quinta-feira, 30 de junho de 2011






Pedra Na Mão


A cerveja gelada cai

No estômago vazio

Como o toque esponjoso

Do colo do útero

Na glande,

Um gajo sente-se vivo,

Algo além do universo

Mas parte,

Alguém,

Acolhido e acolhedor.

Cada mulher é um mundo

Estranho e fascinante,

Golo refrescante

Que se perde

Na familiaridade

Da nossa

Temperatura corporal.




30.06.2011




Turku




João Bosco da Silva

segunda-feira, 27 de junho de 2011






Antes De Zaratustra


No cimo de uma montanha, num Agosto tão quente que cinzento o horizonte,

Longe dos anos que não se conseguirão evitar e cairão sobre os olhos da esperança

Como uma avalanche de magma e escuridão, filósofo do sem pensamento

E o que virá virá, a miséria não passa de histórias à hora do jantar, ou nos jornais

Que se evitam porque deixam os dedos sujos e escuros, a dor é uma manhã geada

De Janeiro e a riqueza maior é a lareira ao chegar da escola, um leite com chocolate quente

Até o pai chegar para jantar, um gelado quando a sorte de duzentos escudos nas tardes de verão

E a felicidade torna-se cada vez mais difícil com os anos, o sorriso de uma rapariga torna-se

Insuficiente e nem as violências no seu colo do útero ajudam ao vazio, a dor deixa de poder

Chorar-se e só a ejaculação a leva por momentos, longe no cimo da ermida, Nossa Senhora da Saúde

E os ossos sem nunca terem entrado num hospital, as mãos sem saberem que às vezes se morre

E não há muito mais a fazer a não ser ver a desilusão final de um corpo que não foi suficiente.

No cimo de uma montanha, com o mundo desenrolado montes abaixo, cheio de beleza,

Algumas casas, aldeias inofensivas, onde palheiros, machados ensanguentados e também

Horrores em menor escala, mas longe, longe aqueles joelhos na rua de Estocolmo

Com as mãos erguidas ao céu como uma prece ao novo deus, para que ele caia, frio e metálico

Nos dedos da fome, fome de tantas fomes diferentes, as agulhas a cegar a alma até à dor do despertar

No Porto, onde homens e mulheres vendem o acesso aos orifícios por deus, enquanto uns

Resignados dormem debaixo de pontes e viadutos, longe das mãos que procuram, que se procuram,

Em caixotes do lixo nas ruas castanhas de Londres, enquanto alguém te tenta vender droga

Nas ruas de Montmartre, quase vazio, quase no fim e o cemitério ali ao lado, à espera do mundo todo,

Longe das prostitutas russas, incrivelmente magras, com os braços cruzados, escondendo

As marcas do seu apodrecimento, à espera de um turista, de um Hummer negro, na noite fria

E escura de São Petersburgo, à espera do desespero de alguém só, alguém cansado de se ouvir

No silêncio de um quarto pequeno, as prostitutas brasileiras em Espanha, com as suas lengalengas de sempre

Só porque os filhos longe à espera do dinheiro dos trolhas, turistas decapitadas em praias

Marcianas nas ilhas Canárias, longe, longe deste monte de onde o mundo parece verde.

Deus ainda parece um homem, como o pai natal, mas que veste de branco e não bebe Coca-Cola,

Um homem estranho que deixou matar o filho para provar algo acerca do amor, o filho também deus

E eu já com dúvidas do sentido daquilo tudo para fazer com que isto tudo um sentido,

Por aqueles montes abaixo, onde quem sabe, me encontrarei pelo caminho com Zaratustra

Ou Keroauc, iluminado, mas não de todo, o avô igual, mas sem escrever, amarelo e morto,

Não acredito que me encontre com crucificados, mas muitos levam a sua cruz, arrastam-na

Monte abaixo, pelas urzes, giestas, cardos em direcção a um abismo redentor onde a lançam e se deixam cair.

No cimo daquele monte, com as mãos vazias ainda cheias de possibilidades, outras páginas para virar,

Magníficos capítulos, revolucionários, novos, ainda acreditando nos olhos como nas palavras,

O mundo um privilégio que se dá ao vazio para ser algo, voz ao silêncio para ser cantada a eternidade

E só a dor dura, só a vida dura, pouco, a expiação é eterna, mas longe, longe do cimo desta montanha

Onde se senta a minha memória a segregar saudades e a reconhecer a absoluta derrota

Dos meus anos em busca de nada, quando tudo aqui em cima, tudo aqui longe,

Porque a proximidade nunca foi amiga dos olhos e a perfeição está sempre a uma distância qualquer.



Turku



27.06.2011



João Bosco da Silva






Última Noite De São João



Sentado na minha última alma, a ceder às evidências do despertar existencialista, dois anos

Depois da morte de deus, na varanda do quarto da minha irmã, com gatos que atravessam o caminho

Iluminado pelo último candeeiro da vila, como se pequenas alegorias peludas, respostas simples

E mais verdadeiras que mil bíblias, mas por aquela altura, já a cabeça de São João tinha deixado de fazer sentido.

A música popular a entristecer-me com a possibilidade de caras sorridentes enquanto insisto

Em sobrepor-lhe o meu gosto por música celta, para acalmar a mente atormentada pelas ideias

Dos outros em papéis que tinham que se comer com os olhos, enquanto a vida lá fora,

Insistindo em que eu a aprendesse antes de vida e a minha mãe contente por eu estar a cumprir,

Sei lá com que expectativas, mas nunca as minhas. Uma das últimas noites frescas da minha vida,

Longe, sempre longe quando se passou, a felicidade simples dos verdes anos com respostas sem perguntas

E poucas cervejas necessárias para se conquistar o mundo, ou aquela miúda da outra turma

Atrás da barraca dos cachorros a encher o peito e o mundo tão grande quando nós pequenos

E a noite tão curta quando nós conscientes do tamanho da vida, do tamanho do tempo,

Do tamanho da distância daquelas noites quase perdidas, não fosse o que nos torna eu e tu,

Nunca nós, de São João, enquanto a vida anoitece, o orvalho visita a esperança em velhos milagres,

A janela fecha-se, a música popular cala-se e afinal a casa vazia onde me desenrolo em rimas

E me asfixio acreditando que é necessário, que eu necessário e que ser alguém depende de alguém.





Isokyrö





26.06.2011





João Bosco da Silva






Aquele Professor De Português No Quinto Ano






Deve estar bem na vida, com o seu BMW no parque de estacionamento de uma escola qualquer,

Ainda casado com a sua mulherzinha com pais ricos (não acredito que se tivesse casado

Com o fascínio pela primeira foda), a estrear as estagiarias com o seu sorrisinho cabrão,

Ele e o sorriso, com ambos os joelhos perfeitos (nunca se deve ter esforçado muito à baliza),

Provavelmente um filho para ter uma âncora caso o apanhem de calças nos joelhos perfeitos

E dentro de uma estúpida estudante de enfermagem com necessidade de aulas de apoio

A anatomia, com uma fominha ridícula de adolescente acabadinha de sair da sua aldeia,

Deve estar bem na vida a fazer aquilo que nunca deveria fazer, além de viver uma vida

Que não merece, mas deve ter sido um escaravelho do estrume noutra vida, talvez

Para lá regresse quando expirar uma última vez através daqueles dentinhos merecedores de um punho.

Costumam ter sorte, os filhos da puta, mas o meu professor de português do quinto ano…

O primeiro (e basta ser o primeiro) a abalar a minha infalibilidade com o meu primeiro satisfaz,

Eu um génio ao longo da escola primária, mesmo mudando de escola duas vezes por ano lectivo,


Mesmo que abrisse mãos dos melhores amigos antes de eles chegarem a memorizar o meu apelido (é Silva),

O primeiro satisfaz, não Satisfaz, mas satisfaz, eu medíocre, eu atormentado com as aulas de português,

Eu sem perceber porque levar tão a sério o que nem é vida, sem perceber que diferença faz um

Erro ortográfico quando supostamente se está a aprender e estaladas, pontapés quando no quadro com toda a gente a ver,

Eu com sorte por ter aprendido que o que eles querem é que as suas ideias lhes sejam repetidas,

Ou as de outros já mortos, nunca as nossas, porque a escola ensina-nos a não pensar por nós,

Eu calado, menos seguro das minhas ideias, mas que interessa, se ele perguntar: tens razão, estás certo, és deus,

Um deus a impor a sua frustração de pila pequena, ou algo que o cigarrinho se calhar lhe trouxe cedo,

Sobre almas verdes, esponjas sedentas, não de vinagre – meu grande filho da puta!

Fala-se em aproveitamento escolar e família e meio e família, fala-se pouco em professores

E medo, e crianças que tentam ler, mas não conseguem quando têm uma mão atrás da nuca,

Um sorrisinho à espera de um erro, de um pequeno gaguejo e uma frustração (não era meu cabrão?),

Por isso eu longe, não te dava o prazer do erro muitas vezes, mas ainda me dói

A forma como conseguiste atrofiar o percurso escolar do meu melhor amigo e do meu vizinho,

Mas não te deves lembrar do sangue, o sangue esquece-se quando é dos outros:

Por azar, ambos à frente da tua secretária, ou trono de ditador sádico, ao alcance da tua mão enorme

Branca e suave, boa para punhetas (se calhar era isso que querias, pilas de meninos entre os teus dedos),

Mas bater é mais de homem. O meu vizinho começou a ler a sua resposta, com um olho na capa arquivadora

E outro à espera de que o medo fizesse sentido, com razão, até que se engasgou com algo na sua língua seca

E logo sentiu cair sobre a nuca aquela mão pesada e pronta à humilhação e à dor, os dentes

Contra as argolas de metal da capa arquivadora (porque nos era mais barato e ninguém

Tinha pais ricos e é fácil abusar nos filhos dos pobres) e as folhas manchadas com sangue de criança.

Nem todos perceberão a necessidade de um poema tão mau, mas há coisas piores que também

Não têm necessidade, nem razão de existir, como aquele professor no quinto ano, que nos marcou

A todos, a uns por dentro a outros por dentro e por fora, mas todos continuamos aqui, maiores.





26.06.2011






Turku






João Bosco da Silva

quarta-feira, 22 de junho de 2011


Adeus Mais Uma Vez


“Dirigi-me à casota do cão e encontrei o velho Bob a tremer e a arfar no ar cortante. Ganiu contente por me ver.” Jack Kerouac


É muito mais fácil o regresso, com um cansaço agarrado à pele da alma,

Com a pele abusada e abusivamente pesada, de outras cores, diferente da partida,

Quando ao aproximar do portão, um focinho peludo e conhecido, com reconhecimento

Nos olhos infinitos, gritantes de um ser mudo de palavras, um simples cão, que te conhece,

Mas não sabe o teu nome, é muito mais fácil o regresso e dá tempo à mãe de enxugar as mãos

Da água de lavar a loiça, dá tempo do Sol se lembrar de afastar uma nuvem, dá tempo ao pai

De deixar a enxada, levantar um pouco o boné e gritar “ou”, é muito mais fácil lavar o cansaço

Quando uma língua te refresca as mãos, como se um abraço mais sincero.

Agora não sei como será, agora que a casa me parece cada vez mais longe,

Que a gente me parece mais repugnante, a minha gente e até o meu sangue me mete nojo,

Só de pensar num possível parentesco com monstros ignorantes, com a consciência do

Tamanho de uma bolota que nem merece os dentes de um porco faminto.

Não será fácil, agora que os pessegueiros são só um e o negrilho secou e a sombra

É cada vez mais escassa e o sol mais violento contra a pele cansada, abusada e abusivamente pesada,

O nascente secou e o Inverno é cada vez menos inverno, menos branco, agora, mais frio, mais afiado,

Com um fumo doentio, longe daquele de outros anos, que iluminava as ruas como um cobertor

Familiar, quente e aconchegante. Os vizinhos deixaram de ser bonsdiasnosdêdeus,

Os olhos cansados de culpa, que culpa (não sei), os passos cheios de medo do sino da igreja

E da sua vez e cada vez menos os que se lembram do teu nome, cada vez menos dos que

Sabem o teu nome a reconhecerem-te nos teus actos, agora que é tão mais difícil regressar a casa,

Agora que casa não é casa, mas umas paredes onde cresceste, onde poucas vezes foste infeliz,

Onde ainda vivem as tuas raízes, tão distantes dos frutos tristes que te pingam dos dedos,

Os mesmos que um dia passaram pelo pêlo do teu cão, verdes do musgo, rasgados das fragas,

Fugindo de tempestades inofensivas, entrando em virgindades recuperadas, longe, longe…



22.06.2011



Turku



João Bosco da Silva

terça-feira, 21 de junho de 2011






Um Trasmontano Em Estocolmo




Estávamos nós a conhecer as praias brasileiras e estes de machados em punho a regressar

Do novo mundo,

E hoje sinto-me mais feio que nunca, um cão rafeiro rodeado por bonecas e bonecos de carne

E boa estrutura óssea, como se fossem um acidente feliz da engenharia genética, com a sua sociedade

Que mais parece um filme de ficção científica sobre um futuro optimista. Chove, chove muito

E até por dentro, a água corre por mim e quase me torno menos tosco a uma distância segura,

Se ao menos uma máquina de barbear ou menos cabelos brancos entre a cor da terra, outra postura

Que a de batido pela vida (cão com rabo entre as pernas), mesmo que ela me sorria tantas vezes.

Fui feito para viver num castro, dormir entre granito com musgo verde a crescer por fora,

Comer pão de bolota e armar emboscadas aos romanos que tornaram as distâncias tão curtas

E o mundo tão pequeno (e nós ajudamos), com as suas estradas, as suas pontes, as suas sandálias...

Estes vikings irritam-me, incomodam-me como o sol de Agosto às três da tarde contra a minha pele

Ironicamente pálida, sensível, revestindo uma alma de granito, raízes de Torga e geada das manhãs de Janeiro.

Apetece-me demolir estas casas de bonecas e nas ruínas acender uma fogueira que torne a noite

Numa eternidade pequena, das que trazem alma à gente de hoje. Inveja das três coroas,

Do império nórdico, eu que finalmente trouxe os meus olhos verdes além das montanhas,

Depois de antes de tanta glória e terramoto, tanto inimigo diferente, só as fogueiras permaneceram,

As antas com os ossos esquecidos dos meus prováveis antepassados, inveja da casa que nunca tive.



19.06.2011



Estocolmo



João Bosco da Silva




À Psiquiatra Loira



A psiquiatra, se não fosse dos que querem o mundo impossivelmente seguro,

Medicando loucos, loucos medicando loucos e a loira a desejar uma loucura

Com a minha cara selvagem a ser chuva quente e afiada na dela,

Até lhe arriscava os lábios, assim só os certeiros que nem todas merecem a paciência de um beijo.

Algo me diz que Alberto Caeiro era um doente de Alzheimer e esquecer tem uma

Certa tristeza bela e libertadora, uma novidade que a memória tantas vezes insiste

Em chamar “outra vez”, como se a vida não fosse momentos, mas um momento

Aborrecidamente longo e repetitivo, com déjà vu atrás de déjà vu

(Tão curto quando o fim nos aperta com o que nos resta para existir contra a eternidade).

Espero nunca cair no ridículo de perguntar a quem me estiver a morrer (um dia talvez alguém):

Ainda me amas – que interessa saber se luz, quando o interruptor já vai longe a abrir

O circuito para a escuridão. Desculpa-me, desculpa-me por te perdoar, porque eu nunca

Me perdoarei as vezes em que disse não, que engoli a felicidade como se algo prescrito por uma

Psiquiatra loira, com perguntas às quais ela sabe a resposta, só para meter conversa

Dentro da “sanidade” permitida e esperada de um louco que medica loucos e só a morte é justa

Porque tem um mesmo saco para todos: o último fim é sempre o início da eternidade.



21.06.2011



Turku



João Bosco da Silva

sexta-feira, 17 de junho de 2011


Juncos No Lameiro Do Meu Avô E Outras Interjeições Sem Tentar Ser Estrume De Betão


Não há nada como o cheiro verde dos juncos no lameiro do meu avô numa tarde do fim do verão,

Impossivelmente fresca, a vida, o sangue não parece e é, raízes que desenham o calor que tentamos,

Enquanto o sino da igreja de outros séculos ainda nos diz que são horas de regressar com as vacas,

Com o estômago reconfortado com o pão tosco e as fatias grossas de queijo, porque o Tulicreme

Acabou e é domingo, daqueles domingos de uma sexta-feira à noite a milhares de quilómetros da felicidade

Em quilómetros de tempo, só comparáveis àqueles que atravessavam o Marão, nas segundas

De sono mal dormido entre curvas e cheiro a suor ao lado, ou uma velha chata que insiste em conversas

Segunda-feira pela manhã, quando o ódio pela vida começa ligeiro como um bebé de noites pesadas,

Pelo amor de deus, ainda falta muito para o inferno, ou acordei com esta dor sem dor, já a descer

E nem se nota a diferença de pressão, de pressão verde dos últimos anos a preto e branco

E cheiro a entre pernas, de amanhã ou horas de ontem, o que se quiser, o que se puder evitar

Como um ponto final, daqueles que se agradecem como mulheres das que nos matam e ainda bem,

Só assim se pode renascer de novo, estender as asas flamejantes e continuar a fazer merda pela vida fora,

Porque não há outro sentido, além do sentido único, entra: sai e tem que ser, viva o kitsch

E o Milan Kundera, que me vem com tretas de balanças, mas o que interessa é que me chupou como

Se o amor fosse algo verdadeiro, mas resulta, mais a ilusão, a promessa muda, que a palavra,

Evite-se ou ser-se-á evitado, tal o ridículo das vacas que nem dão leite se leite engolem,

Nem bifes, porque a igreja diz que é pecado e as leis dizem que vais dentro e na verdade mete nojo,

Porque a carne não se quer doce, sendo tão amarga enquanto se move pela vida a fingir que vida,

Mas não há nada, nada como o cheiro dos juncos, junto daquele poço onde se afogou o cão do meu avô,

Naquele lameiro da mitologia pessoal, onde o início do inferno tem consciência em forma de uma ressaca,

De dedos mal lavados e candeeiros loiros que pingaram luz e ainda bem que a barba ainda escassa na altura,

Ou resíduos colados à esperança da continuidade, antes, antes de antes e do sem sentido

Que é a vida vida… nunca saberei o que é a vida e morrerei e serei esquecido e será como se nunca,

Por isso agora, portar-me-ei como se nunca e já é nunca, o que acabou de ser, esquece-se tão rápido

Uma estrela, que a luz persiste, depois, depois e quanto mais distante do nosso mundinho,

Mais tempo a luz tardará a chegar, mas chega, para nunca mais, para mais um orgasmo

E até nunca mais, que o nosso filho nunca será e se for, nunca nosso, um estranho familiar, o mais estranho

De todos, o mais próximo, a ser pedaços de nós, mesmo não fazendo ideia que os juncos

Cheiram a verde e a chuva em Agosto enche as veias e há festas e adros de igrejas, escuros,

Onde o pecado sabe melhor, sente-se pouco por causa dos finos e da música reles,

Cheira tão bem ser chamado de Amigo por um amigo, daqueles que nem é preciso falar muito

Para saber muito sobre, mas sabe tão bem, quase tão bem como mijar dezenas de cervejas de uma ponte

Romana para um rio que seca cada vez mais, todos os anos, por culpa dos espanhóis, dos portugueses

Sem tomates, porque todos devem ter morrido depois do Brasil e da Índia e se restam alguns,

Acordam demasiado cedo de manhã para cozerem o pão, ou para curarem os mais doentes,

Ou para levarem os doutores a lugar nenhum onde fazem tudo menos alguma coisa,

Ai o cansaço disto tudo, a estas horas de gotas lentas e chatas, sem juncos, sem aqueles juncos

Ao pé do poço, naquele lameiro verde, vale em miniatura, onde o meu avô me esculpiu a felicidade

Em forma de bois de cortiça, hoje tão perdidos quanto o camponês que tenta ser poeta,

Num mundo onde só idiotas de betão com cheiro a estrume nas ideias, são reconhecidos como poetas

E lá no fundo próximo da sua alma, corpo, querem encher a boca não de palavras, mas da minha carne tosca.



17.06.2011



Turku



João Bosco da Silva

quinta-feira, 9 de junho de 2011


Enquanto Se Dorme A Realidade Fermenta


Não pode ser, ainda é cedo, mas alguém anuncia o fim do mundo,

Em forma de mulher histérica prestes a explodir em milhões de aborrecimentos fatais,

Só resta fugir para o bunker de luxo com os amigos inesperados e o luxo

Publicidade enganosa, mas que mais pedir da sobrevivência num mundo de brincar

Às probabilidades pequenas? Cimento, um divã sem colchão, latas vazias de cerveja,

Se ao menos cerveja para esperar a morte e que se lixe, se for para morrer

Que seja com os olhos postos no Sol, atravesso um buraco na parede

Em direcção à luz do pecado e da morte e finalmente luxo, uma casa com cortinas de veludo

Vermelho, colunas de mármore branco, sofá de pele branco, uma cama gigante

Em forma de Lua à espera, uma temperatura perfeita com o Sol a ameaçar um fim do mundo.

A perfeição não se pode sentir sem companhia, e pela janela agarro uma morena

De vinte e dois, vinte e cinco anos, com o cabelo à francesa, olhos portugueses

E lábios desesperados por abuso. É o fim do mundo, o dia tem já a cor do crepúsculo

E de uma forma mais natural do que um cumprimento cordial, começamos a procurar

Os limites da carne e ela gosta que lhe explore as vísceras com violência,

Não lhe vejo a cara nesta posição, mas sinto-a a ser toda à minha volta,

Ela sabe que aquela casa não é minha, que eu não sou de ninguém, mas sente

Que me dou como se fosse a última vez para sempre, num eco pela eternidade,

Ejaculo-lhe como se a vida se escoasse toda para dentro dela, um excesso impossível

De mim, e apercebo-me que não trocamos uma única palavra.

Os meus lábios abrem-se e o frio da madrugada acorda-me com a pele colada

A um sofá castanho, uma dor de cabeça a ser gente ao meu lado

Com as calças ainda desapertadas, com um gosto gástrico na boca

E com a sensação de que se fumar um cigarro agora, o fumo levará todos os pecados

Que a noite insiste em manter quase como se uma recordação legítima.



09.06.2011



Turku



João Bosco da Silva






Acordo de manhã,

Olho-me ao espelho:

Desculpe, foi engano.


