segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011



Dentro De Fora


Tantos, perdidos dentro dos seus sonhos e medos, com os seus horários

A marcar o passo, sem tempo, sem vontade que os leve, só uma obrigação,

Só um porque sim, porque tem que ser, que na verdade nem tem que ser

E o filme continua, com tantos actores principais, cada um por si, todos sós

No papel que desempenham pelas ruas desertas, cheias de olhos que se cruzam,

Uns quase se tocam, quase se falam, não fosse o peso de tantos outros.

Um café, expresso, espero, esperam que seja assim que espero, mas não,

Demasiado intenso, demasiado amargo o sabor que fica na boca,

Preço demasiado elevado para algo que quase não se sentiu,

Perna direita sobre a esquerda, casaco na cadeira ao lado e algo melhor que o expresso,

Um momento onde, no fundo da sala, o centro, silencioso, um mundo pequeno,

Paz e olhos para fora, uns minutos fora com um gosto amargo dentro, o de sempre.

Alguém bebe chá com a sua mochila, com o seu olhar cansado de quem andou muito

E viu demasiado depressa e o chá é o mais barato que se pode beber num dia tão caro,

Quase que se lhe adivinha a idade mesmo de costas, desde sempre para ela.

Ao fundo a cara fina de nariz comprido de um francês que me olha, como se encontrasse

Num estranho um conhecido, também eu, mas afinal nem eu, nem ele francês,

Quando passa com a sua ruiva de alemão na boca, e desaparece para um mundo desconhecido.

A morena, com olhos rasgados e olhares entre cruzar e entrecruzar de meias pretas,

Que apertam a sua essência e a vontade do seu olhar, que procura o meu

Tão longe que a olho quase distraidamente, quase vinte, ainda cheia de sonhos,

De risinhos altos e despreocupados, tão longe, a três mesas de distância, a vidas de inferno,

Paraíso, cansaço, excessos e tédio, lucidez insuportável, embriaguez suicida,

Morena com uma melhor amiga de sempre até ao fim do ano, se chegar a tanto, loira,

Desinteressante se não se pode encontrar o olhar, muito pálida, excessivamente pálida,

Um fantasma como os que me acompanham sempre, mulheres que foram empalidecendo

Enquanto eu me tornei amarelo, quase verde, um dia verde, um dia invisível.

Quatro vezes dez sentadas com gestos sofisticados e mecânicos, perderam a naturalidade,

Mesmo quando levam a chávena gigantesca aos lábios, não sabem florir, não mais,

E escondem o olhar de tenros anos atrás de óculos com armações grossas de cores berrantes,

Que memórias lhe restarão depois de tudo, depois de tanta dor, tanta felicidade que nunca dura,

Tantos anos que passaram (passariam elas por todos), filhos que lhes roubaram a vida que tiveram?

Sentadas todas senhoras, agradecem-lhes as filhas os filhos e os filhos as filhas

E a vida continua enquanto houver vontade de entrar e que se lhe entre,

Mesmo num café de arte, onde tudo é o início longo de um filme pornográfico abreviado no cerne.

Os quadros tornam o ambiente quase vivo, não fosse o piano silencioso do outro lado,

Os quadros sentados, cheios de cores, vivas, frias, quentes, apagadas, cansadas, cheias, vazias, esquecidas…

Podem viver-se vidas, sentado num café de paredes brancas às quatro e meia da tarde,

Com o rio Aura a passar por baixo dos olhos, lá fora, trazendo memórias de dias verdes e quentes.

Mas a vida passa-se entre os passos até chegar além, seja lá onde for, não interessa,

Chegar além é o que nos leva, o além já lá está, parado, à espera ou não.

Não muito longe, constrói-se uma ponte, mais uma ponte e sabe bem ouvir a vida,

A música mecânica, simples, que nos passa por dentro e se complica, sobe e desce.

Quase que não se existe, quase que não se sente o cheiro nauseabundo dos alcoólicos

À porta da mercearia, quase que não se lê nada nos passeios, quando os olhos tão longe,

Lá no fundo, escondido dos olhares azuis, verdes, frescos, jovens e aparentemente felizes,

Escondido do Sol que nos querem oferecer, para depois nos deixarem a dormir na rua,

Enquanto o frio entra sem nos bater à porta e é mais uma, mais um risco, menos espaço na parede.

Tantos perdidos dentro dos seus sonhos e medos, dentro de cada um que passa,

Passo a passo, pela vida, pelas vidas que vão, para o mesmo lugar, sempre, sempre.



Turku



07.02.2011



João Bosco da Silva