quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012




Dissecação Das Ruínas Interiores Da Saudade

Tenho essencialmente saudades do império que nunca conheci, os anos pouco trazem
E levam sempre mais do que as misérias que nos oferecem, cabelos brancos,
Sorrisos cada vez mais difíceis, lágrimas secas que pingam como se palavras
Contra o papel cansado de uma máquina de escrever, tanta pressa de viver,
Esquecidos de que a vida só uma, batida apressadamente, dedos cegos
De quem nasceu cansado e vencido, a quem fizeram acreditar que se pode
Conquistar o mundo para depois lhe amputarem todos os sonhos, despejados
Nos fortes de uma civilização esquecida, uma língua prostituída e os olhos
Fascinados pela distância do horizonte e pelo tamanho ridículo das mãos,
Isto capaz de quase tudo e quase tudo pouco mais que nada, as unhas crescem,
A Lua que se ignora até a noite, apenas escuridão e quartos vazios, cheios de fantasmas
De outros tempos, dizem que são o que somos e parecem ter razão,
Nós cemitérios de melhores tempos, bebe-se na esperança de uma indiferença
Que facilite o passar das horas, quando as horas parecem valer cada vez menos,
Ser cada vez mais curtas e os segundos antes de frescura fluida, um magma
Que não trará fertilidade alguma à terra, só as lápides aumentam a sombra nas cidades
E à noite as velas tremem enquanto as mãos empurram uma mão de resignação
Pela goela abaixo, miligramas a fazer de conta que lágrimas, gritos, um pedido,
Ajuda-me que não consigo viver comigo mesmo, a vida tão isto que eu nunca fui
Ensinado a levar, abusa-se do medo e do horror, joga-se com a loucura em doses
Temporárias, já não se tem medo dos holandeses nas praias, o império umas páginas
De história escritas noutra língua, as pedras da cor da terra não se lembram
Das vidas que lutaram contra o esquecimento de quem pega na canela
Em cidades cinzentas, estéreis, onde o crepúsculo lembra que também o Sol
Um dia nos abandonará a carne, e tudo ossos e roupa pendurada ao vento,
Velas desempregadas dos navegadores de si mesmos, viciados na saudade.

29.02.2012

Turku

João Bosco da Silva

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012



A Poupança Das Lágrimas

Custa a acreditar que aqui alguém chore, à noite há animais que o fazem pela gente
E de dia o Sol não permite certos desperdícios, mesmo quando tentam decifrar
O sentido da vida nas sombras vertidas pelo sangue seco fora. O António Lobo Antunes
Fala de uma África de gotas ou pingos em lábios de musgo, os joelhos falam mais que gente
E lágrimas as dos outros, os que ficaram com o vazio das que sem mais tempo,
Cortado a catanadas, granadas e a alemã passa, numa frescura quente de ancas fartas
Numa proporção de tesão fácil e diz-me com o azul loiro dos seus olhos, que à noite,
Na tenda que faz de casa de banho, escondidos na vibração de uma cidade febril,
Quando se calarem as desgarradas dos profetas e o pecado souber a animalesco
E se apague na descarga de um autoclismo, como se lágrimas poupadas,
Levando com elas o papel higiénico do gesto apressado, quase um desprezo
Depois da carne que fica nos dentes, um incómodo a presença e um beijo mais
Que um adeus, desaparece, até nunca, mas obrigado na mesma pelo alívio das lágrimas
Que não pingam, explodem espessas nas nádegas rosadas e anónimas, que o Sol
Não permite certos desperdícios e os animais que se envergonhem também
Da marca branca no anelar, promessas de metal numa ironia preciosa que se escondeu.

26.02.2012

Nairobi

João Bosco da Silva


À Hora Da Sesta

Uma águia insiste em existir, apesar da porta fechada, das cortinas corridas
E do sono que a canícula injecta no olhar cansado de tanta novidade
Da mesma coisa, a embaixada francesa logo ali, a bela casa do ex-presidente
Com os luxos óbvios protegidos por arame farpado e guardas que derretem,
Mais abaixo o bairro de lata para quem a tem ou a encontrou, uma dúzia
De tábuas mal pregadas a tentar ser ao menos sombra, já que casa é difícil,
Um casaco de Inverno quando mais de trinta graus, só porque não se tem
Outra roupa e a polícia não gosta de gente nua pelas ruas, só os cães
Parecem falar a mesma língua, desinteressados da palidez dos dólares
E a águia continua a entrar pela janela, quer denunciar a farsa, quer dizer
Que tudo é mais do mesmo, o mesmo pior, o pior mais abundante,
Os mesmos Mercedes blindados com medo das bicicletas esfomeadas,
Ressuscitadas de um cemitério de bicicletas depois de mil mortes,
Afinal táxis e famílias dependentes de pernas incansáveis, tão finas,
Enquanto os ministros morrem por problemas cardiovasculares, gordos e só
Os cães parecem respirar o mesmo ar, guardam crianças de quatro ou cinco anos
Que guardam quatro ou cinco bezerras, vestidas apenas com uma camisola
Enorme, feita de pó, calor e dizem que algodão também, outra da mesma
Idade chora sem vontade porque quer saltar para a sobremesa, as moscas
Enchem a barriga de olhos e ranho na cara indiferente de um bebé, um francês
Paga um refrigerante e como extra, leite, depois de se silenciar o gerador,
De terem corrido os fechos das tendas e as hienas despertarem para acompanharem
Os gemidos das suecas que parecem nunca terem estado tão completas na sua vida
Demasiado fácil de suicídios imaginários, dramas artificiais e romances em poentes
Quentes à troca de umas notas sujas de suor, pó, sangue, esperma, mais do mesmo
Em todo o lado, diz a águia e fica a olhar como quem pede um rato, além do quarto
Pequeno numa cidade que ferve, um refúgio no inferno que a maioria chama vida
E só poucos a gozam, gozando também do inferno que fazem da vida dos outros.

25.02.2012

Nairobi

João Bosco da Silva


Não Esperes Grande Coisa

Não esperes grandes palavras, essas parecem só aparecer quando não há mais nada,
Vêm nas noites de insónia e ocupam o olhar vazio fixado no tecto, vêm num crepúsculo
Que não tem nada triste, só nos olhos de quem à janela, espera sabendo que não vem
Ou já foi, uma quase tristeza que a distância do tempo e a distância da distância
Fazem do que uma vez felicidade. Não esperes grande coisa, até porque ainda não
Há necessidade de luz artificial, as plantas crescem e as aves continuam nas suas conversas
De penas coloridas, os pastores regressam com as vacas e quase nem me lembram
Os fins de tarde numa aldeia do interior de outro mundo, o chocalhar a encher as ruas,
Não demoram a dar as trindades, cheira a comida no ar, mas hoje será cabra,
Não das que se tentam lavar da alma com poemas forçados, das que crescem na sede,
Na inocência que está contada, na autenticidade que começa a ser pálida, se admira,
Mas não se compreende. Não esperes grande coisa, grande bravura, a distância entre
A minha mediocridade (um Massai vem fazer negócio) está além de um cartucho vazio,
Mas desculpo-te Hemingway, por isso desculpa-me também esta secura de palavras.

23.02.2012

Massai Mara

João Bosco da Silva


Safari Cola

O pó parece ter levado o peso dos anos, o céu está mais próximo, já se sabe
Que cada vez mais próximo e a pele parece beber a chuva pesada, os grilos
De Agosto já tocam e o Safari Cola das primeiras noites adolescentes nunca
Terá o mesmo sabor. Ao longe a cidade acende-se ao ritmo do Sol que se apaga
E entretanto os leões digerem a carne da vergonha dos dias, a gente rumina
As almas cansadas de tédio e canícula. Debaixo de uma árvore escreve numa
Peça de cadáver um que hoje se sente vivo e parece tão perto o lameiro do avô,
A macieira sofreu uma mutação, mudou o nome latim, o país e adoptou
Outros insectos como companheiros. Hoje na exaustão, a vida vale a pena,
Com ou sem alma e a poesia é uma tentativa gasta de a fazer sentir no vazio
De umas linhas escurecidas pelo horizonte que ainda se engasga com o Sol.

