sexta-feira, 30 de dezembro de 2011





Mulheres



Todas as mulheres, todas a última no primeiro momento, todos os olhares

Os mais penetrantes até que se perdem, difusos e indiferentes, diluídos no tempo,

No esquecimento e as promessas de eternidade lavadas dos lençóis,

Aspiradas dos estofos, levadas pelo vento das ruas, só o esforço da recordação

Aquece algum aroma possível, na esterilidade de umas palavras sem rostos,

Todos aqueles rostos, aqueles lábios impossíveis em outros lábios,

À volta de falos desconhecidos, maiores, menores, mais peludos, o cabelo

A ser puxado por outras mãos, os mesmos gemidos, cada um deles convencido

Da sua invencibilidade, do seu poder enquanto domador de leoas

Tão bem amestradas, todos os sonhos, diferentes, todas as conversas sob as mesmas

Estrelas, o relógio com os mesmos números, em contagem decrescente desde o primeiro

Olhar, todos os poemas escritos com a cinza das madrugadas, todos os copos vazios

A adiar a manhã e o orgasmo, a condenar casamentos futuros, a curar casamentos falhados,

A matar o tempo que nos mata, todas as luzes, as chamas, nos olhos

Que dão tudo ou tiram tudo, até a alma com o desprezo, o ódio que ninguém melhor

E o olhar mata por dentro ou desperta-nos o desconhecido que vive connosco,

Todos aqueles dedos e carícias, unhas e marcas que também o corpo esquece,

Todos os cigarros e as línguas com o sabor do fumo, as línguas com sabor

A carne viva, as línguas metálicas, as tímidas, as inocentes, as preguiçosas,

As línguas de adolescentes com sabor a frescura e novidade que chegam ao estômago

E apertam o coração e ele mais rápido, tão rápido, todas as roupas interiores,

A adiar um pouco mais a comunhão mais que sagrada, a pele no fim ejaculada

Ao luar, nas costas, nas barrigas, nos vestidos puxados para cima, na maquilhagem

Porque a vontade tinha sido tanta, nas bocas ainda quentes dos beijos,

Ainda quentes dos beijos dos seu namorados, dos seus noivos, dos seus outros além do outro,

Todos aqueles futuros que nunca chegaram, partilhados no tempo possível,

Hoje tudo passado, hoje tudo ridículo sem a carne rosada, o brilho da excitação ao luar

O calor dos corpos e os peitos suados um contra o outro, as mesas parecem impossíveis,

As casas de banho dos bares, os quartos de hotel, a amiga que dormia ao lado,

O amigo que dormia ao lado, os sofás desconhecidos, os rios, os montes, os santuários,

As estrelas, as casas abandonadas, os bancos traseiros, a praia ao fim da tarde,

Todas as mulheres, todos os momentos vazios sem elas, todas elas a primeira e a última,

Todas elas uma promessa verdadeira impossível de se cumprir definitivamente.





30.12.2011





Turku




João Bosco da Silva

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011


Papel De Embrulho



Os restos de uma ilusão, despojos de uma felicidade ocultada por cores, os momentos

De anos e anos de infância pelas ruas, junto aos caixotes do lixo, o cheiro a tudo

Menos a lençóis lavados, pijamas novos, como a roupa interior de uma vítima de violação,

Desprezada numa ejaculação seca, assim os papéis de embrulho, na manhã fria do dia

Começado no adiar de mais uma ressaca, na hipócrita celebração do nascimento

De bonecos de louça, que se visita como um teatro barato de aldeia, tanta cara amarela,

Tanta vergonha lavada com água benta, meditação de cabeça vazia na madeira fria,

Antes do massacre de embrulhos, bem apertados, com promessas de felicidade,

Com promessas de mais um objecto para possuir, poder, e as banhas escondidas,

Os púbicos mal aparados pela força do frio, a eternidade a fragilidade de um papel

De embrulho e o amor a fita que em mal se repara e já está no lixo

E no dia seguinte à vista de quem passa, de quem leva os sacos cheios de desperdícios

Que foram vida a caixotes já cheios e é Natal, o Sol brilha como se não houvessem

Luzinhas coloridas a piscar, as oliveiras carregadas de azeitonas, os campos sombrios

Com a geada de há dias e o papel de embrulho pelas ruas, revelando a nudez de objectos,

Expondo os lençóis manchados da ilusão, os gemidos assanhados da inocência,

Alguém foi violado na noite de consoada, as cuecas com renas são testemunhas,

O vinho foi cúmplice e as provas são dois lenços de papel usados para limpar

A palidez das nádegas perfumadas com o perfume oferecido no Natal passado,

E nas cidades há quem recolha as ruínas coloridas para forrar as casas de papelão.



29.12.2011



Turku



João Bosco da Silva


Maria Madalena



Aposto que não sabias quando te vendeste pela primeira vez, nem sabias que te vendias,

Nem que a cada vez que abrias o corpo por inutilidades infantis ao vício herdado,

Perdias-te aos poucos, pelos poros o teu suor de gemidos sem desejo, só a excitação

Trazida pelo pecado, os pêlos brancos do seu peito envelhecido contra a tua adolescência

Perdida em tantos bancos traseiros como negações que tu cultivas antes de adormeceres,

Para conseguires acordar de manhã acreditando que ainda dona de ti e dos teus desejos,

Quando herdaste todas as maçãs, todas as cabras, todos os adereços da tua religião,

E no fim não consegues ocultar um olhar esmagado por esperma doente e vazio,

Pela resignação aos desejos inúteis de mostrar, ao desejo perverso de quem é teu dono

Até perderes a juventude do teu cabelo, o olhar enrugar a palidez à sua volta,

A tua frescura rasgada por berros de filhos com quem calhou, porque o tempo,

Nunca te dará de volta o que trocaste por pequenos nadas, porque o tempo não perdoa

A quem se vende como se a vida não fosse a eternidade que nos dão, e não consigo ter pena

De quem herda abismos, de quem se deixa levar pela tradição como uma puta por uma nota.



29.12.2011



Turku



João Bosco da Silva





Deus Da Minha Infância


Aquele quadro do sagrado coração de Jesus no quarto dos meus avós, ainda hoje me faz

Questionar, como pode um pedaço de papel seguir-me com o olhar, vou para a esquerda

E ele olha-me, vou para a direita e lá está ele, deve ser um truque à sorriso da Mona Lisa,

Num papel barato, talvez um calendário que a devoção da minha avó emoldurou, seja

Como for, não presenciei a mais nenhum milagre senão este, um olhar de papel que muitas

Vezes atenuava a minha curiosidade em relação ao que as minhas primas tinham entre as

Pernas, quando afinal, aquilo sim era a criação do mundo, a origem da vida, a razão da vida.

Naquele tempo deus era o pai dos meus avós, além deles só um homem eterno e sábio

Em rugas, os meus bisavós, só fotografias retratos em lápides no cemitério e nomes que hoje

Não me lembro, mas basta visitar o cemitério e lá estão, agora deus, nem uma lápide,

Um velho que nunca vi e não acredito que tenha sido ele o do olhar de papel que segue

Miúdos no quarto dos avós, enquanto eles tentam encontrar respostas além da roupa interior.






19.12.2011



Helsínquia



João Bosco da Silva

domingo, 18 de dezembro de 2011


Crónica Do Quarto Frio


Rua do Almada, 2003


Naquele quarto frio na cidade envelhecida, suja, prostituída e transvestida, com uma fome
De gente, a procurar-me desesperadamente em palavra que nunca ninguém lerá
E até eu tento ignorá-las em ficheiros esquecidos, todas elas o caminho para isto,
Sacrifício de carne, suor, esperma e sangue, por uma alma violada pela solidão
E pela melancolia, com uma sensibilidade treinada no silêncio de paredes húmidas,
Enquanto pedrinhas nas janelas e serenatas, as mantas a crescer e a cobrir a cabeça,
O dia encerrado e ainda tantos anos por viver, tantos para viver levado pela força da juventude
E só depois me tornei espontâneo, só por deixar de esperar seja o que for.
Aprendi a escrever para ninguém, aprendi que todos os poemas que tentam ter
Uma utilidade, são os mais inúteis, aprendi que os poemas dirigidos a alguém, nunca chegam
E caem ridículos a meia distância, aprendi que a poesia é apenas o resultado do que a carne
Passou, a destilação da vida em palavras e nunca a própria vida, por isso há tantos poemas
Feitos de palavras mortas por aí, como se as palavras não tivessem um significado,
Um peso, um cheiro, uma extremidade afiada, um punho abstracto que se sente inesperado.
Aquele quarto só hoje pode ser poema, aquelas pernas nas aulas só hoje podem ser palavras,
A mini-saia de pregas e as meias de liga, o descruzar e o que eu te faria a querer ser poema,
Mas na verdade apenas uma vontade que se alivia na hora do almoço, e um ar mais calmo,
A colega ao lado, não me digas e era verdade, e hoje, quando não se espera nada,
Acende-se um cigarro na sala de fumadores a um hippie anti-corporativo que diz escrever
Música, eu sou poeta (porque os anos já me deram esse direito) e a loira ao lado,
A irradiar frescura e oxitocina, como estás e eu bêbado, és poeta e eu bêbado, Bukowski
E ela a sério, eu a desconfiar se de verdade, “não tentes” e ela sem perceber, o que ele disse
E ela ainda sem perceber, Keroauc, Ginsberg, a loira parece compreender o meu ombro
Com as sua mãos, os lábios demasiado próximos como se ouvisse com eles, o cigarro quase
No fim, uma hipster além de qualquer desejo, daqueles monumentos que se admiram numa
Rua de Estocolmo, a procurar os lábios de um bêbado que escreve poesia e tem preguiça
De fazer a barba, demasiado cansado para aceitar um beijo anónimo de um quase sonho,
E os lábios doces, como se o pescoço fosse capaz de sabor, deixam uma frescura a latejar,
Para no fim se acabar a noite a masturbar alguém contra um plátano à chuva,
Sem noção da madrugada, dos carros que passam, em baixo, na Rua do Almada,
Há quase uma década, muitas vidas atrás, na companhia de palavras vazias e desejos hoje memórias.


18.12.2011


Turku


João Bosco da Silva

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011


A Vida Que Nos Obrigam



“Não sou anterior à escolha

ou nexo do ofício

Nada em mim começou por um acorde"

Sebastião Alba



Dão a vida de graça a um gajo e depois obrigam-no a pagá-la, como se fosse uma escolha,

Nossa a culpa, um sofá num escritório onde se acredita num sonho de pernas abertas,

Não tens que contar ao teu namorado, enquanto se engole num esquecimento que só

A excitação é capaz de oferecer, uns valentes whiskies, o fascínio por um brinquedo novo,

Os olhos a brilhar e a luzinhas de Natal a piscar, anos e anos antes de muito pó e bosta

A caminho da perdição, perdidos sempre, sempre onde se devia estar, a pagar a renda

Por algo que nunca se assinou, mas nem a carne é nossa, por isso vale a pena desperdiçar,

Que se lixe, não é meu, a filosofia dos cigarros rasgados na persistente resistência pulmonar,

Mais um não mata, no fundo já estamos todos mortos, na lucidez encontrada em balcões.

Não se pode esperar nada da promessa do desespero, um pedinte dói mais que uma facada

E às vezes é quase uma pontinha de inveja, aquela liberdade, tão fácil e romântico

Quando se vem de uma casa quente, com o estômago cheio, com as axilas desodorizadas

E a alma convencida da sua existência, tudo vincado, até os sonhos, aquela liberdade

E um suspiro de olhar a esconder-se dos papelões, da mão suja, vazia, doente, livre,

Presa à miséria, ao cansaço à resignação a um sofrimento pobre pobre pobre, só o sono

Desconfortável numa calçada e também eles, pagam uma renda, também eles que são livres

E cada vez mais me convenço que a única liberdade possível é a ausência total da escolha,

Para isso a ausência da vida, ser uma pedra, um cometa, uma estrela que se consome, também

Sem escolha, mas sem a ilusão da possibilidade impossível de poder escolher, que ilumina.



Turku



12.12.2010



João Bosco da Silva

domingo, 11 de dezembro de 2011


A Inocência Da Masturbação


“Nada conduz a nada.”

José Agostinho Baptista



Será que foi naquela tarde ao Sol, com os joelhos verdes do musgo, as unhas cheias de terra

E a testa com gotas minúsculas de um suor de felicidade, ou naquele gole de sumo,

Numa paragem incerta entre um mundo e outro em direcção a iguais paragens,

Ou naquele beijo roubado atrás do carro do pão, atrás da escola depois da catequese,

Atrás do tanque, atrás de algo, sempre os beijos que valeram a pena, onde terá ficado,

Perdida a inocência, terá havido, não há memória, é daquelas coisas que só se sentem

Quando se perdem, só se sentem pelo vazio que deixam, como o amor possível

É só aquele que é incompleto, deixando espaço para sonhar, para a ilusão crescer.

Perde-se a capacidade de chover segundos amargos, salgados na língua, com os anos,

Com o crescer persistente da barba e o empalidecer dos cabelos cada vez mais raros

E o coração só cresce para compensar a sua insuficiência, um músculo bruto

Que torna cada vez mais difíceis as inspirações inconscientes, tudo um passo já no ar,

E o pé no chão mal se sente, apressa-se o outro, passa-se e perde-se tudo,

Porque a passagem tudo, nós gotas e as gotas só gotas durante a queda, depois,

Depois acendem-se cigarros com a mão livre, enquanto se tenta encontrar o alívio

De alguém com os dedos frios, confusos nas pregas de carne humedecida pelo vazio

Da noite encostados numa árvore tristíssima, alguém numa varanda às cinco da manhã

E tanto frio, tão frio, como beber apressadamente só para deixar metade escondido

E ser o ridículo, o impossível de uma inocência forçada, perdida, esquecida e improvisada

Nas madrugadas frias, negras de mais um Dezembro, a vida um Dezembro sem Natal,

Uma Missa do Galo inútil, só porque nem ela, nem ele presentes, apesar do corpo de um,

O sangue de outro ainda envenenado pela melancolia, que tomou o lugar dos joelhos verdes

Do musgo, limpou a terra das unhas, tornou o suor azedo e doloroso, o sumo demasiado doce,

A incerteza um caminho, os beijos obrigados pela fome, iluminados pelo artificialismo,

Sem fé, nem moral, secos, como a árvore que presencia uma masturbação misericordiosa,

Arrependida da sua existência, uma inalação de almas que procuram o eternamente perdido.



11.12.2011



Turku



João Bosco da Silva

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011


A Arte De Beber O Vazio Da Madrugada



Bebo, por desejar nada e sentir um vazio que se enche com a obnibulação dos pobres

De espírito, bebo por desejar demasiado e ter as mãos apenas para uma garrafa,

Se o mundo coubesse num copo, engolia-o de uma vez com a mesma vontade com que corro

Pela noite fora em direcção ao esquecimento, mas de manhã nada, por isso durmo

Sobre a ressaca, ignoro os jornais, as mesmas misérias à entrada da porta, as contas

Que só por estar agora a escrever de madrugada, com o frigorífico quase vazio,

O candeeiro ligado, o aquecimento a fazer esquecer a lareira e a neve que começa,

Os dedos que gastam palavras, crescem, as contas e troco oito horas dos meus dias

Para continuar sem sonhos, dormir doze horas por dia quando possível, ou por semana,

Sem saudades do Sol, sem saudades da amiga das bebedeiras, que me engole no jardim

Da cidade, em troca de um “tu”, por muitas vezes duvidarmos da nossa própria existência,

Um “tu” para ser “eu”, em silêncio, como se a ejaculação fosse o mundo que não se pode

Engolir, o futuro que chegou e nós ainda à espera, por que não se esperava nada disto,

O estrangeiro mais uma casa, outra gente feita da mesma merda, com os mesmos medos,

Executados em canaviais, esquecidos pela distância, violados pelos amigos, odiados pelos

Vizinhos, pelos irmãos, com um deus morto, uma colecção deles em pedra, a porcelana

Chinesa para as ocasiões especiais, que nunca foi nem será usada e que irá para o lixo

Por se ter esquecido nas gerações futuras que aquilo uma relíquia, o mesmo cansaço

Anos e anos após levar com o mesmo hálito, os filhos que se tornam desconhecidos

À medida que nos conhecem e afinal, todos gente, eles também nos bancos traseiros,

Nós também a cheirar pinho pela eternidade fora, que é madeira barata e os mortos

Já não ligam puto a cheiros, não podem ligar ou apodrecer seria um inferno.

E bebo, apesar de não haver há semanas uma gota de álcool no silêncio da madrugada,

Bebo as gotas da amargura, das mãos demasiado cansadas por tão pouco,

Tanto pó engolido no caminho incerto para pouco mais que umas horas de sono,

Que se adiam, se gastam numas palavras desnecessárias, inúteis, quando bastava um grito,

Um murro na mesa, uma garrafa contra a parede, o orgasmo anónimo na filha querida de

Alguém, a minha filha uma santa, santa da equipa de hóquei, gaba-se ela entre mais um gole,

Que se lixe, mais uma para a consagração deste vazio que serei, este nada que me sinto

E que não sou todavia, sinto e isso pode ter sido a razão do início do universo, por isso bebo,

Porque tanto é um deus quem cria um universo como aquele que o destrói

E amanhã será outro dia, nada será o mesmo, nada será melhor, tem-no mostrado os dias que passam.



07.12.2011



Turku



João Bosco da Silva

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011


A Vida É Esta Treta Que Toda A Gente Bem Desconhece



E a vida é esta treta que toda a gente bem desconhece, inventaram-se palavras para lhe dar

Forma sentido, insuficientes, pequenas, sons inúteis no silêncio sideral, passa-se o tempo

A tentar fazer o tempo passar, como se os segundos dependessem da televisão ligada,

Da música a impor um humor, um ritmo ao coração que tudo estranha, que se sente

No meio de uma multidão de estranhos, todos os dias, mesmo em quartos vazios fechados

E folhas em branco, ou manchadas de vinho que diz-se, também ajuda, e começa

A parecer que a vida é apenas a crença de existir e tudo o que temos dentro são palavras

Que espremidas gotas de hormonas, as tais emoções que dizemos ser, um saco delas,

Freguesa que hoje estão fresquinhas e baratas, vendem-se pelas ruas onde o peixe apodrece

Escondido dos olhos e só o cheiro a becos escuros nas noites citadinas onde uma puta

Ocasional suga os filhos do futuro impossível, engole-os a todos de uma vez por cinco euros

E já pouco há a sujar na alma dos perdidos, nem as palavras pesam quando o esperma

Escorrega pela gola abaixo como mais um golo de whisky quando a noite já muito negra,

Rouba-se mais um pouco de aniquilação na explosão de uma super-nova química,

Ilumina-se a árvore de Natal em forma de universo e lá se vai mais uma vez para “casa”,

Encerrado o dia na solidão de um sofá queimado de cigarros, o espelho do interior abatido

Pelos anos de tanta espera pelo melhor que tarda mais que uma vida a aparecer.



01.12.2011



Turku



João Bosco da Silva

quarta-feira, 30 de novembro de 2011


O Vaguear Do Fumo Imaginário



“Mas que vontade de ter pecado. De pecar. Como assim: de viver”


Luiz Pacheco



Agora quero um cigarro para este desconsolo, da vida quero tudo sabendo que mais perto

Do nada, tenho pena de cada segundo em que não peco, sinto-os como desperdício e no fundo

Tenho uma vontade visceral de me encontrar contigo num monte de terra, entre quatro paredes

Brancas, com o cheiro dos lagares lavados, das fogueiras que aquecem os alambiques e aguardente,

Mas nem tu reparas nas abelhas, no arbusto ao lado do portão que é cada vez menos verde

E torna-se ferrugem, como os ossos da gente, nem elas se dão conta da tua presença, morto,

Apesar de me ser impossível imaginar-te deitado, num caixão, de olhos fechados e apagados

E provavelmente, com a carne já a ser cada vez menos tu, tu, tu que dependes de nós agora,

Que não abelhas para te fazer existir, somos as testemunhas de que foste um dia, e no final

Todos abelhas ou o bagaço amontoado para estrume, depois de ter sido espremido até ao tutano.

Se soubesse que a vida isto, quando era dono de uma eternidade que não reconhecia,

Talvez por tomar como garantida, não faria nada, porque me seria impossível, talvez um cigarro

E no entanto estaria a fingir menos um segundo, porque todos foram meus, até me tornar

Uma ampulheta de grãos de tempo, que desconhece o volume e às vezes tem vontade de ser vazia,

Só por haver tanto para tão pouco, tão pouco para tanto, nesta puta desta existência,

Dependendo dos dias, dos anos, do lugar, do único destino possível que são todos

Pelas estradas quânticas, eu vou por aqui e serei o que tu és quando fores por aqui, nunca serás

Quando, ou és quando, quando nunca por aqui e tudo isto é o fumo de um cigarro imaginário,

Em cima de uma árvore estranha, num país estranho, com gente estranha que é gente,

Com outras fomes, outras sedes, outros destinos além da morte, o mesmo estômago,

As mesmas cores, até os cães ladram da mesma forma e algures os sinos daquela aldeia

No dia do teu funeral, tu morto, eu longe, longe de mim, longe de estar longe, só, aqui, a secar,

Enquanto me debato com o resto de uma moral resíduo, inútil e castradora, que torna a vida

Amarga, menos importante que a imagem que se dá na passagem e aos mortos tudo se perdoa,

Menos a própria morte, mas aí a culpa é de deus, como se ele fosse a limitada carne que somos.





30.11.2011



Turku



João Bosco da Silva

quarta-feira, 23 de novembro de 2011


A Sombra Do Carvalho Para A Insónia



Antes de adormecer visita-me aquele carvalho centenário, numa aldeia galega cujo nome só

O gigantesco carvalho, quase se tem saudades da vida que nunca se teve, surge a sede

Ao vinho naquela taberna de outros tempos, hoje só portas trancadas e dois velhinhos

Sentados num banco de pedra ao seu lado, aproveitando o Sol que resta,

À espera dos melhores dias, o dia tornou-se verde-escuro, as unhas ainda têm a terra

Da manhã fresca e as mulheres, de lenço na cabeça, ripam couves nas hortas pequenas

Para o jantar, ouvem-se os chocalhos de algumas ovelhas que ainda ruminam ao ar,

Adivinha-se leite e queijo fresco daquelas mãos gretadas, os filhos estão longe,

Devem vir no Natal, os netos estão tão grandes, mas são da cidade, não demora em gear

E a lareira é uma companhia obrigatória ou a humidade nos ossos à noite, um desassossego.

Tudo isto conta o carvalho centenário, que tudo viveu, tudo guardou, mas os seus anéis

Contam os anos desde aquele inocente beijo até este Natal que vem com a nova geração,

Guardam a história da foice na perna do vizinho que andava a fornicar a filha do outro

No palheiro, à hora da sesta no verão, a do irmão que matou outro por causa das partilhas,

Antes inseparáveis, história universal e não se consegue dormir, quando a vida que nunca

Se teve, nos vem com promessas impossíveis, agora que a vida parece já ir a meio

E se vive tão longe daquela aldeia galega, onde a sombra do gigantesco carvalho

É apenas uma memória, ou a insónia numa cabeça que não consegue esquecer

Os passos que dá, mesmo que tenham sido só de passagem, em direcção a onde se vai ser.

O carvalho apesar de só raízes hoje, continua a acrescentar anéis e o tamanho

Não se mede pelos anos que se vive, mas pelos momentos que se levam para o sono.



23.11.2011



Turku



João Bosco da Silva

domingo, 20 de novembro de 2011

Um Murmúrio


Pelos descampados vazios, só a nossa presença sobre a geada, não é necessário o Sol,

Que se acredita além do céu cinzento, que nos abraça como uma prostituta, sem calor,

A obrigação por uns dias quentes que nunca chegam, uma recordação em forma

De rasto de estrela cadente, na noite que nos espera no passos que ainda não demos.

Ambos sabemos que a vida é um acumular de fracassos e não passamos dos sobreviventes

De todos os sonhos naufragados, por isso lado a lado, comungamos da mesma esperança,

O calor do teu corpo, finalmente revelado nas minhas mãos pecadoras, o teu sabor

A gravar-se no instinto do olfacto, o hipocampo torna-te amor, ignorando palavras,

As mesmas que nos aproximaram todos estes anos de distância, longe de imaginar

Que o ondular do teu cabelo de cobre, neste mundo cinzento, fosse também felicidade,

E uma carícia também se sente com os olhos, como quando me sorris com toda a tua palidez,

Contra toda a amargura com que os anos te banharam, rasgas assim o frio de Novembro.

Mais ninguém, só a testemunha dos lábios, a promessa da saliva que persiste

Um brilho na tua pele, o sabor rosado dos teus segredos que derretem no limite

De um olhar sobre a eternidade num comum mortal, com fome de vida, sangue, carne,

Sem palavras, só os murmúrios da pele que nenhum verso consegue igualar.



20.11.2011



Turku



João Bosco Da Silva

quinta-feira, 17 de novembro de 2011


Oração Do Ateu



Não se pode tolerar a morte nas noites de insónia, não no espírito acordado que olha para

As mãos calejadas de recordações, cicatrizes antigas a que alguns chamaram sonhos,

Cheiros alheios como desejos e se pergunta, isto tudo afinal para quê, e ela sorri e beija-te

Levemente, provoca-te um suicídio que lhe prometes todas as manhãs e adias todas as noites

Até à manhã seguinte, deixa em ti a semente da perdição e vives apaixonado pelo medo,

Acreditas no amor que a crente te promete, tu que tão cedo abraçaste a certeza da eternidade

Um vazio. Os cães ladram lá fora às sombras dos teus passos quânticos, há quem diga o que

Acredita, fantasmas, a brisa fria toca as folhas com o receio dos virgens, alguém vem de longe

Ou saiu tarde, ou parte, dois faróis apenas, na janela do quarto onde mora a insónia e a morte,

Onde se contam os pedaços de momento e se faz de um colar de missangas o rosário dos ateus.



15.11.2011



Turku



João Bosco da Silva




Gente Linda



Gente linda, gente linda que nunca pisou a areia de uma praia, o mar só uma palavra

E muita água que se vê na televisão, as pernas muito brancas e o horizonte dos que queima

A pele com o pó que as mãos, belas mãos, levantam da terra, olhos cansados do esforço real,

Profundos até ao limite da condição humana, gente que mata a sede com vinho e sacode

A tristeza e o tédio do pouco tempo livre na vizinha, no vizinho, noutra pele de gente linda.

Belos os sonhos desta bela gente, mais uma cerveja que empurram em forma de amizade,

Esperam um bom dia, ou olá, o reconhecimento da sua presença em troca de um olhar,

Merecem todas as saudações aqueles olhos que esperam olhos, aquela vontade de companhia,

Porque a gente linda é tão só, quando faz frio e só as cartas a jogar os segundos à sorte

E mais um cálice de vinho do porto para quem ganhou, um belo cálice numas mãos perfeitas,

Ásperas do cimento, do diluente, dos maus tratos do trabalho mal pago, se a beleza bastasse,

Mas o mundo exige tudo desta bela gente, quase nem alma têm para levar à missa

E lá vai havendo um pouco para levar neste Domingo ou no outro, se o espelho quiser,

O espelho que limita a realidade dos próprios sonhos, desta bela gente, desta gente linda.




17.11.2011



Turku




João Bosco da Silva

quarta-feira, 16 de novembro de 2011




Cheiro Do Tempo



Um cheiro como a morada de um outro tempo, se forem ignorados os sentidos restantes,

A madeira que arde nas lareiras, o fumo misturado com o ar frio e a humidade que cede

Às temperaturas negativas, olhos fechados e é uma daquelas manhãs em direcção à escola,

Passando pela esquina onde vive a mulher que nunca sai à rua e pede a quem passa

Que lhe coloquem as cartas, que atira desde a varanda, no marco de correio, falta o cheiro a bolos,

Os olhos abrem-se porque faltou a pastelaria e estranha-se o tempo em que o corpo depende.

Tão próxima tu, quando alguém com olhos tão diferentes, te carrega a presença no ar

E ouvi escrever que é impossível amar alguém sem cheiro, pergunto-me que perfumes

Terá usado a minha mãe quando eu ainda tão longe, mais perto do paraíso, as chaves

De viagens breves, ilusões de papilas gustativas confundindo a inocência com palavras grandes.

A lavanda sempre me tornou as mãos mais pequenas e as inspirações menos contrariadas,

O incenso tem o sabor metálico dos sábados de manhã entre granito, orações e cantos desafinados,

Os pêlos queimados são quentes como o sangue dos porcos que fumega na geada,

E as mãos doem no ar frio de Dezembro, mesmo que seja Abril e um cigarro aceso

Demasiado próximo, o teu suor, impossível de encontrar além do teu corpo,

Por isso procura-se a essência do luar na esperança de mais um regresso a ti.

Bilhetes para sonhos acordados, de recordações manifestas e um momento além da superfície

Das roupas que os olhos abertos nos vestem, os cheiros, uma quebra no tempo

Que corre pela eternidade e depende dos sentidos para se fazer notar no espaço que altera.





16.11.2011




Turku




João Bosco da Silva