quarta-feira, 26 de outubro de 2011


Poema Sob Um Cinzeiro



Os olhos perdem-se num vazio qualquer dentro dos teus, mesmo longe, procura-se um cheiro

Familiar na impossibilidade da solidão e acende-se mais uma pausa no encurtar do que é

Uma pausa na eternidade, o céu escuro numa noite atravessada por relâmpagos

E fomos aqueles clarões perdidos no esquecimento de quem adormece agarrado

A uma imagem de Santa Barbara de costas para a janela onde o mundo é quando olhos.

Inutilmente buscam-se os lábios nas letras de canções que alguém desconhecido escreveu,

As lágrimas às vezes reconhecem uma melodia com o mesmo ritmo do suor do teu corpo

Convulsivo colado à minha pele cansada dos anos e suja pelos pecados que me têm escrito,

Não percam as palavras enquanto se encolhe o traço do infinito e mais uma oportunidade

De repetir tudo, porque uma vez é para sempre no eterno retorno, tu lá, uma vez

É um espelho que reflecte outro e a minha carne estilhaços e azares que uma ejaculação

Alivia como se de ácido fosse o meu esperma, destilado de uma alma selvagem,

Animal, sem profundidade palpável nas pupilas dilatadas pela tua excitação fluida

E nunca foste tão sincera como quando contaste à minha pele a viscosidade dos teus sonhos.

De nós restou a distância, um elevador que nunca mais se abriu, um andar que se esqueceu,

Uma noite em que a cidade foi rasgada com garrafas vazias e a tua língua com o sabor

Doce do teu perfume e do cigarro que fumamos juntos, enquanto sem saber bem o quê,

Procurava o teu nome na saliva silenciosa que o futuro tornou numa imagem feita de palavras.

Existes na chama do isqueiro, como nos sonhos que não peço, trazem-te tão não tu,

A ideia de seres tu, o cabelo de outra cor, a impossibilidade de te cheirar, e o meu hálito

Na almofada ao acordar num quarto desconhecido, o ácido espalhado no estômago

De um nome que secará mais rápido que o arrefecer das cinzas, a rua geada,

Os olhos abertos sem a vontade de verem e o mundo à espera dessa vontade para existir.

Palma com palma, joelhos no granito frio, irregular a dar à vida o sentido que ela não tem,

Os olhos fechados criando todas as impossibilidades possíveis na escuridão, como tu,

Numa cidade sem trovões, onde não há luz, porque os meus olhos hoje se fixam,

À distância do tempo, num vazio qualquer dentro dos teus, e sem pensar, vejo-te vir

Em direcção à varanda, onde o castelo e as luzes da cidade, sentares-te na sede do meu colo.




26.10.2011



Turku



João Bosco da Silva

domingo, 23 de outubro de 2011


A Origem De Uma Estrela De Neutrões



Torna-se difícil respirar quando tanta ausência ao mesmo tempo aperta o que já cansaço,

Pior quando se assiste aos joelhos da multidão em vénias ao ridículo, exaltando o fútil,

Vontade de ser almofada o dia fora, até se escoarem todas as frustrações em sonhos

Que o resto, quando acordados, são impossíveis e cães abandonados porque cresceram,

Envelheceram e dá pena abatê-los, a dignidade é algo que fica muito caro neste mundo.

São as sete, está escuro e não interessa, são as sete, o rádio parece ter-se resignado

Ao resto dos joelhos e torna-se em mão no ombro a, ajoelha-te, cabeça baixa,

Há quem durma e há quem não acorde nunca mais, invejam-se os que não tiveram

Que ser a ilusão de tudo em menos de uma centena de anos, bem menos,

Menos que tudo, umas mãos com vontade de levar tudo, deve ser do vazio no infinito

E passa-se lá tanto tempo, mas ninguém passa lá tempo nenhum, ninguém é além

Do momento consciente, nada mais que a pele que outro pouco mais que nada beija,

Dão-se existência em carne, o sangue pulsante crepita na memória acesa enquanto

Não vier o sono sem sonhos e até lá todo o tempo nos é permitido, arrastados

Alguns levam o cansaço, o fumo ajuda os pulmões que os olhos cegaram, outros

São tão joelhos, tão bocas de fome e barrigas cheias, uma pressa de estrela cadente.



23.10.2011



Turku



João Bosco da Silva

sexta-feira, 21 de outubro de 2011



No Mundo De Onde Venho




Às vezes basta uma pessoa sentar-se, dar um suspiro ou dois e olhar através da janela,

Algo vem a iluminar, nem que seja uma nuvem que se desvia, por misericórdia,

Um pássaro que no ramo da árvore mais próxima te dedica um olhar breve e regressa

Ao seu mundo de ar e alturas, às vezes nem um cigarro te acende a alma,

Nem o sorriso naquela foto, que esqueceste como se rasgava, daquelas coisas

Que não se pensam, não se aprendem, florescem e quando o Outono vem, impossíveis.

No mundo de onde venho, a gente cura-se à força de álcool, trabalho duro e mal pago,

Infidelidades desnecessárias, nem sempre gratuitas, más-línguas e tradição,

A gente tem tudo para ser triste, mas não parece triste, só quem lê olhares

Percebe, só quem se senta no balcão e bebe o desespero daqueles bancos vazios,

Tão longe e impossíveis de partir, o cansaço das asas, das penas e as raízes

Dos lugares familiares, a mulher do amigo, aquela divorciada, a puta que sacia

O desejo por umas valentes gotas de suor ao Sol, à geada, e amigo é quem paga uma cerveja,

Uns oitenta cêntimos a significar tanto para uma sede que nem se tem, é outra coisa,

Que surge, quando se senta, se debruça no balcão e nem um verso, só a tristeza

A negar ser palavras e para quê palavras, um gajo encosta-as contra a escuridão

E chora aí as lágrimas leitosas que são permitidas aos homens de verdade.

Ninguém anda deprimido, aqui ninguém é maluco, há dias tristes, há dias

Que de manhã a lareira até custa a acender, mas depois lá vai, há quatro ou cinco

Dias no ano em que tudo vale a pena e o resto é a vida, não é, a vida não é fácil,

Mas a gente aqui não vive mal e vive-se tão mal, à espera de algo que não vem,

Que está, sabe-se lá onde e a pernas tão cansadas dos dias, das noites e souberam tão bem

Aquelas noites no hotel, quando ainda era nova e aquelas prendas me destacavam

A beleza, hoje destacam o ridículo em que me tornei, os olhos tornaram-se vergonha,

Tão castanhos, porque o povo às vezes também acerta, foi pena terem fechado

As casas de putas das redondezas, agora um gajo tem que ir até longe e

Às vezes um, tu também por aqui, só com os olhos, porque ninguém se conhece.

Às vezes basta uma pessoa sentar-se, dar um suspiro ou dois e olhar através da janela,

Outras vezes é melhor correr as cortinas, ignorar impossíveis, aceitar o Inverno,

Desviar a cara de qualquer reflexo e acreditar que todas as promessas foram cumpridas

No calor do momento, e hoje, quem resta é apenas a testemunha de que a vida,

Foi no fim de contas uma teimosia contra o nada e o esquecimento.




21.10.2011




Turku




João Bosco da Silva

quarta-feira, 19 de outubro de 2011


Anticristo



A cruz lá no alto, a pesar nas mãos que andavam para deixar cair deus, a procissão

Longa, até ao alto do monte onde uma capela, muita história naquele monte, de algumas

Lembro-me, porque já celebrava aniversários e fazia nascer novos dias à força de cerveja

E muitos cigarros, outras da idade do bronze com vestígios de algo mais real do que aquilo

Que as capelas representam, e a cruz firme nas mãos prontas para o destino,

Prontas para largar mais do que o que esperavam, menos prontas para abraçar novos sonhos,

Porque o futuro uma obrigação e ninguém gosta de ser obrigado, como ninguém gosta de

Morrer, a não ser nas noites em que insónias e uma uva passa taquicárdica a tornar

A almofada demasiado pequena para as recordações que pingam sem cessar,

Umas gotas de suor escorrem, uma pequena pausa, pousa-se a cruz um momento

E a mão a passar na testa, pálida, sempre pálida, e o que levava a cruz não era a fé,

Uma teimosia, nada parecida à que julgam ser a teimosia de deus morto e reconheço

Que Nietzsche me ajudou a sair, anda, anda, não és o único, não te convenças disso.

Como estará o paciente que ontem recusamos à morte? Às vezes custa­-me tanto que tudo

Dependa de mim, mas não tenho sido tão mau a fazer o que não sei, tenho vivido até aqui.

Não sei exactamente quando deu o último suspiro, em mim, porque na verdade,

A existência de deus depende de cada um de nós e respeito, não compreendo, mas respeito,

Quem insiste em comprimir-lhe o tórax, alguns só o abanam, está aí, acorde,

Desconfio que foi na missa no coreto, naquele mesmo dia, olhei para o horizonte e lá

Longe, não deus, montanhas, a ligeira cor cinzenta da distância e um alívio no peito,

Quase um vazio e todas as palavras do padre me pareceram ridículas, sem significado,

A hóstia soube-me a hipocrisia, a faz lá o favor à gente, a não sejas o único,

Mas não durou muito mais, a cruz começou a tornar-se demasiado pesada.

Afinal, o paciente ainda por cá anda, graças a deus, hoje até veio a família visitá-lo,

Tão novo ainda, o olhar assustado do filho, para onde me querias ir tão cedo, deus é que sabe,

Deus é que manda, mas quem sabe é o coração, às vezes os pulmões, os rins,

Aquela coitada o fígado e é do que somos feitos, não de deus, acreditem, que nunca vi

Nada além de uma linha verde recta, em direcção ao infinito, uma hora e fizemos tudo

O que podíamos, uma cor púrpura que parece escorrer de uma palidez amarela,

Mas se for melhor que um anti-depressivo, tomem deus aos domingos.

Tentei mais uns tempos, minha mãe contente, os amigos também ajudavam à missa,

O padre era um bom amigo, porque chorou ele no funeral do pai se está tão certo de que além Disto melhor e há deus, não me parecia uma pessoa egoísta, desconfio que

Dos fumos na igreja, vento, o visceral embate da morte contra todos os dogmas religiosos não

Deixa espaço para certezas do incerto. A cruz lá no alto, a oscilar no cansaço de uma ovelha

Que se perdeu da alienação, olhou além da altura da cruz, a uns palmos da cabeça,

E afinal havia céu, à noite tanto céu, tantas estrelas, tanto que torna tudo dentro tão pequeno,

Um pequeno grão de pólen no infinito onde não cabe deus, dizem que é demasiado grande

Para isto tudo e prefere viver em cruzes, pastilhas de incenso, hóstias e água colonizada

De fieis, que espia e censura palavras, ideias progressiva, mas não uma guerras,

O cancro de uma criança que ainda nem palavras, e claro ainda não acredita nele,

Sem palavras não há deus, ele é o verbo e todas essas tretas todas que as montanhas levaram,

As estrelas incineraram e Nietzsche a dizer que sim com a cabeça com o peso do bigode,

Enquanto garotas, porque eu dezasseis, um homem, entravam na sacristia e eu feliz por ter

Uma desculpa para abandonar a cruz e a batina branca de acólito e deixar a hipocrisia a

Quem não gosta de olhar para o céu à noite e tem medo do infinito como do vazio

E quer fazer da vida uma sala de espera para a eternidade, de joelhos e olhar de vela mortiça.



19.10.2011




Turku



João Bosco da Silva

domingo, 16 de outubro de 2011


Regresso



Trago comigo os quilómetros multiplicados pela saudade improvável de um quarto de hora,

Ou menos, que a estação não fica tão longe e já se cheira a Trindade enquanto troco o saco

Com a roupa lavada de braço, que se tornou demasiado pesado com os paralelos sujos

Das ruas timidamente iluminadas por quase candeeiros no nevoeiro desta cidade doente.