22.02.2012

Nakuru

João Bosco da Silva


Esperar Por Andorinhas No Inverno

O leão já não caça, deita-se debaixo de uma acácia e espera que os turistas lhe tirem fotos
Por dólares, às tantas olha para o relógio de pulso, não vá ser já tarde, é que aos Sábados
As zebras fecham a mercearia mais cedo. As cobras contam com o medo e o respeito
Pelo seu trabalho de bode expiatório de tanto crente no vazio, aceitam, estóicas,
O fardo que lhe puseram aos ombros, um dia ombros, antes do pecado original.
Os burros cagam no frio para inglês ver, enquanto escondem um maço de tabaco
E um isqueiro bic, dentro das orelhas e deitam olhares que tentam ser inocentes
Mas só sai uma ingenuidade forçada. A autenticidade mora na paciência temperamental
Dos elefantes, que toleram tudo, desde que lhes paguem silêncio suficiente e até
Trocam vegetação e água, por sangue e leite se o senhor Benjamim lhes fizer cara séria.
Ao chegar a noite até os babuínos conhecem o Cristiano Ronaldo e confessam-se
Descontentes por ele ter deixado o Manchester, mantêm-se actualizados pelas estrelas,
Sabem que Portugal não é só Pessoa, também Mourinho, com cara de poucos amigos
No multibanco do Norteshopping a caminho das estrelas. Ainda falam dos que sonham
Com andorinhas no Inverno, esses que esperam que abra a caça à rola, se tiverem muitas
Vacas e cabras até o rei Salomão é chamado ao barulho para as trocas por mulheres,
É que o gajo sempre foi bom nas divisões, mas acaba-se sempre por perder nas conversões
Calculadas com paus na terra poeirenta. As osgas trazem notícias de longe enquanto
Se espera pelo jantar, uma cerveja e alguma luz para atrair os insectos que a insónia
Acumula no cansaço do fascínio do papel humedecido pelo suor de pouco trabalho.

21.02.2012

Samburu

João Bosco da Silva


A Incerteza Da Zebra

À beira da estrada vende-se de tudo, bananas, rolos de papel higiénico, uma
Mão de rebuçados, parei para comprar uma alma, abri a carteira e faltava-me
Dignidade, pediram-me então uma caneta em troca, mas recusei e pedi emprestado
O olhar vago e o esquecimento de uma sombra ignorada.
Dei-me conta que também eu caminho por caminhar, atravessando cemitérios
De impérios esquecidos com a indiferença de um gato vadio, com os bolsos
Cheios de papéis, onde tenho escrito várias vezes o meu nome, números,
Como se me fosse esquecer de quem sou, se não um nome, como se soubesse,
Sigo, só porque não sei o caminho a seguir, sigo enquanto os vendedores
Me tentam vender pequenos nadas que querem ocupar o vazio
Onde só queria uma alma sossegada, dessas que se vendem à beira da estrada.

20.12.2012

Samburu

João Bosco da Silva


Corte De Papel

A sinfonia dos insectos é cortada por uma ambulância de papel, ao longe, o ganir
De um cão traz-me a casa no Verão e é Fevereiro no berço quente da humanidade,
As árvores lançam-se todas ondulações impossíveis, loucas, contra o ar de barro,
Sangue que todos lhe devemos, assim nos tratam os dias que nos falam, mesmo que
Um ser quase mitológico de histórias nunca antes escritas, gerações e gerações
De Invernos serranos, lareiras e este cheiro do fumo que se espalha, os meus avós
Tão longe e eu onde o sangue voltou a ser terra, enquanto rezo dia a dia, mais
Um comprimido que me livre do mal, mesmo que pareça impossível o mal
Nesta sinfonia aromática, não fosse uma ambulância despertar a consciência dos ossos.

19.02.2012

Nairobi

João Bosco da Silva

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012




Exterminador À Mesa Com Cadáveres Nus



“I´m getting so far out one day I won´t came back at all”
William S. Burroughs

Aparentemente, morreste mesmo, o mundo todo livrou-se de ti, ao contrário
Do que esperavas, não mataste o mundo, não acabaste com ele, as tuas mulheres
Continuarão a não ser tuas, outros irão entrar-lhes dentro, algumas terão filhos,
Outras terão melancolia e tu irás visitá-las, naquelas noites mais solitárias,
Mas ao Sol, nem pensarão no teu nome, tu moras na escuridão e o teu futuro
É o esquecimento. Ainda não nasceram ervas na tua campa e já sacodem o pó
De ti, é que a vida não suporta o peso vazio da morte por muito tempo
E já se está a festejar como se tu nunca tivesses desistido de tudo.
Tantos fins do mundo todos os dias, sentem-se com o ruído das massas
E amanhã estão os escombros limpos, a ocorrência registada para acrescentar à
História, como se fosse só para encher livro. Os problemas do mundo continuam,
Tu não eras o problema, só a consciência dos problemas, as sinapses
Desistiram de universos que se desintegraram em anóxia, enquanto outras
Estrelas se acendem todas as noites ignorando o tamanho insignificante
De dois olhos que se fecham, dois buracos de verme que terminam
Encerrando uma realidade no vazio eterno. Tornaste-te num sistema isolado,
Não aqueces nem arrefeces, apodreces, as cordas continuam a vibrar
E a permitir todas as injustiças contra a nossa moralidade inventada à sombra
De deuses imaginados, o Sol não é suficiente para todos e a fome parece
Ser o esgoto de uma civilização doente, corre debaixo dos hemisférios
Das cidades brilhantes e douradas. Os teus olhos tornaram-se cinzentos,
Podia-se perceber na mesa do café, enquanto falavas de cores e contra gerações,
Todos mortos também, copos falhados e erros irremediáveis, um Mugwump agarrado
Ao corpo de David Carradine e tu enterrado no anonimato de uma aldeia do interior,
Enquanto as abelhas continuam o seu trabalho na urze à entrada do cemitério,
Uma dolorosa indiferença voadora excessivamente doce. Têm morrido cantoras
Cansadas do seu cansaço pelo excesso da vida, sempre um excesso, quase tudo,
Quase nada, o mesmo excesso incompleto que é a vida e a reacção
Histérica dos vivos perante a morte é na verdade o festejar de uma vitória,
Ainda cá estamos a acabar, e uma certa inveja, como será estar morto,
Mas no fundo “quase nada é sempre melhor que nada”, querem acreditar
Os que têm a melancolia de uma vida relativamente fácil e sem fome de estômago vazio,
Mas no fundo sonham com mortes súbitas e coragem no décimo terceiro andar,
Esperam silenciosamente catástrofes naturais sentados no sofá a ver televisão
Só com a roupa interior vestida. Também te devem ter enchido o crânio com papel
De jornal, a última lavagem ao cérebro, mas escolheste tornar as sinapses em
Alimento para a curiosidade de facas, quando só tu sabes a verdadeira razão,
Quando só tu sabias qual a razão que não encontraste para desistires.
A tua cama ainda deve ter o teu cheiro e já as promessas de amor mudaram de nome,
A memória que não é escrita em pedras é muito volátil e desculpam-se
Com nomes de outros mortos como Karsakov, má alimentação, excesso de álcool.
O almoço está servido, mas não te preocupes, não arrefecerá à tua espera,
Não neste mundo de corvos vestidos de papagaios, que sonham com a infância
Perdida e fazem tudo para tornar a dos outros cada vez mais curta.

16.02.2012

Turku

João Bosco da Silva

sábado, 11 de fevereiro de 2012



Entre Saliva E Esperma

Num momento de dentes, lábios sôfregos pelo ar que acabamos de inspirar, demasiada
Pele para só duas mãos, o teu cabelo num punho fechado que expõe o teu pescoço
Branco, a camisa desaparece algures à volta do que deixou de existir, a fome de ter dentro,
A língua a tornar-se na serpente da sabedoria que acende o fogo do conhecimento
Verdadeiro, só os teus suspiros se conseguem ouvir entre a corrida dos nossos corações
Por sossego, uma amostra de eternidade de olhos abertos, os meus dedos passam
Na tua aspereza convidativa e perdem-se na doçura do teu calor negro,
Preparando a cópula, a impossibilidade de uma comunhão tão necessária como a vida
E enquanto a minha alma toda desliza por ti adentro, alguém passa, com um saco cheio
Dos seus vazios, as crianças brincam em sonhos, e alguém numa cama de hospital
Diz que só quer que a deixem ir embora, para a morte, que a vida já abusou o bastante dela,
Empurram-se êmbolos no bairro degradado e meninos bonitos snifam uma fome que
Imaginam ter, os nossos neurotransmissores são a única luz verdadeira nesta cidade
De cães que farejam sacos do lixo, espalhados pela cidade, porque uma greve,
Menos a fome, essa dorme em caixotes de papelão debaixo do viaduto, na companhia
Das prostitutas que entram em carros topo de gama, porque a vida alta só encontra
Satisfação nos bairros baixos e escuros de uma alma abusada por excessos, e dizes-me
Para te foder, na casa ao lado alguém deixa cair um copo que se parte no chão,
Na casa ao lado onde não vive ninguém, só gatos, recordações, desconhecidos
Em fotografias e o som de uma chaleira de manhã e à noite, alguém grita na rua
Enquanto outro alguém se afasta correndo, as sirenes anunciam pequenos apocalipses
E a vida passa indiferente nos passeios ao lado do cemitério de Paranhos,
Por trás dizes-me, assim, pergunto-te, não pares, não pares e o álcool a não parar,
Só os corações, e uma multidão de gente de branco com agulhas, afastem-se,
Nada a fazer, os sacos de vazios pousam-se ao chegar a casa e o vazio ali,
Onde sempre esteve, a seringa vazia e uma amostra de eternidade quente,
As palavras saltam de narina em narina, o carro topo de gama exige sem preservativo
E a prostituta já não se interessa, mais uma menos uma, os cães que são apanhados
São abatidos, os outros abatem a fome com lixo ao lado de outros que continuam
Debaixo do viaduto, a chaleira, a chaleira e tu abres a boca e engoles-me o mundo inteiro,
A dor destilada na fricção dos nossos corpos, o fim do mundo, e à nossa volta, tudo existe.

11.02.2012

Turku

João Bosco da Silva

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012


Poema De Foder


“(I´m fucking the grave, I Thought, I´m
bringing the dead back to life, marvelous
so marvelous
like eating cold olives at 3 a.m.
with half the town on fire)
I came.”


Charles Bukowski



Deixa-me entrar, não me obrigues a olhos que não estes de fúria fertilizadora,
A quem tenho que pedir direcções, o Miller diz que adormeceu, estava exausto do
Seu amigo francês, nunca das amigas dos francos, e tenho abusado da confiança
Que o Bukowski não me deu, acho que o vinho do porto tem dois truques
Escondidos nos goles quentes e frutados, e nem dou por mim em vales de carne
Numa vindima de gemidos maduros, fermentados por um adiamento de roupa
E privacidade de olhos fechados. Não, isto não é um poema de amor,
É um copo cheio de suor, esperma e o que me escorre pela barba abaixo
Enquanto me apertas entre os teus joelhos, tocando no fundo de ti aquelas músicas
Lamechas em silêncio, que só se tornam compreensivas quando arrefecer em ti
E te aparecer em reflexos nas janelas dos autocarros, mas saudade não é
Vontade de mais uns orgasmos em troca de coragem, resignação ao desejo
Traumatizado pelos verdes anos lavados com doutrina e hóstias consagradas,
Saudade é uma das doenças dos dedos que escrevem versos sobre perdição.
O pecado é apenas algo como o amor, abstracto, como deus, não existe,
Só quem acredita sente, por isso a minha carne dentro da tua, não tem nada
De pecado, sentes, não acreditas, dizem-me os teus olhos surpreendidos por outro
Dentro de ti, mas existe e se não fosse o controlo, que me disseste que tu também,
O pecado podia ter um nome e não se pode chamar Luxúria a uma criança,
Apesar de ter sido avarento em relação ao teu corpo, na verdade só teu e de quem te
Paga com ilusões, tradição e comodidade, os sofás ardem com hipocrisia.
Olha-me direito, que os teus olhos foram meus, assim como os teus lábios,
Esses inocentes lábios, doces lábios, frescos lábios, à volta do meu caralho
Com uma fome provocadora, a tentar provar que tu capaz de acrescentar ao luar
No meio de um descampado, enquanto o mundo arrefece e as recordações
Da última no mesmo lugar a confundir-se com o teu sabor meu na tua boca.
Todo o atrito, que a tua excitação apagou com a magia que só as mulheres,
Renasce na forma de palavras que me deixam exausto, para no fim
Nem o risco de um futuro defunto, como uma foda ao ritmo imparável
Do vazio de garrafas de vinho tinto caseiro e Lana del Rey a provocar-me
Com a sua carne irresistível que os seus lábios solidificam na imaginação
Do impossível, mas as minhas mãos cheias de ti, enquanto o Marquês me
Segreda ao ouvido indecências que o meu corpo cumpre no teu
E o frio lá fora, na ruralidade purificada pela geada, pede lenha,
Mas a tua fogueira é outra e enquanto o vinho não se cansar,
Queimemos carne, sonhos e desejo, venha depois o desamor a desculpar
O cadáver da curiosidade, a velhice do desejo e a fossilizar as fodas que fomos.

08.02.2012

Turku

João Bosco da Silva

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012


O Ritmo Da Insónia

Enquanto se espera que o sono venha fazer companhia ao cansaço, tentam-se afugentar
As recordações pesadas que asfixiam como uma avalanche e a consciência confusa não sabe
O que sentir. Apertando a cabeça contra a almofada como quem abraça o silêncio com o
Desespero dos condenados a uma eternidade de ecos moribundos, ouve-se o coaxar das rãs
Denunciando os amantes que se comem enquanto bebem o luar de uma noite de Verão,
Entretanto um javali tomba no sul atravessado por uma bala de carabina, o sangue é negro
Ao luar, a faca vai esculpindo a cortiça em forma de boi e os olhos do avô falam com o mesmo
Silêncio do céu, a força da cor de outras Primaveras, o Sol vermelho no fim de uma tarde
De canícula quando se esperava o autocarro para a vila, o vizinho bêbado paga-nos o
Assassínio de uma sede real, quando nem o dinheiro para uma pastilha elástica no bolso
E amanhã tem-se que acordar tão cedo e custa tanto renascer em mais um dia
Quando a insónia parece ser um sintoma do medo da morte. Vira-se mais uma página e todo
O peso do mundo muda de lado, ouvem-se os grãos de areia, pedras enormes, contra o vidro
Da ampulheta, mas é o sangue que se precipita nas têmporas em cabelos brancos e aumenta
O tamanho do ponteiro dos segundos, tornando-o num machado a fazer de pêndulo contra
A árvore da vida, as maças apodrecem à sombra e o primeiro beijo a estas horas tem o mesmo
Sabor debaixo das macieiras esquecidas, se ao menos a água parada daquele poço e o
Horizonte do fim da tarde de Junho, enquanto a vida verde e a língua ainda livre dos
Incêndios deliberados e se calhar é o que falta, um cigarro para ajudar a dormir, o tabaco
Enrolado neste poema em forma de insónia, queimando os lábios que tentam um gemido
Desesperado com mais uns versos, porque todos mais uns versos, cheios de vida morta,
Sonhos que dependem da sua impossibilidade futura, uma melancolia sem pais, fruto da
Escuridão quente contra as têmporas que o gelo do tempo cobre, ridícula e
Uma insónia que se tenta despistar nela mesma, entre lençóis, circunvoluções e papel.

07.02.2012

Turku

João Bosco da Silva

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012



Que Esperar De Um Poeta De Província

Que esperar de um poeta de província, um versejador que se esquece de rimar,
Com recordações doces como torradas feitas na lareira entre os potes da avó,
Com açúcar grosso, com medos antigos a preservativos e o que diria deus
Desde o quadro da sala, com o seu olhar hipnótico, se visse que roubamos um
Ao tio para ver como era, e a muros de cemitério que obrigam a um sinal da cruz
Compulsivo, recordações de fogueiras enormes no inverno onde se queima
O esquecimento e o diabo, e as estrelas agradecem a companhia das faúlhas
Que o som dos bombos elevam, ébrios, repetitivos, uma imitação de miocárdio,
Anos após ano à espera dos verões tão curtos, dos amigos que um dia serão
Apenas uma parte de nós que dói como se uma hipoxia, tantos cães mortos,
E os grilos esmagados entre duas pedras de um muro do lameiro do avô,
Assassino sem crueldade, enquanto as vacas pastavam os pensamentos
De ressacas futuras à sombra ainda fina das macieiras, todos os familiares que nasceram
Connosco, ainda vivos e a morte polpa de grilos, rãs secas ao sol, a pele
De uma raposa esticada entre quatro ou cinco pregos enquanto varejeiras
Lhe cantam o vazio numa vibração metálica, os presuntos estragam-se
E nenhum deles ficou por comer por causa de um mau verso escrito pela
Confusão adolescente, pela vontade de pertencer a um mundo que a consciência
Levou, e tudo ficou tão solitário aquém da pedra antes de ser lançada ao rio,
Os dedos tão grandes, tão estranhos, tão capazes de tocar o mundo e de o
Manter além da pele, uma quadra, duas quadras, três quadras e uma inspiração
Profunda quando o poema acabado, uma felicidade serena, um reencontro com
O silêncio das tardes sem segundos, sem tempo, com brinquedos imaginários
E a companhia do melhor amigo da infância, que era mais uma extensão do eu,
Mas com outro nome, outros pais e pouco se pode esperar de um provinciano,
Com sonhos que lhe foram emprestando, quando a serra deixou de ser o limite
Do horizonte e o mundo cresceu em tamanho, perdeu a lucidez e tornou-se mortal,
Definiu os seu limites, uma pedra entre dois dedos de vontade ao alcance
De uma fome por respostas que se procuram em mais perguntas,
Páginas e páginas de incerteza que se oferece em troca do alívio, do reconhecimento
Anónimo do silêncio, a mesma fome desde a idade da pedra, que fez alguém
Pintar a sua mão numa gruta escura, aqui esteve gente, na esperança
Que a afirmação da existência pudesse justificar o que nos separa do universo,
Por isso quando os anos tornam a presença do que somos tão pesada,
Se procura o alívio das cervejas apressadas na companhia dos que sabem o nosso
Nome, dos que não têm dúvidas de que somos, não fazendo ideia do quê,
Até a aguardente achar que é a sua vez de rasgar a noite vertendo a escuridão
Na chávena de um café provinciano, até o sabor da monotonia se confundir com
O da eternidade, não se pode esperar mais de um poeta de província, além de uma palma
De incerteza aberta numa parede branca, uma pegada na areia que as ondas apagam.

06.02.2012

Turku

João Bosco da Silva