrasados,
Sempre a chegar onde nem vale a pena pensar,
Com o livro, inclinado sobre o papel, quase lá dentro,
Não fosse a brisa primaveril e os passos no passeio.
Será que um dia lhe saberei o nome, a ela que passa?
Deve ser da minha idade, uns quase dezassete,
Também deve andar a ser Eça e pensar que os seus problemas
São tão grandes, enquanto o rio passa e vai para longe
De onde eu nasci.
E o próximo ano será o último, depois, depois tão longe
Do que imagino, perdido em ruas ainda mais desconhecidas
Que estas da cidade onde nasci.
O castelo, sei tão pouco sobre o castelo, sobre o Gungunhana,
Só que deve ter sido alguém muito grande para ter as calças num museu.
Sei que gosto e me faz lembrar tempo que nunca vivi,
Mas que alguém viveu até eu nascer nesta cidade,
Como se toda a história do mundo fosse para eu estar aqui,
A ler Eça, que certamente escreveu este livro para não estar só
Enquanto espero que venham do médico.
Não tarda a avalanche de carne apressada e com fome
A caminho do cheiro das batatas fritas,
A dar-me movimento aos olhos para fora, só para fora.
Não tardo e chego a meio, depois mais umas tardes ao sol
E acabo a outra metade. Hoje não, hoje a hora do almoço está próxima
E ainda temos que atravessar a serra, a terra fria até casa.
A serra, verde, cheia de segredos e de casas vazias.
Um dia irei vasculhar aqueles interiores vazios,
Enquanto faço horas, como se fosse um criador de tempo.
Um dia irei vasculhar interiores vazios na companhia daquelas casas,
Sem me importar dos carros solitários que passam,
A caminho da cidade, ou regressando da cidade onde nasci,
Iluminando por momentos os suspiros e os gemidos nos vidros.
Que nome terá? Era bonita, o nome não interessa,
Mas qual será? Um dia direi que gosto dela: gosto de ti.
Não. Gosto do livro que leio. Nunca pensei, mas nunca o tinha lido,
Gosto desta cidade, que tão poucas vezes visito,
Apesar do cordão umbilical e da gente que passa e nem me faz ser.
A culpa é do cheiro do almoço e das prioridades,
Das pressas que não deixam ver, que não dão tempo à gente de ser gente.
Um dia quero voltar a visitar o castelo, a Domus Minicipalis,
Passar uma noite na serra a fingir amor, para que outra noite venha.
Afinal de contas todos nos sentimos sós, mesmo numa rua cheia de gente,
Onde ninguém dá por ninguém, enquanto esperamos, um olhar, um sorriso,
A esperança de um nome de olhos bonitos,
Uma recordação para levar pelo mundo fora,
Para quando um quarto fechado e estranho, apesar do nosso cheiro nas paredes.
Não estranho nada o tempo do livro, deve ser assim que se vive nas grandes cidades,
Lá longe, na capital, da qual só me lembro da gente esquisita,
Sem olhos, dos autocarros como concertinas, do sono nos barcos do rio largo,
Da forma de falar muito asséptica, dos bancos de jardim onde mora gente,
Das ruas tão grandes e cheias onde custa respirar,
O cheiro a alcatrão quente, os táxis com cheiro a pele e fumo,
O táxista simpático de bigode, como os imaginava,
Os olhares no chão de manhã, os olhares no chão...
Porquê os olhares no chão quando se pode levar o Eça
Para amparar o olhar?
Aqui ainda passam tractores, gente com enxadas às costas,
Um cavalo, ou um burro de vez em quando.
De onde virão os cavalos, ou acabei de ler algo sobre cavalos?
Os burros nem pergunto, vêm de todo lado.
As rãs? Quase as ouço, ou será uma noite de primavera sentado numa manta,
Fora da cidade à beira de um açude, a contemplar os dedos nas estrelas,
Enquanto as minhas ideias humedecem o ar?
O ritmo dos passos aumenta, os passo aumentam,
A gente nasce de todos os lados, na mesma cidade onde eu nasci,
São todos meus irmãos.
Sinto umas pontadas no estômago. Deve ser fome,
Ou saudades do que não poderei levar comigo,
Quando eles chegarem do médico e eu me for.
O velho da boina diz-me bom dia,
Parecia o meu avó, mas com boina, já deve ter almoçado.
Dá-me mais fome por saber que há quem não a tenha,
Sinto-me mal, pela quase inveja, olho o sol no rio para acalmar.
Regresso ao Eça, que se continuar à espera, não passarei da metade.
Eles que venham quando vierem, por enquanto espero,
Já com fome, pela hora do almoço tardio.

28.05.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva