segunda-feira, 15 de novembro de 2010



Kurt Cobain


Passo a língua na mão suja e está salgada,

Sinto as veias esponjosas, tubos horríveis,

Teias pelo corpo até ao fim,

Ramos em direcção ao céu,

Punhos de seis dedos amputados

E o som estridente de uma guitarra eléctrica

Que se apaga na rua húmida e verde triste.

O peso cresce sempre, os ossos cedem uns atrás aos outros,

Arames finos numa estrutura cada vez maior e tão quase vazia dentro,

Cheia de uma luz amarga que todos querem nas suas noites pequenas.

A camisa vermelha de flanela de cores cansadas,

Cortada como se fosse carne por vingança à morte,

Ao chumbo e miolos espalhados na parede suja e uma carta exausta.

Tenho uma arma: é a minha mão,

A minha voz silenciosa numa noite tão apertada,

Uma veia fina além da pele salgada e suja que sou eu,

O gatilho metálico, frio e o sabor adivinhado do sangue gelado e sólido

Na boca antes da explosão de matéria negra

E o mergulho para a eternidade redentora.



15.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva



Pequeno-Almoço Tardio


Quer comprar esta revista, ou pelo menos dê-me algum, estou esfomeado

E eu pergunto-me, onde terás deixado a vida, amigo.

Deixaste cair a alma pelos rasgões na tua casaca de poliéster,

Envenenaste o espírito com pequenas agulhas, chupaste-te até te perderes,

Perdeste a vontade de fazer a barba pelo menos de três em três dias,

Deixaste de poder tomar banho, a família não quer ouvir falar de ti,

As portas fecharam-se todas, é isso amigo?

Sei que a tua fome é outra mas levo a mão ao bolso, porque ainda é cedo,

Cedo para ti, é sempre cedo para perder um pedaço de nós, grande ou pequeno

E dói sempre se não há o que nos anestesie o processo.

Também passei meses bêbado, também tive fome porque a ressaca,

Sabes bem o que é a ressaca, estás incapaz de comer neste momento.

Sabes que também tentei esquecer, tanto que os outros é que acabaram por me esquecer

E agora ainda tenho uns trocos para ti, amigo.

Leva a tua revista, descansa a dor numa imagem que te agrade, encontra respostas

Em palavras insuspeitas, um sentido numa frase aparentemente inócua,

Enche o forro do casaco se vier frio, que o papel ajuda.

Não te mintas, porque estás perdido se também deixares de acreditar em ti.

O mundo encostou-te a um canto, estás só, mas levo-te comigo, sujo, loiro e sujo,

Olhar perdido de quem só procura a redenção do aniquilamento,

Andar andrajoso, cansado da vida e do mundo que ela carrega. Não é amigo?

Também te prometeram que ia ser fácil, que é uma brincadeira,

Que terás sempre uma mão, um bom dia pela manhã, um beijo pela noite

E uns braços que te aconchegam nas noites frias? O mundo é uma grande mentira

E só a fome que dizes sentir é verdade neste momento, eu sei amigo.

O pior não é ser abandonado, o pior mesmo é abandonar,

Abrir as mãos, ficar livre e vazio e com o peso todo e escuro,

Sem olhos para além de uns meros passos, porque o momento também já passou.

Toma lá estes trocos e dá-me um momento de paz, fazer a diferença,

Seja ela qual for, porque me tenho sentido tão inútil, tão pequeno, tão só e incapaz.

Tenho-me sentido tão sujo por dentro, passo horas no banho,

Deixo que a barba me esconda, não visito a família, eles sentem a minha falta

Mesmo quando estou, sou o fantasma da vida que me morreu.

Quantas vezes se pode morrer, amigo, antes da última vez?

Uma não é? Depois é uma vida de morto-vivo, de cemitério andante,

Navio fantasma condenado à eternidade do que o corpo nos deixar.

Boa sorte amigo, que a vida te sorria, ou pelo menos dias de Sol no Inverno que atravessas.



15.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva



O Violinista Da Bond Street Station


Tocava música celta, que subia até ao primeiro passo nos túneis do submundo.

As toupeiras passam cegas, apressadas, desligadas até chegarem.

Será que chegarão lá de verdade?

Tocava as cordas do violino com uma dor que se entranha nas fibras tristes

De um coração violado pelo tempo e pela distância, a metros do chão onde caminham mortos.

Vem-me de longe, sempre, além do mar, dos vales verdes, das montanhas viúvas de ângulos agudos,

De ovelhas, outras, porque aqui não é Irlanda e sou da terra de poetas tristes, todos mortos,

Os realmente poetas.

A vida é dura e serve para arranjar uns cobres para se continuar na sua agressão,

Nas noites frias, nas manhãs solitárias de café frio e uma fome que mal deixou dormir,

Pegar no violino e esperar que haja gente com moedas a mais no bolso.

Os gatos têm que comer e um dia os filhos virão fazer uma visita

E é para isso que faz falta o dinheiro.

Chora o violino na esperança de uma chuva metálica e a tinta deixa-se ficar onde a mão passou.

Passam e fica em alguns, outros vão no seu inferno interior,

Incapazes de inspirar um pouco de verde no ar pesado e monóxido,

Fica apesar de faltar um nome, o violinista da Bond Street Station.



15.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva