segunda-feira, 27 de junho de 2011






Antes De Zaratustra


No cimo de uma montanha, num Agosto tão quente que cinzento o horizonte,

Longe dos anos que não se conseguirão evitar e cairão sobre os olhos da esperança

Como uma avalanche de magma e escuridão, filósofo do sem pensamento

E o que virá virá, a miséria não passa de histórias à hora do jantar, ou nos jornais

Que se evitam porque deixam os dedos sujos e escuros, a dor é uma manhã geada

De Janeiro e a riqueza maior é a lareira ao chegar da escola, um leite com chocolate quente

Até o pai chegar para jantar, um gelado quando a sorte de duzentos escudos nas tardes de verão

E a felicidade torna-se cada vez mais difícil com os anos, o sorriso de uma rapariga torna-se

Insuficiente e nem as violências no seu colo do útero ajudam ao vazio, a dor deixa de poder

Chorar-se e só a ejaculação a leva por momentos, longe no cimo da ermida, Nossa Senhora da Saúde

E os ossos sem nunca terem entrado num hospital, as mãos sem saberem que às vezes se morre

E não há muito mais a fazer a não ser ver a desilusão final de um corpo que não foi suficiente.

No cimo de uma montanha, com o mundo desenrolado montes abaixo, cheio de beleza,

Algumas casas, aldeias inofensivas, onde palheiros, machados ensanguentados e também

Horrores em menor escala, mas longe, longe aqueles joelhos na rua de Estocolmo

Com as mãos erguidas ao céu como uma prece ao novo deus, para que ele caia, frio e metálico

Nos dedos da fome, fome de tantas fomes diferentes, as agulhas a cegar a alma até à dor do despertar

No Porto, onde homens e mulheres vendem o acesso aos orifícios por deus, enquanto uns

Resignados dormem debaixo de pontes e viadutos, longe das mãos que procuram, que se procuram,

Em caixotes do lixo nas ruas castanhas de Londres, enquanto alguém te tenta vender droga

Nas ruas de Montmartre, quase vazio, quase no fim e o cemitério ali ao lado, à espera do mundo todo,

Longe das prostitutas russas, incrivelmente magras, com os braços cruzados, escondendo

As marcas do seu apodrecimento, à espera de um turista, de um Hummer negro, na noite fria

E escura de São Petersburgo, à espera do desespero de alguém só, alguém cansado de se ouvir

No silêncio de um quarto pequeno, as prostitutas brasileiras em Espanha, com as suas lengalengas de sempre

Só porque os filhos longe à espera do dinheiro dos trolhas, turistas decapitadas em praias

Marcianas nas ilhas Canárias, longe, longe deste monte de onde o mundo parece verde.

Deus ainda parece um homem, como o pai natal, mas que veste de branco e não bebe Coca-Cola,

Um homem estranho que deixou matar o filho para provar algo acerca do amor, o filho também deus

E eu já com dúvidas do sentido daquilo tudo para fazer com que isto tudo um sentido,

Por aqueles montes abaixo, onde quem sabe, me encontrarei pelo caminho com Zaratustra

Ou Keroauc, iluminado, mas não de todo, o avô igual, mas sem escrever, amarelo e morto,

Não acredito que me encontre com crucificados, mas muitos levam a sua cruz, arrastam-na

Monte abaixo, pelas urzes, giestas, cardos em direcção a um abismo redentor onde a lançam e se deixam cair.

No cimo daquele monte, com as mãos vazias ainda cheias de possibilidades, outras páginas para virar,

Magníficos capítulos, revolucionários, novos, ainda acreditando nos olhos como nas palavras,

O mundo um privilégio que se dá ao vazio para ser algo, voz ao silêncio para ser cantada a eternidade

E só a dor dura, só a vida dura, pouco, a expiação é eterna, mas longe, longe do cimo desta montanha

Onde se senta a minha memória a segregar saudades e a reconhecer a absoluta derrota

Dos meus anos em busca de nada, quando tudo aqui em cima, tudo aqui longe,

Porque a proximidade nunca foi amiga dos olhos e a perfeição está sempre a uma distância qualquer.



Turku



27.06.2011



João Bosco da Silva






Última Noite De São João



Sentado na minha última alma, a ceder às evidências do despertar existencialista, dois anos

Depois da morte de deus, na varanda do quarto da minha irmã, com gatos que atravessam o caminho

Iluminado pelo último candeeiro da vila, como se pequenas alegorias peludas, respostas simples

E mais verdadeiras que mil bíblias, mas por aquela altura, já a cabeça de São João tinha deixado de fazer sentido.

A música popular a entristecer-me com a possibilidade de caras sorridentes enquanto insisto

Em sobrepor-lhe o meu gosto por música celta, para acalmar a mente atormentada pelas ideias

Dos outros em papéis que tinham que se comer com os olhos, enquanto a vida lá fora,

Insistindo em que eu a aprendesse antes de vida e a minha mãe contente por eu estar a cumprir,

Sei lá com que expectativas, mas nunca as minhas. Uma das últimas noites frescas da minha vida,

Longe, sempre longe quando se passou, a felicidade simples dos verdes anos com respostas sem perguntas

E poucas cervejas necessárias para se conquistar o mundo, ou aquela miúda da outra turma

Atrás da barraca dos cachorros a encher o peito e o mundo tão grande quando nós pequenos

E a noite tão curta quando nós conscientes do tamanho da vida, do tamanho do tempo,

Do tamanho da distância daquelas noites quase perdidas, não fosse o que nos torna eu e tu,

Nunca nós, de São João, enquanto a vida anoitece, o orvalho visita a esperança em velhos milagres,

A janela fecha-se, a música popular cala-se e afinal a casa vazia onde me desenrolo em rimas

E me asfixio acreditando que é necessário, que eu necessário e que ser alguém depende de alguém.





Isokyrö





26.06.2011





João Bosco da Silva






Aquele Professor De Português No Quinto Ano






Deve estar bem na vida, com o seu BMW no parque de estacionamento de uma escola qualquer,

Ainda casado com a sua mulherzinha com pais ricos (não acredito que se tivesse casado

Com o fascínio pela primeira foda), a estrear as estagiarias com o seu sorrisinho cabrão,

Ele e o sorriso, com ambos os joelhos perfeitos (nunca se deve ter esforçado muito à baliza),

Provavelmente um filho para ter uma âncora caso o apanhem de calças nos joelhos perfeitos

E dentro de uma estúpida estudante de enfermagem com necessidade de aulas de apoio

A anatomia, com uma fominha ridícula de adolescente acabadinha de sair da sua aldeia,

Deve estar bem na vida a fazer aquilo que nunca deveria fazer, além de viver uma vida

Que não merece, mas deve ter sido um escaravelho do estrume noutra vida, talvez

Para lá regresse quando expirar uma última vez através daqueles dentinhos merecedores de um punho.

Costumam ter sorte, os filhos da puta, mas o meu professor de português do quinto ano…

O primeiro (e basta ser o primeiro) a abalar a minha infalibilidade com o meu primeiro satisfaz,

Eu um génio ao longo da escola primária, mesmo mudando de escola duas vezes por ano lectivo,


Mesmo que abrisse mãos dos melhores amigos antes de eles chegarem a memorizar o meu apelido (é Silva),

O primeiro satisfaz, não Satisfaz, mas satisfaz, eu medíocre, eu atormentado com as aulas de português,

Eu sem perceber porque levar tão a sério o que nem é vida, sem perceber que diferença faz um

Erro ortográfico quando supostamente se está a aprender e estaladas, pontapés quando no quadro com toda a gente a ver,

Eu com sorte por ter aprendido que o que eles querem é que as suas ideias lhes sejam repetidas,

Ou as de outros já mortos, nunca as nossas, porque a escola ensina-nos a não pensar por nós,

Eu calado, menos seguro das minhas ideias, mas que interessa, se ele perguntar: tens razão, estás certo, és deus,

Um deus a impor a sua frustração de pila pequena, ou algo que o cigarrinho se calhar lhe trouxe cedo,

Sobre almas verdes, esponjas sedentas, não de vinagre – meu grande filho da puta!

Fala-se em aproveitamento escolar e família e meio e família, fala-se pouco em professores

E medo, e crianças que tentam ler, mas não conseguem quando têm uma mão atrás da nuca,

Um sorrisinho à espera de um erro, de um pequeno gaguejo e uma frustração (não era meu cabrão?),

Por isso eu longe, não te dava o prazer do erro muitas vezes, mas ainda me dói

A forma como conseguiste atrofiar o percurso escolar do meu melhor amigo e do meu vizinho,

Mas não te deves lembrar do sangue, o sangue esquece-se quando é dos outros:

Por azar, ambos à frente da tua secretária, ou trono de ditador sádico, ao alcance da tua mão enorme

Branca e suave, boa para punhetas (se calhar era isso que querias, pilas de meninos entre os teus dedos),

Mas bater é mais de homem. O meu vizinho começou a ler a sua resposta, com um olho na capa arquivadora

E outro à espera de que o medo fizesse sentido, com razão, até que se engasgou com algo na sua língua seca

E logo sentiu cair sobre a nuca aquela mão pesada e pronta à humilhação e à dor, os dentes

Contra as argolas de metal da capa arquivadora (porque nos era mais barato e ninguém

Tinha pais ricos e é fácil abusar nos filhos dos pobres) e as folhas manchadas com sangue de criança.

Nem todos perceberão a necessidade de um poema tão mau, mas há coisas piores que também

Não têm necessidade, nem razão de existir, como aquele professor no quinto ano, que nos marcou

A todos, a uns por dentro a outros por dentro e por fora, mas todos continuamos aqui, maiores.





26.06.2011






Turku






João Bosco da Silva