terça-feira, 24 de agosto de 2010


Respiração de Cheyne-Stokes

morte de um poema,

Depois de o mundo ter encerrado o seu tamanho,
Os lábios azuis em despedida, os olhos fixos no vazio amarelo que antecede a verdade,
A clareza de não ter valido a pena faz ofegar uma alma que se prepara para desaparecer,
Já longe da solidez dos dias de sol, das gargalhadas dos primeiros cabelos brancos,
Da água dos primeiros verões, nos rios ou nas praias vazias cobertas de toalhas.
As mãos ao lado do corpo, inertes, os pulmões a tentar agarrar o ar com a violência
De um precipício, um precipício que agarra os pés, pingos gelados,
Sem mãos para a avalanche de nada que aí vem.
Inspira, expira, inspira, expira e mergulha… o dióxido de carbono nem se sente,
Aumenta, torna cada vez mais longe, aproxima o inevitável.
Inspiração, já que ainda não foi desta, já que mais um segundo valia a pena
E agora, já tão longe, cada segundo um ano luz de distância,
O corpo, cada vez mais vazio, as mãos já vazias, sós
E os segundos que contam aqueles que não serão, que ficarão numa expiração eterna,
Na resignação do corpo cansado pelo peso dos anos,
Lacerado pelas lâminas de granito da calçada, abusado e abusador.
A insuficiência cardíaca não é desculpa para mãos vazias,
Houve amor… haverá amor?
A vida não sabe tão bem a conta-gotas, a hora da morte mostra bem a agonia
Dos passos lentos, arrastados, viscosos, com medo dos últimos, de olhos nos pés.
Expiração porque os pulmões mal aguentam os últimos litros
E o sangue já venenoso a tornar-se morte. Só o coração moribundo
E os olhos no vazio, as mãos abertas à espera da que não vem,
Nunca virá, porque será tarde de mais. Expiração…
A nuca enterra-se na almofada a engolir mais um momento inútil,
O corpo a tornar-se bicolor, a ser cada vez menos, a deixar de ser,
As mãos vazias… Ninguém virá, ninguém virá.
Já há horas que se esqueceu a ilusão de um reencontro,
Há horas que se deixou de acreditar, porque o natural é enfrentar o vazio com a fragilidade,
De mãos vazias receber a eternidade.
Ser esmagado pelo peso infinito do fim, um universo que se apaga,
As estrelas agonizam, vão perdendo brilho, expira, desaparecem na escuridão,
As mãos onde pousa uma mosca à espera, que adivinha, que tem mais tempo na vida,
Apesar de uma mosca, inspira e o corpo estremece todo, sem mãos,
Agarra-se quando já cai no abismo. A mosca nem sente.
Silêncio, a vida de trinta em trinta segundos, cada vez menos,
Entre mergulhos na matéria escura,
O mergulho final aproxima-se, mas ainda não está na hora…

24-08-10

Torre de Dona Chama

João Bosco da Silva