Sei que me espera a conversa de sempre e será inevitável o sorriso no chão, que pisarei logo

De seguida e não é por falta de vontade, o bolso ainda tem o dinheiro todo para a semana

Menos o que foi para o bilhete de autocarro e há fomes piores que um estômago vazio,

Num quarto escuro de uma cidade que parece que nos esmaga apesar do seu tamanho,

Olá gato, queres subir, e o sorriso logo com os pés apressados, o medo do desejo,

A moral quase tatuada a apontar-me um dedo impossível, que só nas vísceras, onde se digere

O cadáver de deus, porque está frio e elas quase nuas, tão jovens, pouco mais de vinte,

Provavelmente menos, que esta vida lhes envelhece o corpo, mas a alma já deve estar

A viver de uma pensão que uma mão de boas recordações lhe envia algumas manhãs,

Quando o sol se torna mais forte que o nevoeiro e chega, lá da foz onde acordam alguns

Drogados do sono que foi a sua vida, e tudo me parece tão distante aos dezanove anos,

Tudo me parece tão pesado, a luz cansou-se, a lareira se pudesse, trazia-a comigo

E partilhava-a com aqueles que dormem lá mais em cima, no viaduto, debaixo de papelões

E mantas sujas, a minha avó tem melhores mantas a alimentar as traças nas malas,

Mas o nosso inverno é afiado, talvez por isso não durma ninguém nas encruzilhadas

Dos caminhos de pó em direcção aos soutos do meu avô. O que farão elas neste país

Que hoje me parece o melhor que existe, apesar de Espanha não ser tão má, apesar de estar

No estrangeiro, se elas soubessem que aqui as promessas consomem a gente, arrancam

O brilho dos olhos e dão de mamar aos velhos gordos de gravatas apertadas,

Só sabem que o único leite que lhes oferecerão a beber é o que lhes dará de comer

E um envelope amanhã para o país frio onde os pais definham e a irmã tenta não

Cair na necessidade de vir conhecer os clientes da solidão, uns que vão, quase fogem,

E se fecham nos quartos pequenos, abrem o saco e levam os tupperwares ao frigorífico

Com as refeições dos próximos dois dias, aquecem o conteúdo de um e comem o silêncio

Enquanto esperam que venha alguém, de outros lados, com sacos cheios de vida,

Um fim-de-semana, um até amanhã e boa semana se não nos virmos, a música começa.

A vida continua, lá fora, nas ruas da cidade mesmo enquanto tranco a porta do quarto,

Espero que hoje não assaltem o café em baixo, já me custa a adormecer, sabendo que amanhã

Tenho que acordar, sem uma lareira acesa à espera, sem as torradas na mesa e o café com leite,

Na companhia da minha mãe, da minha irmã e da inocência dos galos que cantam um novo dia.



16.10.2011



Turku



João Bosco da Silva

sexta-feira, 14 de outubro de 2011


Poema De Amor



Sabes, todos aqueles poemas que te são dirigidos, não são poemas de amor,

São mapas onde te encontras, desenhados por algo que cegou, não pelas minhas mãos,

Acredita, mas pela sua sombra, a sombra das mesmas que te tocaram e hoje descansam

À volta de um copo quase vazio, alheadas dos olhos, onde pingam momentos quando fechados,

Perdidos todos, mas só assim se ressuscitam os mortos, os que a vida deixou

E os que a vida ainda mata, os que têm um nome comum e os que têm um mais próprio.

Se isto fosse um poema de amor, devias senti-lo nos lábios e não como uma música silenciosa,

Devias deixá-lo tocar-te de olhos fechados, abraçar-te no ar com a vontade maior que as palavras,

Mas já percebeste que não é um poema de amor, é uma consequência da sua morte,

Porque era impossível chorar quando tu carne quente que me acolhia, quando tu

Olhos que me iluminavam a solidão de uma noite de Outono, quando tu um nome tão meu

Como o acordar nas manhãs frias, quando tu sempre certa no teu silêncio de ilusão.

O teu olhar tornou-se triste, algo se apagou de mim em ti, por isso este mapa,

Pintado com lágrimas, das que não se deixaram correr, para que pelo menos

Saibas o regresso às recordações, numa noite fria de Outono enquanto a vida te esquece.



14.10.2011



Turku



João Bosco da Silva

quinta-feira, 13 de outubro de 2011


O Meu Cemitério: A Cidade



Não sei quem chama o abafador nas horas das cidades, as paredes bastam, cheias de solidões

E vazios que iludem os olhos apressados, mas nem uma cortina se move além das janelas,

Uma aranha talvez, faminta ou resignada ao canibalismo, as manhãs frias não encaixam

No ambiente metálico da cidade, nem os joelhos no peito dos transeuntes que agonizam,

Uma batida atrás da outra que quase já nem era, um quase desmaio a manter a vida em pé.

