quinta-feira, 20 de janeiro de 2011



A Minha Namorada Belga


Colocava os chás e as infusões em cima da mesa pequena e branca, com um sorriso sincero

E iluminado e um beijo quase tímido nascia na minha cara rapada de manhã,

Porque ainda me interessava, apesar do frio estranho lá fora, trazia o calor nos seus olhos

Azuis com traços púrpura, com o seu inglês afrancesado, doce e irresistível.

Qual queres, perguntava-me e eu já quente por dentro, dizia-lhe, de frutos vermelhos,

Que ela preparava com os lábios alegres, com o olhar aceso, sentava-se do outro lado da mesa

E simplesmente trocávamos olhares até um sorriso os romper, enquanto se difundia o aroma

Dos saquinhos na água quente e apesar do silêncio, ouvia-se uma certa melodia no ar.

Para acompanhar punha umas pipari kakku e tudo a ficar ainda mais doce, quase inocente.

Quase todos os dias o mesmo ritual, às vezes uma carta debaixo da porta, quando se falhava uma vez,

Com uma ilha paradisíaca desenhada e o texto a acompanhar, vejo-te aqui esta noite,

E senti-a ali aquela noite, a sua presença quente, alegre, suave, brilhante, aromática,

A sua voz deliciosa e hipnótica, as suas mãos finas e brancas, o seu cabelo perfumado,

Na página branca e quase podia ver o seu gesto quando colocou a carta debaixo da porta,

Naquela manhã, sabendo que me esperava em baixo, para seguirmos caminho pela neve fora.

Mas um homem não vive de chás e carinho, um homem quer carne, violência consentida,

Quer possuir corpo e alma, mas o corpo é o único real, o único possível de ver ser submetido.

Uma noite quase ébria, mais próximos que nunca, os olhos, os beijos e as carícias nas mãos

Até ao limite, não em casa, não no nosso templo, mas na promiscuidade de um bar,

Um beijo desesperado, adiado a chás e sorrisos, cartas e olhares, o consumar do inadiável.

Houve uma ilha, gelada, uma casaco sobre a neve e dois corpos com o máximo de roupa possível,

Mãos ávidas, bocas com fome, corpos sedentos um do outro e muito frio que se ignorou,

Porque estava fora e o que está fora nunca interessou quando se encontra o que se procurava,

Até se encontrar. Uma semana passou, uma semana quase mágica, com chá, carne e pipari kakku,

Com gelo nas ruas, trabalhos a roubar-nos tempo, franceses e americanas, loiras, ruivas,

Olhares iluminados a cerveja, a desejo do já e agora, hotéis logo ao virar da esquina,

Presas, troféus, uma fome de carne, de outros sabores, de mais números

E a magia do chá, difundiu-se pelo ar seco e frio da cidade congelada nos seus quase trinta negativos.

Tudo estava bem, aparentemente e uma noite chorou-se no seu quarto, abraçados, sem chá,

Sem olhares acesos, só a dor de uma despedida precoce, uma paixão sacrificada em nome

Da fome, da efemeridade, do súbito, do vício ancestral de ejacular em várias mulheres

E sinceramente, foi bom assim, noites sem chegar a aparecer em casa, cheio de mim

Pelas manhãs, apesar de mais leve, sem nomes a pesar na consciência, tudo tem um fim,

Mas a vida não tem finalidade nenhuma, por isso, tudo deve acabar antes de começar algo.

Fomos à Rússia, quase uma semana, eu estava curado dos chás há muito, a carne, suor e gemidos,

Os franceses avançaram e a fronteira limitou o início e o fim, enquanto eu só me importava

Com a vodka, as prostitutas da recepção, as finlandesas bêbadas, os seguranças furiosos,

O Hermitage, o rio congelado, os ladas, as ruas escuras e sem fim, as lojas onde ninguém

Percebe o que queremos, o amigo italiano, o catalão medroso, o medo de ficar doente

E ter que ser internado num daqueles hospitais de há cinquenta anos atrás,

O pacote de filipinos com inscrições em português e espanhol, esfinges roubadas,

Arquitectura emprestada, fumos no horizonte gelado, tão estranhos e distantes,

As prostitutas no bar do hotel Moscovo com o seu menu sexual que me fez rir na cara delas,

Magras, deliciosas, modelos que nunca venceram ou bailarinas que perderam a graça,

Com o seu vestido de rede e o seu vestido transparente, com o púbis careca,

Não fosse a cerveja na mão e os escassos rublos trazidos, tantos e tão poucos

E as outras gratuitas no mesmo andar, a uns passos e uns goles de vodka.

Ela nem sempre viu, nem sempre foi feliz e o seu olhar quando estava por perto era triste

E o seu sorriso forçado, a sua presença contrariada, com o francês ao lado,

Com o mesmo sotaque, mas demasiado efeminado, irónico, quase ridículo apesar da beleza,

A americana a tentar vingar-se directamente do seu europeu emprestado por umas noites,

Que afinal poucas e eu fascinado por aquilo tudo, como uma criança a ver desenhos animados.

Não voltou a haver chá, trouxe-se muita vodka, rum, tequilla e cerveja, quase o equivalente

Para apagar as memórias que se criaram por lá e eu continuei com a minha vida, a multiplicar-me

Em nadas, em noites e fluídos que se espalham em corpos alheios e se limpam e se esquecem

E tudo era perfeito na sua imperfeição natural, uma promiscuidade natural, com nada mórbido,

Apenas a curiosidade inocente de querer um brinquedo novo, de descobrir alguém novo, de foder mais uma,

Estava livre e quem é livre não peca, não tinha nada e quem não tem nada, nada pode perder.

Abri as mãos dela, mas ela estava presa, tanto que teve noites perto do coma alcoólico,

Que só foi apaziguado com um beijo misericordioso, um último beijo consentido,

O conhecimento do último beijo para redimir a alma atormentada que não encontrou paz

Na mesma língua, noutra língua, sem chá, sem pipari kakku, sem cartas debaixo de portas,

Sem braços dados pelas ruas geladas, sem sorrisos sinceros e inocentes, sem um beijo de boa noite,

Nozes dos dedos a bater à porta à noite, de manhã, um olhar verde que sente e não sente,

Que quer tudo e nada e a melhor forma de abraçar tudo é ver-se com nada nas mãos.

Acabaste por seguir o teu sonho, o que já tinhas, foste para a Austrália e tornaste-te

Naquilo que eu queria que tivesses sido para mim, mas foste demais, eu não queria tanto,

Minha colega, minha amiga, meu alívio, minha cura, a minha namorada belga.



21.01.2011



Torre de Dona Chama



João Bosco da Silva