segunda-feira, 25 de julho de 2011


Nos Anos Em Que O Cheiro A Pólvora Era Sinal De Felicidade


Houve anos em que o cheiro a pólvora era sinal de festa e felicidade, ou de época de caça

E cães mortos pelos cantos do bairro, gatos com as vidas todas levadas de uma vez,

O medo era pouco, de pequenas coisas, o mundo era de Mirandela a Bragança, era grande

E dois polícias mortos dentro de um carro (corruptos), na serra, era como um genocídio.

A vida não pedia álcool, não tinha sido infectada pelo horror, pelo tamanho do mundo,

Minúsculo, homúnculo de almas torturadas pelo demónio da humanidade, a própria humanidade,

Bastava uma cerveja para não se controlar a felicidade, bastava uma noite “hoje é festa, podes ficar até à meia-noite”,

Bastava o desejo de roubar um beijo para a noite valer a pena, com os lençóis aquecidos pelas

Noites quentes de Agosto e nada mais, amanhã é que vai ser, aquela, a outra, tão fácil a paixão,

Tão fácil o esquecimento, que aparentemente nunca se instalou e os castanheiros à espera da companhia

Anual, com os martinis a afogar a ressaca dos grandes, nos anos em que ressaca era uma palavra estranha

Que não se via, não se imaginava sentir, o mundo parece ter crescido, mas afinal foram só passos dados,

Passos perdidos em direcção a cada vez menos passos, ou em direcção à propriedade de um parente

E a ferida de umas partilhas injustas a tornar o chumbo em algo que corta a continuidade precocemente,

Antes o meu irmão que um filho da puta de um cabrão. Afinal não se trata de um peluche peludinho,

O mundo, é um monstro peludo que nos comerá a todos, não interessa onde, nem como, é inútil fugir,

Algo virá, uma bala louca, um cancro inesperado, ou a sede que afinal deu frutos e mais um como o avô,

E nunca se terá aprendido a escrever poesia, nenhum poema terá sido suficiente e todos juntos

Parecem ter o sentido da vida. Às vezes perguntam: é sobre o quê? Nada, é sobre nada,

Tem pequenos momentos, bons maus, perguntas, muitas perguntas, respostas que valem

Só para quem as encontrou, sejam as certas ou as erradas, tem o cheiro da terra e tem o cheiro

Que tem a terra quando não se pode cheirar, tem olhos para quem lhos empresta,

Tem mãos para quem arrisca fazer parte, é uma vida, às vezes a tua também, outras não, nada.

O que farão os filhos que nunca tive num mundo que encolhe à medida que lhe cresce nos olhos,

Tenho pena, tenho medo de mais uma vida nesta vida, tenho medo e não é o mesmo medo

Do tempo em que o cheiro a pólvora era sinal de felicidade, do tempo em que o sangue era

Resultado de uma tarde com a cabeça ao sol e as unhas cheias de terra, um punho amigo

A ensinar que a vida é às vezes fodida, o mesmo punho que te apresenta uma cerveja gelada,

Um aperto de mão quente e forte, eterno, crepitam os ossos, toda a gente sabe,

Como o som de cinquenta escudos dados pelo tio João pela arcade dentro, numa vida que hoje parece

Um sonho, o paraíso verdadeiro e a vida no fim de contas corre ao contrário do que nos ensinaram,

Daqui só para o inferno, o paraíso perdeu-se e a inocência ficou nos anos em que o cheiro a pólvora era sinal de felicidade.



25.07.2011



Turku



João Bosco da Silva