Todas as paredes, todos aqueles sorrisos, promessas de carne e ossos, sangue na sede

De sinceridade, o aroma dos sexos que se asfixiam e se tentam anular num orgasmo,

Todo o cansaço a escurecê-las, a derrubá-las, uma a uma, contra o joelho do abafador,

Que anda longe da aldeia que o viu matar, longe do tempo de outras ignorâncias, onde o amor

Tal como deus existe, cresce, entre a ignorância, estrume de impossíveis, o súbito silêncio

Depois da última moda do arraial, quando o peso no peito ainda se sentia como a vida

A avisar que está presente, agora grita, enterra fundo os joelhos, ergue as paredes

Até o horizonte se tornar a recordação de uma sombra, fascinada pela semelhança dos cheiros

Entre cadáveres, ruínas e fumos de amores consumidos pelo tempo e pela vontade violenta.

No fim, restam aquelas delinquências nas paredes, palavras algumas, hoje quase vazias

Longe dos olhos que lhes deram alma, um corpo seco, uma língua com o presente

No futuro de todas as outras, no dia em que o abafador vencer, as paredes se tornarem

Maiores que os sonhos, mais dolorosas que os desejos, quando a cidade se tornar uma

Pirâmide invertida, um vórtice de pedra que se escoa no buraco negro do coração.



13.10.2011



Turku



João Bosco da Silva

sábado, 8 de outubro de 2011


Lição 1


Nem tiveste que olhar para o relógio para vir a hora, o tempo passou por ti

E tu nem lhe fizeste notar a tua presença, há tempo, pensaste, há sempre tempo,

Tu é que és um caso limitado e a diferença entre uma efémera e um humano

Às vezes não é nenhuma. Não viste o relógio naquela parede envelhecida,

Parado há anos, numa ironia de rugas, solidão e tristeza, encerrado tudo num quarto

Doente na baixa de uma cidade que se move como se nada dentro das paredes,

As paredes verdes que hoje azuladas e salpicadas de fungos, soalho acusador

A cada passo porque todos contam, não notas que o tempo continua a rasgar os sonhos?

Pensavas que o beijo à entrada do fim da noite era eterno e que o seu calor

Duraria até ao próximo encontro, mas nunca mais houve próximo encontro

E em ti vive apenas a ideia de ter havido um beijo, quase roubado, mordido

Com a vontade da primeira vez, com a certeza inconsciente de ser o último

Enquanto os táxis caçavam clientes a um ritmo mais lento que os travestis,

A cidade ainda lá está, mas tu não a sentes igual, só tu trazes o mesmo que és,

A cidade sabe que não és, os lábios reconheceriam a diferença e o tempo

Está-se nas tintas para a tua revolta de mais uma vez para nunca mais,

Porque já percebeste que nenhum copo de cerveja é igual, nenhum saberá

Melhor que o anterior e perto do fim da noite, quando a manhã quer

Tomar lugar, só vêm adiar a ressaca ao mesmo tempo que a tornarão pior

E o tempo passa por ti, não te diz nada, não precisa de ti, mas por seres passa,

Para seres passa, enruga-te, descolora-te, encurta-te o caminho em direcção ao nada,

Faz-te maior em cada vez menos, tira-te tudo o que te ofereceu,

Porque não percebeste ainda que tudo é emprestado, nada é, foi ou será teu

A não ser a pele sensível ao tempo que passa, sem relógios, apresenta os lábios.



08.10.2011



Turku



João Bosco da Silva

terça-feira, 4 de outubro de 2011


Vendedor Nocturno



“Dizem que atravessas com os teus passos

a solidão do inverno. E vou atrás de ti,

até onde me esperas”



Nuno Júdice



Quem te deu o direito de vender o fracasso se nasce nas pedras como o musgo,

Dos anos que passam, da virgindade das horas, do ar limpo de ti e das vontades

Desnecessárias para o movimento dos astros e de outras coisas pequenas,

Que até com asas te levam na impossibilidade dos olhos abertos, enquanto esperas,

Mais um cliente para lhe chorares uma frustração consentida, mais um nome para

O testamento dos vazios que acumulas, serás um homem cheio de terra,

Quem sabe um jazigo do tamanho do teu ego, esmagado pela realidade que nunca

Quiseste engolir, como os anos que te injectaram nas veias contra a tua vontade.

Podes entrar em mil jovens, cuspir-lhes no corpo a tua essência nojenta,

Sugar-lhes os sonhos até desde a sua rata assustada que derrete num desejo

Disfarçado de medo, mas tu, velho vicioso, sabes bem que há lábios que não mentem,

Não se confundem, só tu para lhes venderes a confusão, mas essa é toda tua,

Desde que deixaste de compreender o propósito das palavras quando

O olhar se apaga, dos gritos quando o último suspiro foi dado, das promessas

Quando o orgasmo já frio e a lareira apenas uma memória de cinza e cigarros fumados

Pela falta daquele corpo que trocaste pela antecipada assinatura de um contrato

Forjado numa queimadura de gelo, entre talheres e garrafas vazias.

Não mereces o que o dia te esconde de manhã, nem os cães que te julgam

Boa pessoa, por fome, pela ilusão de uma mão que os acaricie no fim do dia,

Enquanto o Sol se põe além onde luzes surgirão a dizer que aldeias e mais cães,

E tu sabes o nome de todas e nunca lhes conheceste as almas além do que

O teu prepúcio te permitiu, bebeste-as como mais umas cervejas com os amigos,

Muitas delas partilhaste com alguns deles, porque no fim são eles os teus clientes,

Entras não pelo prazer, mas esperando que os rumores sigam a direcção

Dos teus desejos mórbidos, fodes como quem viola e irrita-te que elas gostem,

Porque no fundo, procuras uma santa que te mostre uma luz além da carne,

Compram-te os fracassos e não percebes que já quase te vendeste todo,

Por nada, a não ser por mais um pedaço de vazio na tua confusão niilista.



04.10.2011



Turku



João Bosco da Silva


Estar Doente



Aqueles dias entre o sofá e a cama, com febre e uma dor de cabeça que a mãe resolvia

Com xarope de cenoura, chá de limão e canja de galinha com ovos pequeninos longe da casca,

Seguros quando o mundo parecia acabar tão cedo e a noite se colava às mantas frias

E húmidas como algumas mulheres que mais tarde viriam a fazer parte da pele febril.

A lareira inocente nunca deixava de chamar com a sua língua de vento, enquanto o silêncio

Lá fora, transformava tudo em vidro e sono e só os cães pareciam ser os verdadeiros

Habitantes das ruas solitárias, com cheiro a fumo e saudades do Sol de Agosto, viciado nos

Primeiros beijos e goles prolongados na perdição da vida entre o sofá e a cama, sem desculpas

De convalescença, a mãe lá longe onde a criança se deixou ficar, porque é para garotos

Continuar e o mundo não permite olhos inocentes, só doentes, cansados, viciosos e viciados,

Olhos no chão, fixos além da chama, na parede enegrecida, também pelos anos.

Às vezes só se queria mais um dia, daqueles piores nos melhores tempos, uma incapacidade

Facilitada pelo carinho que se aceitava com a naturalidade de uma cria mimada.



03.10.2011



Turku



João Bosco da Silva

domingo, 2 de outubro de 2011






Precocidade Do Cair Das Folhas





Antes das azeitonas a inocência das uvas no lagar fermenta em troca de noites desesperadas,

Prémios ridículos só do tamanho dos sonhos, do medo dos ratos pequenos só pela hipocrisia

De não se ser sincera ao desejo real, a geada descongela e o dia entra seco, violenta, a violação

Por um pai, consentida, numa terra de deuses mórbidos, com uma única justiça a esperá-los

No fim da vida e venha o azeite, o gosto pela decadência entre pernas que se julgaram portas

De paraíso, onde o cão sarnento passou, deixando o amor raivoso ser dono do destino contagioso

De uma família merecedora de todas as missas de Domingo. Só uma fatia de marmelada no fim

De uma tarde dourada, me convence das asas de algumas pernas pálidas, todas elas tocadas

Pelos incêndios do Verão, quando se queria apenas uma gota de inocência pura, antes do regresso

Ao inferno, onde não se respira por ser real de mais e por doer como o mesmo prazer de seres

Rasgada pelo sabor da tua própria mãe, perdida no rio envelhecido, gasto o brilho, a herança

Que te espera à beira do abismo onde brincas com bonecas, algo que não pediste, nem mereceste,

Mas a ti, tiraram-te os próprios desejos e com isso deixaste de poder amar a vida dos olhos

Infernais, dos sonhos maiores do que tudo o que as tuas mãos podem agarrar, por serem

Possíveis além da realidade que te limita, tornaste-te numa fria boneca, que envelhece.







01.10.2011






Lisboa






João Bosco da Silva






Antes Da Saudade



As galáxias vertidas pelos montes a anos-luz dos sonhos, dão sentido ao ladrar dos cães,

Felizes dos que têm a perversão selvagem dos canídeos e se afastam de igrejas,

Os grilos ainda se fazem ouvir na noite que deixa de acreditar na companhia da unha,

Quase um olho a que chamam Lua, o azul como a vida a ser cortado a nível dos olhos

Pelo rubro que desmaia, chama-se quem não poderá responder, de boca ocupada,

Alguém ajuda a mãe no jantar, uma pitada de inocência e ainda se faz cimento para adiar

O fim antes de um amanhecer sempre impossível, até amanhã, alguém mente sem saber,

As uvas que não foram colhidas começam a perder o brilho, nem as vespas as querem mais

Na sua exigência afiada e dolorosa pela carne fresca e os lábios cansaram-se de esperar

O vinho que fermenta, só os olhos se põem de verdade e dão a imagem de um mundo

Cego, crepitante e de pele, uma misteriosa bruma entre montes chamada saudade.







29.09.2011



Torre de Dona Chama





João Bosco da Silva






Anoitecer



Arrefece, mas nem por isso, só o Sol a tornar-se cobre, chamando os tractores para o jantar

Enquanto o vinho fermenta nas pipas, o pastor de galinhas come uma maçã e ignora o bicho,

No estômago a fome de há dois dias, as crianças já em casa com a mochila tombada num canto,

Quase o silêncio vibrando no espanta-espíritos de conchas, talheres e pratos, uma mota

Longínqua onde vai a minha alma e o verde persistente das folhas do marmeleiro a fazer

Rendas de sombra, lá em cima, deixando um rasto branco como uma vida que acabou de passar,

Breve, vidas esquecidas da proximidade do anoitecer, lento, montanhas solenes que engolem uma estrela.






26.09.2011






Torre de Dona Chama






João Bosco da Silva

sábado, 1 de outubro de 2011





Génesis Ou Na Terra Do Início Dos Tempos






para o Bruno Costa,





Senta-se a solidão arrastada ao balcão e a sombra leva-a na proximidade de um sorriso,

E o que vai ser amigo, uma daquelas, que lavam o esquecimento dos sonhos desistentes,

Tornados em quase memórias na cinza da lareira apagada pelas madrugadas frias

Só para que o desespero se sinta na medida dos dedos que o futuro tornou inúteis

E pequenos quando veio, sou o presente, chegaste e nunca te moveste verdadeiramente,

Ri-se o tempo, lá fora, enquanto passa, mais um cabelo branco, um dente que começa a doer,

A filha que afinal herdou a inocência perdida da mãe e o sonho de Sol e sinceridade

No escuro de uma cidade velha a ser levado pelo rio do desejo mórbido do destino

De barba ridícula, perseguem as recordações falhadas dos três dias a tornar a pele

Vermelha, os olhos em chamas, mais uma daquelas ó patrão, esta leva o que as mãos

Perderam da dor que insiste, esta traz a ilusão de mais uma noite fabulosa, e mais uma

Menos uma, algo virá, algo virá, nem que se rasgue a noite até as padarias abrirem, na cidade

Onde se nasceu e os dedos satisfeitos do vício que é a carne de dezanove anos,

Mas desta vez não se troca a paixão pelo cansaço, vai além dos limites que te esperam,

Ao fim da tarde já um cigarro te irá acordar, a voz regressará e será tua, mais um café,

Um sorriso, que os sonhos são eternos na espera constante pela sua verdade, a sua verdade

Que vive antes de serem, como todos os que não nasceram e foi uma pena,

Podiam ter sido um amigo, um brinde, um beijo quase dentes a tornar a própria pele

Numa dor adiada, na solidão que virá, a que leva o canto do café da terra.






30.09.2011





Porto





João Bosco da Silva