quinta-feira, 9 de dezembro de 2010


Ode ao Negro

A Eicca Toppinen, Paavo Lötjönen e Perttu Kivilaakso

Os corvos que esperam que o gelo eterno água
E que a morte venha à superfície, sem pudor,
Sem medo de mostrar a sua cor a olhares tristes,
Desprezam a vida que lhe corre em baixo.
As árvores cansadas das ilusões primaveris
Desmaiam até ao esqueleto do mais pudico,
Tombam a saudade do doce por terra e estalam
Quando à noite na cabana se quer a solidão de uma fogueira.
Deixam-se as cordas pendentes, tudo o resto vibra no limiar
Azul do nascer de um dia curto, o momento azul
Leva a melatonina que ajuda a aguentar o cansaço existencial,
Tão pesado nas horas do fim do mundo.
Grasnam, tossem o ar menos frio, as lágrimas congelam,
O vento fustiga a pele pálida, os olhos profundos e gelados
Num corpo que arde e derrete ao toque de mais um pedaço fora,
Deslizam, atritos esquecidos, não se sentem a maioria dos apêndices,
Esquecem-se, sensação de menos gente, escondidos nos corvos,
Negros na alvura excessiva da vida.
Estalam os instrumentos silenciosos dos funerais e das fogueiras do verão,
Os vidros no chão esquecidos e inofensivos, génios perdidos,
A melancolia nas pálpebras a fazer sombra ao sorriso,
Um toque leve nos lábios e uma cama desconhecida no ranger dos passos
Incertos pela neve fora e nem um cão se pronuncia em certas horas.
A melodia dos corações partidos propaga-se na temperatura,
Lentamente, entranha-se, arranha e não deixa o sangue correr livremente,
Sufoca o desejo real e deixa o corpo agarrar-se ao que houver,
Mesmo que os corvos esperem, desinteressados das crias para o vazio,
Dos que choram arrependidos pela humilhação consentida
Aos que os esperam e respeitam, penas negras no ar azul e tão breve.
O olhar perde-se no infinito possível, mesmo que dentro a consciência
De que não se vai tão longe e já se ultrapassou tal distância,
Reminiscências do tempo dos passos lentos e sentidos a cada quilómetro.
Dilatam-se no interior os versos e a carne dói como se estivesse a ser queimada,
Os pés arrefecem, ou sentem-se frios e o coração esqueceu-se de acordar,
Só o sofrimento de um vazio, de um negro que se instalou, que chegou
Sem nunca se acreditar que mais uma vez, impossível regressar,
Sempre, até ao fim das vidas que estão e das que virão,
Um negro que canta nos quartos vazios, nas ruas desertas,
Nas florestas congeladas, nos lagos das ilusões, as sinfonias esquecidas,
As almas abandonadas pelos corpos desejosos de uma dor fria.
Venham os dentes dos sonhos e façam brotar dos pescoços
Incautos algo líquido, quente, real e sincero, que deixe um ponto certo
Na incerteza branca trazida pelo inverno negro e cavernoso,
Solte-se um grito arrepiante de quem ficou sem pinga de sangue
Ao sentir o negro súbito, penetrando como uma dor impossível
Que se estranha e só a carne acredita quando os corvos avançam.

09.12.2010

Torre de Dona Chama

João Bosco da Silva