terça-feira, 18 de janeiro de 2011



Poema De Prazer


Com Bukowski no colo, a televisão a tagarelar numa língua que não reconheço,

Um daqueles programas para perder tempo, como se o tempo fosse excessivo,

Quando nunca chega, quando se aproxima do fim e deixa-se andar, deixa-se passar,

Porque amanhã é que vai ser, acabo amanhã, começo amanhã, não me apetece agora,

A vida passa e o livro a fazer-me peso para além das pupilas, que nunca mataram ninguém,

Mas já ajudaram, tiraram valor ao tempo, tiraram-me valor, mas sempre me senti melhor

Sendo um completo animal, sem tretas, sem palavras inúteis quando há dedos, desejo,

Excitação, erecção, um momento possível, um jogo de carne e fogo, mudo, gritado e gemido.

Com Bukowski no colo e um barulho de fundo quase hipnótico, perco-me deste tempo

E olho para o vazio, onde alguém me passa à frente, sem reparar, continuo, longe, de agora,

Em quartos estranhos, com cheiro a sexo e perfumes desconhecidos, abraçado por ritual,

Antes do pequeno-almoço acompanhado de um diálogo estranho entre duas mulheres

E uma delas ainda nos meus dedos que levam a chávena de café às mãos,

Devem estar a falar de mim, mas não interessa, direi que nos vemos na próxima semana

E esse será o meu último adeus, o karma apresentará a conta quando quiser,

Sempre dei o que podia dar de mim e por vezes nem uma ejaculação na pele suada.

Com o Bukowski tão morto e tão presente, tão real e tão cru, sabe-me a vida,

Sabe-me a sofás e gente nua, olhando a porta aberta enquanto se geme a medo, trincando

As almofadas sujas (de que outros encontros?), a boca seca que tenta fazer brotar

A fonte ruiva e deliciosa para a conquista de mais um corpo, pela madrugada fora

Até que de manhã, com fome e ressacado, a deixo ir para a esquerda, com o vestido sujo

Da minha imundice, a boca com o sabor da minha vontade, tão linda e loira e caracóis,

Um anjo que passei a noite a conspurcar, a explorar, ela sorri-me, agradece-me

E eu vou dormir para o lado de quem não merece um hálito daqueles à hora de almoço.

Com o Bukowski morto, velho para sempre, bêbado e sincero, aqui à frente,

Um diabo qualquer a falar longe (na televisão?), um carro de um namorado, que num mês

Um noivo, que em dez meses um pai e um suspiro de alívio e de desilusão, apesar de ter sido

Só mais uma descarga consentida, uma fome saciada, mais por ela, com aquela carne fogosa,

Pálida e de encher a boca e as duas mãos, com o dono do carro longe com os amigos,

Tudo o resultado de um desejo descoberto por uma frase simples como,

Quero fazer amor contigo, num caminho abandonado, numa folga de trabalho, contra o tempo.

Com o Bukowski nas mãos, tudo o que restou dele, como tudo o que restou de todas,

Uma memória, umas memórias, que se lembram com a mesma emoção com que se ouve

A televisão que se vê para passar o tempo, enquanto não chega a hora, a próxima,

O karma a pôr um travão, ou não, que no fundo tudo é natural, como não ter moral,

Tudo é passageiro, tudo nos deixa se não formos nós a deixar, só nós ficamos,

Nem vale a pena deixar marcas, a não ser umas palavras, para alguém que se aborrece com a vida,

Alguém que acha que ser poeta, ou ser libertino é ter uma vida cheia e feliz,

Alguém que é feliz e não o sabe, com a sua mulherzinha no colo, envelhecida,

Invejando outra vida além daquela que chegou ali, quando há tantas que ficam tão longe,

Gastam tanto tempo, com programas de televisão ridículos, porque o tédio aperta

E não se aguenta ver as horas a passar, sem passar por cima de alguém, dentro de alguém,

Sem ouvir alguém gemer a nossa presença e implorar a nossa existência dentro.



18.01.2011



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva



Fui Eu Que O Matei


Fui eu que premi o gatilho,

Fui a bala que espalhou sangue e miolos pela parede,

Fui eu que tornei a ponte demasiado alta,

Fui eu o banco que lhe falhou os pés e a corda à volta do pescoço,

Fui eu que tornei a curva demasiado fechada,

Fui eu que o obriguei a beber mais naquela noite,

Fui eu quem o fez foder aquela puta desprotegido,

Fui eu o cinto de segurança que não se colocou,

Fui eu o vírus,

Fui eu quem pôs o dedo no botão,

Fui eu a faca que se enterrou no fígado, se rodou e se retirou,

Fui eu que pus o carro a trabalhar dentro da garagem fechada,

Fui eu quem tornou o piso escorregadio,

Fui eu quem fez mutar as suas células,

Fui eu a bactéria fulminante,

Fui eu todos os maços de tabaco durante quarenta anos,

Fui eu quem lhe abriu o cu para um desconhecido,

Fui eu quem lhe tirou a vontade de viver,

Fui eu quem lhe deu demasiada fome de viver,

Fui eu quem o fez atravessar sem cuidado,

Fui eu quem lhe pôs a cabeça no forno e fui o forno,

Fui a electricidade que o paralisou até ao infinito,

Fui eu quem gritou algo sobre deus e um grande silêncio,

Fui a altura e a gravidade, o seu peso e o chão duro,

Fui eu quem gaseou os seus nervos,

Fui eu a tempestade, as ondas, todo o mar,

Fui eu quem deixou a terra solta para o enterrar vivo,

Fui eu o cão, o lobo, a raiva,

Fui eu o excesso de gorduras, fui eu a falta delas,

Fui eu quem lhe bloqueou o vaso,

Fui eu quem soprou contra ele o fim,

Fui eu a carne crua e o sangue contaminado,

Fui eu quem lhe deu uma dose excessiva e final,

Fui o pó, os cristais, o líquido, o fumo, a agulha, a sujidade,

Fui eu quem lhe cansou o coração, quem o fez desistir,

Fui o cianeto e os dentes que o trincaram,

Fui o ódio, o desespero, a guerra, a catástrofe,

Fui o dia, a noite, a má hora,

Fui eu que o matei.



18.01.2011



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva