segunda-feira, 24 de janeiro de 2011



Do Inferno, Sem Amor


Mais uma vez o carro passou e não parou, mal se viu, só se sentiu o ar que empurrou

Contra quem quer que estivesse por perto, indiscriminadamente e só os cães correm atrás.

Tem que se seguir em frente, tem que se chegar ao fim antes que ele chegue

Até aqui, não pára, não se pode ficar agarrado aos passos dados, se os seguirmos

Andamos para trás e se não ficamos no passado, é porque não valia a pena.

Há vidas que herdam os pecados das vidas antes das delas, há vidas com a vida limitada

Porque assim escolhem, porque não imaginaram escolher outra coisa, porque é fácil

E seguro. Há vidas que não têm fogo próprio, nem coragem, nem fé no que interessa.

Há vidas que não chegam a rasgar a membrana amniótica e vivem sem nunca terem

Inspirado um ar que seja deles, que os faça chorar por sentirem o poder de umas mãos vazias

E um mundo tão grande e frio, tão cheio de possibilidades se o medo não for o leme da vida.

Passa-se e fica apenas a ideia, algumas cores sem forma, um cheiro, no melhor dos casos um nome,

A temperatura esquece-se quando muda e parece que sempre esteve frio, parece impossível

Haver um Verão num mundo que congela aos poucos, em tons frios e melodiosos,

Numa voz quase nórdica, a quilómetros de distância da felicidade. Todo o caminho é feito de ilusão,

Só quando se chega se tem a certeza e a consciência do erro que foi a viagem, mas a vida é isso.

Dói como o fogo, o carro vermelho que passa, o olhar que não se imagina na cor dos olhos

Improvável de uma majestade infernal, só o cheiro a enxofre, a ideia do aroma dos mortos,

Da cor das velas que derretem, dos corpos cheios de pregas que acordam cedo ao domingo

Para encontrarem a salvação onde mora o vazio, a esterilidade, a falsidade e a hipocrisia concentrada

Pelos séculos dos séculos, até à hora da morte mais que merecida e o esquecimento antes

Do último suspiro, Ámen. O pregador cala-se e a verdade começa a escorrer pelas paredes húmidas,

Até ao vazio, de um almoço entre mais mentiras e hipocrisia e cornos, qual majestade infernal,

Porque o inferno somos nós, uns para os outros, para nós mesmos e os cães correm atrás.

Mais uma vez o carro passou e já nem se viu, nem se notou, ainda bem, já que o condutor

Tem mais almas para roubar, mais corpos vazios para deixar no caminho por onde passou,

Cheios dele, cheios do calor infernal que dói como o fogo e atrai como a condenação da alma,

Mas na verdade purifica a mentira onde se nasceu, faz ver por momentos, até a cegueira regressar.



24.01.2011



João Bosco da Silva



Degelo


Não me pediste nada e eu

Deixei tudo, entreguei

O meu futuro visível

Até me fazeres

Desaparecer.

Devias saber que,

Enquanto o meu corpo

Sentir o frio

Da manhã branca,

Ainda há tempo

Para renascer na

Primavera.

O verde regressará e tu

Irás com a neve

Para longe das memórias

Felizes.



Ville Sillanpää (João Bosco da Silva)