Turku


09.06.2011


João Bosco da Silva

terça-feira, 7 de junho de 2011


O Meu Avô e Bukowski


O Bukowski podia ser meu avô (ter sido), mas o meu avô só bebia e em vez de escrever

Caçava, trazia fardos de contrabando de Espanha e tratava da sua vinha: circunstâncias,

Necessidades e países diferentes. Tenho pena por não ter escrito enquanto ele recitava,

Algo mais que poesia, vida e amigos da guerra civil espanhola, ironia e seu irmão da polícia secreta,

Meio-irmão e outro em França com uma vida que levou com ele, três irmãos de três pais diferentes,

Nenhum deles Bukowski. O meu avô sabia ler e escrever numa aldeia esquecida por todos,

Menos pela fome e pela guerra, num país analfabeto, governado por um hipócrita de voz esganiçada

E sem força, o meu avô ia buscar ao monte carne fresca e sabia mil e uma maneiras de evitar

A fome, mesmo no Inverno com a água do rio tão gelada e peixes fritos em azeite das suas oliveiras

Pequenas. Como Bukowski, o meu avô tinha a língua solta, o pavio curto e mesmo assim tinha amigos

Num raio de quinhentos quilómetros, aos quais tratava por “azeiteiro” ou “paniscas” ou “meu filho (da puta)”

Quando não “mandicante” e agradeço-lhe a falta de travão na gola e nos dedos,

Neste mundo cheio de merdas, de rodeios para perder tempo, enquanto se morre sem se contar.

Muitas vezes vejo o meu avô em Bukowski, como se em vez de ter aparecido no mundo em Cidões,

Em Los Angeles, nascido em Andernach, mas morreu numa cama de hospital, amarelo,

Deixando no mundo, ao mundo as palavras: Aniceto Estêvão da Silva.



Turku



07.06.2011



João Bosco da Silva

domingo, 5 de junho de 2011




Às Três Pancadas





"Dai-me uma mulher tão nova como a resina

e o cheiro da terra."

Herberto Helder



O teu cabelo cheira a terra molhada naqueles dias de verão de olhares castanhos a demorarem-se,

Como quem arrisca um pecado dentro, uma corrupção pequena e quase inocente e um medo

A sinceridade do corpo que floresce, e a barba cola-se a ti com a mesma vontade dos cães,

Sem artificialismo, só a pureza da tua barriga em prega logo ali, enquanto me perco dentro do teu sabor,

A carne fresca, animal jovem que grita, que geme numa dor que antecipa, na escuridão de uma noite

Que irá arrefecer até ao final forçado, por falta de força de um sonho que se extingue de manhã,

Como a lareira fria na casa dos avós, como a cera inútil de uma vela espalhada pela mesa,

O esperma e o esforço cobrindo a inutilidade de uma pele docemente pálida e fria,

Mesmo debaixo de tantas mantas poeirentas, antes da geada da manhã da terra pequena,

Repousando a machada da noite anterior ao lado da mudez dos cães cansados das estrelas,

Dos olhos e da ilusão que se mata depois de tantas vezes dentro das vísceras, sem nunca se ter tocado,

Ter deixado tocar o interior impossível, só palavras foram tentadas e são sempre demasiadas

E ridículas, tão grandes e tantas, insignificantes à sombra da carne que arrefece

No medo do calor verdadeiro, desconfiando das mãos vazias cheias de força para arrancar

As amarras da tristeza, do tédio, mesmo de quem espera nada do purgatório de seis meses,

Antes de um ponto final que é seguido de mais dois pontos, uma última vez que ficou suspensa

No infinito de até à morte, por uma razão que não interessa nem ao diabo, cansado de saltos em fogueiras,

Saltos em adolescentes estúpidas e abertas, convencidas da sua originalidade no pecado original,

Enquanto os calos crescem e as cicatrizes encolhem e deixam dentro uma pedra pequena,

Umas areias, o pouco que da infância, o pouco que ainda puro e um sorriso nasce quando se pensa

Na malícia ridícula das mamas adolescentes que a gravidade torna velhas, a tentativa de unhas pequenas,

Frágeis por uma alimentação pobre em liberdade de espírito, em arranhar quem além do bem e do mal,

Quem além, desde antes de ser, desde antes da vontade de vontade ou a noção que nunca despertará

Nessas mãos como almofadas alvas que me envolvem o desejo que fiz crescer com música e coincidências baratas,

Fascínios inventados no sinal do teus olhos, que vidro, culpo o inverno e o seu gelo imparcial,

Culpo a saudade do que deixei por cansaço, culpo as linhas que envolvem a minha nacionalidade,

Culpo a tua idade, a minha morte sempre a provocar-me com o chumbo do meu avô,

Sempre a contar-me a bilirrubina séria, a tosse seca e os preservativos que se esqueceram em casa,

Numa noite de duas ou três dentadas nas maçãs vermelhas que me pintam a roupa negra

De traças por dentro, como na época das masturbações em becos escuros,

Enquanto as mães desapertam o cinto dos amantes e se ajoelham, até Domingo de manhã,

A cura para toda a hipocrisia, toda a gordura e musgo seco, longe dos dias de Agosto,

Antes dos beijos secos no ar humedecido pelo teu desejo, a tua fonte segura de entrada livre,

Sem cuspir nas mãos, à porta do brilho dos teus olhos naquela noite fria do último beijo para sempre

Suspenso no arrependimento do primeiro luar, nosso, de todo o mundo, escondidos

Na evidência de mais um mexerico, mas os meus espelhos partidos e os olhos para dentro,

Escondidos dos tamanhos fora da minha divisão simbólica, quando a paixão é maior

Que todas as mãos pequenas que tentam parar a avalanche de magma, a explosão no teu colo

Do útero, jovem, certamente com sede de fertilização, ao mesmo tempo tu um gato

Que se enrosca na aparente segurança do sofá, do pai e da mãe, do amante, dos segredos

Que todos sabem e os importantes ignoram para poderem manter a cabeça erguida,

Procissão de madeira apodrecida e carunchosa, com grelado, por isso tu tão fresca nos meus olhos

Foste, quase uma Lolita, o teu doce perfume de rebuçado misturado nos dedos cheios do teu sumo

Na tua boca, os teus dentes pequeninos de leite, do meu, na tua timidez forçada, fingida, pela qual me apaixonei.






Turku



05.06.2011




João Bosco da Silva

sábado, 4 de junho de 2011






Na Praia Com Nietzsche




para os irmãos Diamantino, o Macedo, o Pereira, o Ferreira e o Pires,




Numa casa de férias em Esposende com dezasseis anos a ser tanto, tão fresco,

Tanto espaço nestas mesmas mãos, golpeadas pelo tempo, pela morte dos sonhos

Mil e muitos poemas depois com outras tantas masturbações,

Na varanda, enquanto a camisa azul do dragão branco seca, um livro de Nietzsche

A tornar especial o momento, os amigos a ver televisão, outros na casa de banho,

Outros deitados a curar ressacas pequenas e na casa em frente um aniversário

Onde entram belas adolescentes que me descolam do interesse ridículo por filosofia

Aos dezasseis anos, ainda a latejar as últimas palavras da Crónica de Uma Morte Anunciada.

Nunca serei maior do que isto, nunca terei melhores amigos e nunca ninguém me conhecerá

Tão bem como eles, sem palavras necessárias, sem a confissão dos primeiros poemas,

Escritos quase às escondidas na mesa da cozinha, com muitas pausas e olhos

Fixos no horizonte que a janela permite, tão longe hoje, tão longe a varanda e a brisa do mar,

O farol e a insónia de uma liberdade de Abril, ainda com o sal na pele de um assalto à praia,

Com sede de uma primeira cerveja alemã que ficará para sempre, para o sempre que se tem,

Mitologia pessoal, marcos históricos que morrerão com o último cansaço,

Quando o corpo desistir de nós, e deixar as revistas pornográficas à beira do chafariz

Enquanto gente que não era do nosso mundo passava, com uma revista do Homem Aranha

Ao lado do Além do Bem e do Mal, que acabarei na vinha do meu pai,

Enquanto à volta tudo cheira a enxofre e primavera. Que monstro é este que me escreve,

Como se fosse dono das minhas memórias, dos meus momentos pequenos

Que me tornam o que sou? São os pequenos momentos que nos tornam grandes e diferentes,

As saudades secretas, os sonhos que aos olhos do mundo grande são pequenos e por isso não

Se mostram, mas trocava-se Paris, Londres, Estocolmo, Helsínquia, Amesterdão, Zurique…

Trocava-se tudo, tão estranho ao coração, por aquele Porto, aquela primeira vez, só nós,

Tão longe e tão perto, e lá fora o mundo nunca será o mesmo aqui dentro,

Não quando o candeeiro de rua às quatro e meia a iluminar a bola no parque de estacionamento,

Longe, perto da piscina, Nietzsche no bolso do casaco, o telemóvel cheio de mensagens de amor

Enviadas ao vazio, à desilusão por uma ilusão insuficiente que marcará por dez anos

E os que virão, se houver só mais uma vez, uma última vez, aquela varanda,

A brisa húmida do mar, melhor que qualquer cheiro íntimo, imaginando eu aquelas adolescentes,

Que hoje sei que não estarão tão convencidas do seu poder, deixei de guardar as palavras

E elas são muitas vezes o que os sonhos são, mas sem medo, que a morte está além de tudo

E virá quando vier, da forma que for, longe ou perto de Esposende,

Longe ou perto da memória quando ainda a entrar nos olhos, no nariz, na boca, na pele

Sempre pálida, adolescente, encobrindo uma alma de dezasseis anos até ao fim.

No próximo ano conhecerei Pessoa, o conterrâneo Torga e nunca imaginarei que eu também

Uma belga, o Vergílio Ferreira e nada será o mesmo, pois não estou só, nunca estive só, nunca estarei só.





Turku





04.06.2011





João Bosco da Silva






Não Um Poema de Amor




O rio parece quase frio e a noite nem permitiu escuridão, o azul quase desmaia,

Mas os seus olhos continuam a procurar o meu sorriso, sorri e o rio passa,

Enquanto a arte se tornou em algo para agradar, exprimir o que se espera que se espere,

Flutuando em águas cansadas e castanhas, enquanto as cinco da manhã se aproximam

E o banco de jardim se torna pequeno, enquanto imagens tão parecidas com outros nomes,

Outro perfume, outros rios, outro amanhecer invertido: a vida é uma sucessão

De momentos que se repetem sempre de forma diferente, agradeço a miopia,

Olhos para coisas pequenas, próximas, que além os braços não chegam.

Não interessa quem passa quando as horas se escoam pela minha uretra

E as paredes da biblioteca impedem-me de ser dentro, sempre excessivamente dentro,

Mesmo quando os lábios se encontram e as portas do táxi se fecham e levam a noite,

Levam a memória, deixam o cansaço, o peso da possibilidade, a responsabilidade

Da oportunidade a latejar nos lábios e tem havido noites sem estrelas,

Um frio que não se sente e sem saberem, todos regressam a casa sós e mais pequenos,

Tentarão florir, mas perceberão que às quase cinco da manhã ainda é tarde para começar,

Leva-se a companhia do aroma do interior de alguém, o aroma doce de mais uma derrota conquistada,

Mais um nome que será olhos azuis, o tamanho dos seios nas mãos, a cor do cabelo espalhada

Pela carne salpicada de orvalho, ou suor, não interessa, já é tarde, a casa aspira todos ao vazio.





Turku





04.06.2011





João Bosco da Silva

sexta-feira, 3 de junho de 2011






O Amigo e o Meu Pai



para o senhor Fernandes e o amigo dele,



Já não se plantam amigos como aqueles dois, juntos no Natal, nos aniversários dos filhos,

Já não há quem partilhe o vinho, o vinho da colheita, já não há quem leve legumes frescos

Ainda com a terra a tornar-se pó na roupa, já não há quem guarde o javali para um dia

E o dia realmente chega, ou mata-se hoje um porco e a festa é em casa de um

E há sangue, merda, geada nas mãos, piadas que nunca se gastam e alegria que mesmo cansada

Dos anos, persiste, apesar de o cabelo abandonar as duas cabeças aos poucos,

De as rugas os visitarem todas as manhãs, de os filhos andarem por longe, nas suas guerras,

Tão diferentes da que eles lutaram pela mesma razão: pelo país, ou por causa do país.

Não há mão tão feliz no mundo como a que segura a pata do coelho bravo

Cozinhado pela mulher do amigo, não há copo mais refrescante que um dia de Agosto

A desmaiar aos poucos no dia do arraial da terra, tinto, pisado a quatro pés, sorrisos

E olhos verdes, com o futuro ali, a ser aquelas horas de patrulha, aqueles segredos que só

Eles sabem, enquanto rasgam a terra como foram ensinados nas suas aldeias frias de pedra

E esquecimento, recordando a cada semente atirada à terra a dureza e a crueldade

Da necessidade em tempos que aos de hoje, parecem filmes sobre a idade média,

Há uns cinquenta anos atrás. São tão família, como família pode ser, quase vinte anos de

Cumplicidade, açúcar do contrabando, fome a carne, ainda essa, com um brilho nos olhos

Quando uma loira passa, quando uma flor desabrocha, quando a terra se abre

E os filhos a casarem-se, os filhos a torna-los velhos, eles que sempre foram,

Sempre estiveram, eles que terão sempre o cheiro da terra na pele, como se amizade.

Impossível imaginar que eles um dia tão quietos como aquele perdido que encontraram no rio,

Inchado e o meu pai amarelo ao chegar a casa, mesmo quando andava sem beber,

Impossível eles como aquele que se esqueceu do capacete em casa e da cabeça numa valeta:

São eternos como o granito que lhes aborrece a enxada e não há manhã fria

Que lhe atravesse as ceroulas de algodão que as madrugadas lhes ensinaram,

Enquanto alguém tentava abrir o suor de alguém e roubar-lhe o sangue,

Com eles a tentar aquecer as mãos com a expiração em concha na boca,

Fechados num jipe de latas de sardinhas recicladas, enquanto alguém assina o nome

Por baixo, sem olhar as faces geladas daqueles dois amigos, que nunca esquecerão,

Porque não são de pó, são de granito, desde a pedra dos três reinos à pia templária do mosteiro esquecido.




03.06.2011




Turku




João Bosco da Silva