segunda-feira, 6 de setembro de 2010


Pela Estrada Fora

a Jack Kerouac

As imagens que se tem engolido pelos anos do que passamos, tornam-se em pedaços do espelho partido,
Roubado ao universo e no fim de contas só a barba de Walt Whitman era universal,
Ou a barba de Allen Ginsberg, de um universo mais seu, mas do mesmo tamanho de qualquer outro.
A estrada faz-se mesmo que sentados à sombra de um cedro a ver as carrinhas a passar, cheias de gente morena,
Cheias de sol na ferrugem, com o cheiro a uvas no ar, até se perder na linha que os olhos cortam.
Se fosse jovem, deixar-me-ia cair da cama para o vazio, abraçava-o sem medo, cortava todos o cartões,
Esquecia todas as moradas, todos os números, todas as lições inúteis que não foram ensinadas na vida,
Partia para a morte certa, porque toda a morte é certa na vida que se vive sem as correntes
Que nos dão como os objectivos da vida. Quem já viveu a vida de outro para lhe dar indicações?
Segue o teu caminho Jack, esse que se vai criando à tua frente, com a pele salgada das mexicanas,
Das adolescentes doces e loiras, inocentes algumas, das noites loucas de Denver, o regresso louco a Nova Iorque,
Sempre o regresso, apesar de a estrada ser sempre em frente, o teu professor em Nova Orleães,
O professor da vida, o único estudante real e possível da vida, a fuga para o fim da viagem sem destino.
Imagens, de vidas, da vida que vai desde as terras mais frias, noites chuvosas em Estocolmo,
Noites surreais, brancas e ultracongeladas de São Petersburgo, horas vazias, gastas a tiros de cerveja quente
Na Europa que nos roubou tantas vezes no passado, a fuga dos lábios roxos de Bordeaux para a noite de Paris,
O hálito confuso nas ilhas da costa Africana, aromas andaluzes, escoceses, minhotos...
A visita a Kansas, logo ali, à mão da noite fria Europeia e afinal os filmes americanos nem sempre filmes.
O cabelo empastado pelo suor de tantas imagens, sem nunca se ter visitado a Interzona, tão próxima,
Tão longe dos olhos que se abrem todas as manhãs desde o princípio dos tempos.
Imagens da branca Helsínquia, tão aparada que dá vontade de passar as poucas horas de Sol de Inverno
A acariciá-la com as solas encharcadas de Finlandia ou Suomi viina, se não der para melhor,
Se a vontade não chegar para querer percorrer o interior doce e quente de uma alma livre.
Sei que Picasso teve uma namorada finlandesa, apesar de ter sido um sueco a dizê-lo,
Tinha uma bicicleta e vestidos de tecidos leves com flores estampadas na brisa leve de Julho.
Quem se perder no caminho, pode dizer que finalmente se encontrou.
A primeira e última vez em Barcelona, com os olhos demasiado sedentos de tudo em pouco tempo,
A promessa do regresso que ficou pendente no parapeito e gelou numa manhã da Terra Fria,
Apesar dos convites italianos, dos olhos castanhos e quentes do longe de aqui.
Seja no Bom Inverno, ou no Inferno Mau, há dias em que imagens nos dão mais ao que diziamos ser,
Mais uma quebra num pedaço de espelho já partido, mais uma pincelada no quadro abstracto que só nós,
Ou melhor, nem nós compreendemos. Somos arte, não tem que ter um sentido, é um caminho,
Dos caminhos de Jack, com um destino quântico, pela estrada fora.



06.09.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva