segunda-feira, 25 de outubro de 2010



Panero


Se as vozes se calassem e me deixassem um momento

Num quarto vazio, um minuto à espera de nada,

Esquecia-me dos anos até nem uma memória.

Bebo e se bebo é para que a música me entre

E me lave e me deixe sem mim,

Vazio e pronto para abraçar a vida.

Deito-me sem sono no granito frio das horas dos esquecidos,

Cansado de ser derrubado pelos demónios da fome dos sentidos.

Só queria um momento de esquecimento,

Uma síncope sagrada e essencial no epicentro do meu universo possível.

Há olhares tão fundos, tão distantes em terras de super-homens,

Perdidos na proximidade castrante das ruas de gente de pedra,

Com multidões maiores, qual Legião.

As noites cansam-se do vazio e plantam o terror

Nos sulcos onde o dia violou a criança que fui.

Se bebo é para me tornar uma criança grande,

Sedenta dos seios das virgens que nunca serão,

Curioso do corpo que me olha e me faz e sou.

Os cães não deixam dormir as estrelas,

Não se acendem e o sino da igreja ainda vibra,

Porque hoje morri e ressuscitei.



27.10.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva



Meios Beijos


Não se compreende certo calor nas noites que arrefecem,

Não se conhecem os meios beijos que ficaram pendentes na excitação

Dos dias quentes, dos olhares entrelaçados, entre multidões cegas

De olhos para uma realidade à sua imagem, uma realidade sua.

Não se acredita que dentro dos olhos que nos vêem com vontade,

Que alguém possa entrar-nos tanto dentro, ficar tanto tempo nos poros,

Entranhado na memória do olfacto, escondido nas sombras do cérebro

E aniquila toda a incoerência dos momentos além daquele.

Lentamente se entra, se vê uma chuva quente que envolve as lágrimas dos dias,

As dilui, nos dilui por dois em partes desiguais num jogo violento de carne e moralidade,

Um jogo que tem todo o sentido, sente-se que está certo.

Hajam mil orgasmos numa noite mais quente, num país que ainda não nasceu,

Hajam gatos pretos a horas improváveis por caminhos esquecidos,

Hajam barcos perdidos em terra e cadáveres que nunca viveram,

Haja a miséria, a fome de uma ressaca infernal, ou o cavaleiro do apocalipse,

Haja a morte, a vida demasiado longa,

Haja o que houver, não há quem compreenda, nem quem forje palavras

Que expliquem o calor nas noites que arrefecem à distância de meios beijos.



24.10.2010



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva