domingo, 27 de junho de 2010




Vindima

1ª edição, 1945

A vinha do meu pai não está em Paris, nem parece um jardim.
A vinha do meu pai não é a Vigne du Clos Montmartre,
Mas podia ser se estivesse rodeada pela capital francesa,
Se tivesse cheirado a invasão alemã e tantos gritos derrotados,
Vencidos pelo silêncio eterno na cidade das luzes,
O mesmo silêncio dos que enchem as catacumbas.
A vinha do meu pai nunca conheceu artistas famosos,
Só artistas que nem eles sabiam que o eram, ou são.
Ainda serão, na sua aldeia pequena, ainda viverão a sua vida de todo tamanho?
Acordeões também a vinha do meu pai ouviu,
Lá do meio do monte, nas noites de romaria, no Verão ou no Inverno,
Quando o pagão se funde com o sagrado e se torna realmente mágico e intemporal.
Acordeões que traziam gentes das terras vizinhas,
Alguns que até tinham estado em Paris, outros que viviam lá o resto do ano.
A vinha do meu pai já ouviu falar da Vigne du Clos Montmartre,
Mas a Vigne du Clos Montmartre, nunca ouviu falar da vinha do meu pai,
Por isso em algo é mais ignorante que a vinha do meu pai.
A vinha do meu pai conhece coelhos, lebres, javalis, raposas, cães, gatos, gente...
Não creio que javalis atravessem Paris ultimamente,
Raposas, só as que enforcam a dignidade de algumas senhoras,
Coelhos só os dos menus onde “lapin”, os que aquecem quem nasceu pelado,
Ou os que são tratados como os cães e os gatos, fechados em caixas ainda mais pequenas,
Com os olhos vermelhos pela escuridão da cidade das luzes.
A vinha do meu pai também é uma sobrevivente,
Do tempo em que Vinhais foi baptizado.
A vinha do meu pai conheceu quem não quis ir para a guerra,
Respondeu-lhe ao gritos solitários e à fome desesperada do esquecimento.
A vinha do meu pai foi comprada pelo meu avô,
O irmão do meu avô era emigrante em França, regressou definitivamente,
Agora está ao lado do meu avô, coberto por uma terra que é a mesma,
A mesma da vinha do meu pai, a mesma da Vigne du Clos Montmartre,
Longe de iluminações, cobertos todos pela terra que cavaram.
A vinha do meu pai já teve o seu vinho em Paris,
A Vigne du Clos Montmartre nunca teve o seu vinho perto de Vinhais,
Nem sabe o que é o rio Tuela, nem conhece as enconstas que em tempos,
Dizem, pareciam as do Douro.
A vinha do meu pai suicidou o meu avô, a Vigne du Clos Montmartre,
Não chega para matar tanta gente.
A vinha do meu pai está rodeada por estevas, urzes, carrascos, giestas, castanheiros, cerejeiras...
A Vigne du Clos Montmartre está rodeada por uma rede verde,
Carros estacionados ao longo da Rue des Saules e da Rue Saint-Vincent
E árvores asfixiadas pelo cinzento.
A Vigne du Clos Montmartre é mais conhecida que a vinha do meu pai,
Mas não é maior, nem produz mais, nem melhor suor,
Apenas se lhe dá mais valor, por ser da Vigne du Clos Montmartre e não do meu pai.

27.06.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva