quarta-feira, 24 de novembro de 2010



Liberdade Em Helsínquia


Acordo numa manhã cinzenta e fria de Outubro,

Já Outubro, num quarto vazio de um hostel barato em Helsínquia,

O Báltico sente-se e a humidade dói quando há solidão.

Duas camas e eu a respirar sozinho, cansado, rei de um mundo sem gente,

Na parede o poster de uma multidão de mil novecentos e noventa, perto desta rua

E eu tão longe, longe de imaginar acordar aqui, hoje.

O jantar soube-me a pouco e sinceramente o apetite do resto era pouco,

Nem os olhos azuis da hospedeira me despertaram do cinzento,

Não desta vez, desta vez nem um hálito a álcool ao meu lado,

Púbicos nem tocá-los, cara de anjo e gritos de diabo no corpo,

Noutro hotel, há meia-vida atrás.

Fascinou-me o par do espelho, ela vinte e poucos, magra, bem metida nas roupas,

Quase que comia sobremesa, ele com uns trinta acima dela, desleixado,

Com uma carteira farta, parecendo um dos muitos de uma pequena terra qualquer do sul:

Russos e nem tenho que os ouvir. Ele paga e sobem os dois.

Não compreendo por que desta vez engulo a comida em seco, sem vontade.

Acordar sozinho, numa manhã tão fria, com fome e longe de tudo em Outubro,

Sem uma dor de cabeça, sem alguém à espera, a pensar em mil novecentos e noventa

Num dos meses de Verão, longe disto tudo, quase que sabe a liberdade,

Aquela da infância que se esqueceu.



24.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva



Dor Fantasma


Porque será que dói quando se perde alguém para sempre,

Mesmo que a morte não esteja na eternidade?

Vejo uma grande parte de mim entrar numa distância que me será impossível,

Depois de tanto tempo, tanta paciência e tantos gritos de punhos na mesa,

Tantas lágrimas embriagadas, tanta birra e tanto problema resolvido

Num orgasmo prolongado, nos lençóis com cheiro a detergente da roupa barato,

Vejo um membro amputado que não tinha manifestação no meu corpo.

Afinal sou além de mim e aquele corpo, aquele cérebro, foi meu e perdi-o,

Necrosou com o silêncio, o desprezo, o esquecimento por alguém que se julga melhor,

Sempre melhor o que fora de nós, a vida dos outros, só por não sentirmos as dores alheias.

Dói como um suicídio arrependido, uma amostra de morte, quando a porta se fecha

E se deixam correr as lágrimas livremente, nunca chegarão lá, inúteis,

Sempre inúteis, os sentimentos líquidos que escorrem

Quando o corpo não percebe a separação que a mente vomita angustiada, culpada.

Quem quer viver para sempre, se a maior dor é a da eternidade?



24.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva