quinta-feira, 25 de outubro de 2012


Elogio Da Loucura

não a de Erasmo,

Tem-se, às vezes, a necessidade da certeza de uma loucura, só na loucura se saboreia a intimidade
Da vida, as secreções do seu sexo, a lucidez não se sente ou é como cerveja quente, espera-se
Que a máquina de café esteja avariada para se ficar na indecisão, e agora, entre saltar ou não,
A água lá em baixo será uma certeza inesperada, um choque que o corpo levará ao tédio e o destruirá,
Despertarás, os dedos tremem e é quando se escreve melhor, os joelhos mal acreditam que
A pele se está a abrir com outros joelhos ali, naquele chão mundano, enquanto velas dançam
Com promessas ou palavras escritas, adiando o silêncio inadiável. Teme-se o fim, esquecendo-se
Que o início é o pai do que se teme, mas dá-se o passo, mais vale, já que mata mais estar sentado,
O tempo passa de qualquer forma, empurrando tudo e todos para a eternidade, onde nada
Nem ninguém é possível, mais vale, mais vale ir a caminho, vê-se mais, apesar de que tudo o que
Se leva dentro ficar encerrado num quarto escuro, as chaves no bolso de deus, onde os ossos
Fazem pó em cima dos móveis que podem até não existir naquela treva toda, chame-se o gato.
Escrever é muitas vezes a consequência de uma máquina de café avariada, uma cerveja demasiado
Cedo num estômago cansado e quase vazio, um momento de lucidez mergulhando na loucura,
Uma mão enterrada na imundice de uma alma, que se vendeu pelos pecados que lhe dão corpo,
À procura de uma razão, escrever é um sintoma da necessidade de loucura, quando todos os
Autocarros chegam a horas, não cancelam os programas habituais na televisão, o Inverno greta
As mãos como a ausência dela o coração, quando se pergunta ao médico uma estupidez qualquer
Como, isto passa, e ele dúvidas, pelo seguro traz-se um miligrama de adrenalina para ir andando,
Não vá a vida matar-nos com o café de todos os dias, a telenovela de depois da hora de jantar,
A economia que cada vez pior para alguns ao mesmo ritmo que os preços aumentam e só
A vida diminui e tem-se saudades do tempo em que as mão pequenas e cheias de futuro,
Quando agora as mãos grandes, gretadas e cheias de um vazio que se traz dentro, é tudo
O que somos, é passado, os saltos da ponte para o rio que entretanto também secou,
Onde em dias recentes se tentam exorcizar os anos com um amigo verdadeiro e um Kentucky
E se calhar o médico a achar estranho o sangue parecer o caudal de um rio que foi e já não é,
E olha, ao menos uma cerveja em vez do café de sempre, uma loira real à espera de sexta-feira
Para receber o seu poema de carne, a sua loucura necessária, para sentir um pouco a vida que
Se morre e que se lixe o fim, já começou de qualquer forma e a máquina de café avariada.

Turku

25.10.2012

João Bosco da Silva

sexta-feira, 19 de outubro de 2012


A Imperatividade Do Vazio ou Um Título Qualquer

para Tomáz,

É geralmente quando o vazio aperta, que misturo cerveja e poesia, as palavras arranco-as
Como se me arranhasse e ao mesmo tempo mais um gole, que parece ficar suspenso, não
Quer cair, um pedaço de pele nas unhas, como se me incomodasse estar a sentir que não
Devo estar, não aqui, não assim e então engulo mais um pouco de cerveja, um pouco mais
De algo que não eu, enquanto me arranco aos poucos, a cerveja amarga que empurro para
O silêncio onde moram todos os outros gritos, como quem lava os lençóis depois de lá ter
Perdido os limites que a alma permite ao corpo, quem não tem alma, tenta criar uma com
Palavras, para depois a poder sujar, já que não tem outra utilidade a não ser sujar-se,
Digo à loira que me humedece o copo e os dedos que o envolvem, quando me tocas eu existo,
Também me sinto invisível quando aqueles olhos não estão, a poesia torna-se num grito histérico
Quando ninguém está para ouvir, enquanto se acumulam cigarros e segundos apagados em cima
Da mesa de um café, para depois serem atirados para o fundo de um saco de lixo, por uma empregada
Que não sabe o nosso nome, menos vazio, há um tipo de sujidade que limpa, pelo menos
O vazio, por isso bebo, por isso me contamino em interiores anónimos, me sacio com a fome
Dos outros, porém o abismo aumenta a cada dentada de mais nada e só a distância entre o
Que sou e o fim se vai encurtando, só na morte me aproximo dos grandes, os meus lábios
Cada vez mais longe da cerveja, exige-se um ângulo maior entre o copo e o mento, no fim,
Perde-se a objectividade, sente-se menos, mas o vazio permanece, ri-se dos versos ridículos
Que quase foram versos dignos, mas acabaram por ser os que em cima pesam a tentar
Ser um poema, um copo vazio abandonado numa mesa, onde alguém se sentou, te procurou
Numa caligrafia de sismo, mas encontrou apenas o nome que falta e dá corpo ao vazio
Que se tentou em vão preencher, o templo em ruínas de uma deusa de carne e sonho
Onde desejo adormecer, até os seus lábios me acenderem o dia que consumirá o vazio.

19.10.2012

Turku

João Bosco da Silva

quinta-feira, 18 de outubro de 2012


Portugal 2

Portugal, sei que o meu descontentamento não interessa, mas quem foram os filhos da puta que te tornaram
Estéril, o horizonte diz-me que tu verde mas quando se chega lá, tu árido, seco, com leite
Só para mamões, dizes que não há pão, que a fome é necessária, a fome de milhões,
E depois alimentas uns quantos porcos a caviar e diamantes, porque mandam, mandam tudo
À merda com um sorriso, urinam promessas nos olhos do povo que se arrasta na imundice
E agradece os restos com mais um mandato, porque uns mentem melhor que outros,
Porque os olhos já não vêem depois de tanta porcaria, a televisão pinta idiotas de heróis,
Os jornais cobrem as ruas de más notícias que o vento sacode da vista e tudo parece distante.
Portugal, se roubasse um pão, não me perdoarias, não perdoas a quem rouba pouco,
És míope, e se vês algo à distância, é à distância do passado, o futuro é demasiado qualificado
Para ti, preferes exportar aquilo que vale a pena, no fim serás um país de formigas famintas
A trabalhar para meia dúzia de cigarras gordas, Portugal, não sei se me apetece esquecer-te
Ou esquecer aquilo que sou, esquecer-me de que a culpa é, segundo os responsáveis, de todos,
Portanto, também minha e sinto-me culpado, teria sido por segurar na pata do animal, nas
Matanças do porco, naquelas manhãs geladas de Inverno, para ir enganando a fome,
Ou será culpa dos goles de aguardente roubados dos alambiques atrás dos muros de pedra,
Com o cheiro a mosto no ar da vila, tenho quase a certeza que foi por ter tremido nas primeiras
Aulas da manhã, com o casaco vestido, na sala sem aquecimento, sim, foi isso, tremer não
É coisa de homem, não fiz o sacrifício de não sentir frio, se calhar foi algo que herdei, o meu avô
Ter sido internado pela primeira e última vez, poderá ter sido pelas missas de Domingo, por ter
Seguido outras tradições com a fidelidade de um crente, de uma coisa estou certo Portugal, só
Pode ter sido por ter cumprido com tudo o que esperavam de mim, menos por ter sido
Um rato, é o que dizem quando se afundam navios, mas tu um porto, certo, a partir de ti descobrir
Mundo, e esquecer-te, mas não compreendes que a saudade nasce connosco e a saudade é feita
De memória, de recordações. Porque não gostas de nós? Porque não gostas de mim? Dizes que
Estás a envelhecer e não me deixas dar-te um pouco de juventude, eu que queria ter filhos
Que falassem português, que comessem uvas directamente do Sol de Setembro, que arranhassem
Os joelhos na calçada do bairro antigo e chegassem a casa com a roupa manchada com amoras,
Ou uma dor de barriga por demasiadas cerejas, queria que eles se apressassem ao ouvir a trindade,
E que no Inverno sentissem aquele calor no coração quando se cheiram os fumos das lareiras no ar,
Mas que te interessa isso, quando os teus porcos engordam cada vez mais e cobrem tudo de um
Estrume caro e inútil, fertilizando tudo com esterilidade, palavras e sonhos vazios, sonhos
Portugal, só os tenho quando durmo e às vezes tu não ardes, às vezes tu mais que Agosto,
Eu e a família que tu me negaste, com a mulher que tu me negaste, porque é difícil,
Ao fim da noite a falar de outras coisas que não o desemprego do pai, o Natal que se aproxima,
Seco de presentes, negaste-me acordar todos os dias ao lado de alguém que me diz Bom Dia
E sabe o meu nome de verdade, ofereceste a tantos outros a desconfiança, por aqueles luxos
Pequenos da mulher, quem será o porco gordo e cada vez mais se vendem, e os corações uvas passas,
Porque a vida está difícil, não sejas burra, não sejas burro, se tiver que ser, ajoelha-te e chupa,
É o que tem que ser, porque Portugal, andaste a convencer quem és, que é normal, cada vez mais puta
Tu, vendes-te até à língua, dás o cu a quem perdeu duas guerras com ele para o ar,
Já chegaste ao último furo do cinto, mas a gravata continua apertada a esconder os
Botões que te faltam na camisa, Portugal, mete-me nojo, não quem procura um alívio no caixote
Do lixo, mas quem passa em luxo, como se fosse um direito que só alguns têm, direito à fome,
E os porcos continuam a mastigar diamantes, enquanto cagam nos direitos dos que arrastam
O teu cadáver, e dizes que a responsabilidade é de todos, e é verdade que poderia ter tirado melhores
Notas, podia ter lido mais se a mesada desse para mais do que uma sande de pão e queijo por dia,
Que não comia para poder comprar aquele livro que não havia na biblioteca pública, e agora dou razão
À minha mãe, livros que não interessam, só me abriram mais os olhos e em ti, é mais fácil
Ser cego. Portugal, como podes esperar que no futuro as coisas melhorem, se continuas
A expulsar o futuro, a queimar o futuro, a vender o futuro por simpatia, estou cansado,
Estás cansado, a culpa é minha, eu sei, nossa, é daqueles que morrem nas ruas, daqueles
Que morrem sós, com fome, em aldeias desertas, é daqueles que morrem à espera de uma consulta,
Ou à espera de um pouco mais de atenção, que não se tem, porque há demasiada gente
A precisar, a precisar de tudo, quando tudo, é só o direito de quem te fode, de quem abusa de ti
E goza contigo, mas desculpa-me Portugal, sei que neste momento, devia estar perdido,
Como tu, em ti, em vez de estar perdido, aqui, consumido pela saudade daquilo que me és,
Dos teus montes, do cabelo cor de cobre, dos sorrisos das crianças a brincar ao esconde-esconde,
Do Sol que torna o Outono dourado em vez de castanho como noutros países, do cheiro salgado
Da tua areia, da cerveja fresca, das romãs no fim desse Outono dourado a darem-lhe um toque final
De rubi, das casas, umas em cima das outras, encaixando-se bem nos contornos das vizinhas,
Das velhinhas cheias de rugas fazendo desejar-me durar ao lado da mãe dos meus filhos,
Dos meus filhos com um futuro também dourado, se forem merecedores disso, não como o pai,
Que nunca será pai, que está descontente, só por lhe terem permitido sonhar mas não o sono,
Por lhe terem vendido um bilhete para lado nenhum e o criticarem por ter ido, para onde
O Sol é frio, mas permite viver, a vida sabe a cinzento, mas vai-se vivendo, até ver, até ver Portugal.

18.10.2012

Turku

João Bosco da Silva

segunda-feira, 15 de outubro de 2012


Mega Drive

para o Carlos,

Há jogos hoje, considerados retro, mas que para mim são mais do que o velho antigo, estar na moda,
São cheiros que me chegam ao hipocampo através dos olhos, dos ouvidos, dos dedos ou até
Do nariz, o cheiro do pó que se sopra dos cartuchos de plástico, para os pôr a dar outra vez,
Um sopro mágico, um botão pressionado e é Verão, Agosto e a minha mãe cozinha os mexilhões
Que apanhamos no rio com os tios de França, a cozinha quente e húmida, o cheiro íntimo do rio,
Ou é aquela neta da amiga da minha mãe, à espera que eu perdesse uma vida para poder
Ser ela a seguir, com o seu cabelo sempre muito curto, olhos vivos e dentes de malandra,
Que depois à noite, passou o tempo, enquanto a avó tagarelava com a minha mãe na cozinha,
A massajar-me os tomates e a gaita por fora das calças, nas escadas, ao escuro, apertava com força,
Até à dor verde, mas não importava, ainda tinha mais vidas para morrer, aliviava-me os tesões tenros
De idade, é quase sempre Verão e o amigo do Porto está na vila e passamos as horas da canícula
A tentar chegar ao fim deste jogo, um nível a seguir ao outro, até o Sol nos dar tréguas e um
Nível nos esgotar a paciência daquele dia, lá íamos então, comprar um gelado ao quiosque do jardim
Da vila, ou beber um ice tea a caminho da casa do outro amigo que morava no extremo oposto,
É o meu pai a dizer-nos que ficamos com os olhos em bico e a acertar nas minhas dioptrias
E a minha mãe a desligar-nos o contador da luz, porque isso faz-vos mal tanto tempo, e eu e o
Meu velho amigo a caminho de sua casa, a fazer de conta que uma volta para apanhar ar e Sol,
Mas o cartucho escondido no bolso, para tentar encontrar o ponto fraco daquele big boss persistente,
Às vezes também é no Natal enquanto não se podem abrir as prendas e a missa do galo um nível
Onde nunca nenhum de nós tinha chegado, ou as férias de Natal com o primo que mais se admirava,
Com a sua colecção de jogos e a neve lá fora a tornar as férias em mais dois ou três dias de lareira,
Sofá e botões infinitamente pressionados para aquecer os dedos frios dos jogos na neve,
É alguém a dizer que quer ver o futebol e nós de pé, com os comandos na mão, a caminhar
Lentamente em direcção ao botão vermelho, estava quase, e que alívio acabar um jogo,
Mais uma conquista, comparável às conquistas de carne dos anos futuros, mas com a doçura
Da inocência, hoje quando jogo, quando jogamos, o peso dos anos torna-se mais leve, pousa-se
Por momentos o imenso saco de lixo que fomos acumulando ano após ano e somos quem fomos,
Sopramos o pó do cartucho e está resolvido, os anos de desuso da criança que fomos dissipam-se,
Soprámos e vai dar, a vida vai ter um sentido, em direcção ao último nível, a vida vai ser um desafio seguro,
Os objectivos são simples, salvar a princesa, vingar o pai, vencer o cientista malvado,
Somos capazes disso tudo, é uma questão começar e persistir, o controlo está nas nossas mãos.

10.10.2012


João Bosco da Silva

domingo, 14 de outubro de 2012


Ensinar A Andar De Bicicleta

Sabe andar de bicicleta, mas não se lembra quem lhe levava a mão no celim até
Encontrar equilíbrio, e depois corria ao seu lado para a levantar do chão logo depois da
Quase queda ou queda, necessária e esperada, só assim se aprende, a andar de bicicleta,
Mas não se lembra que foi na minha que aprendeu, no caminho de terra que me abriu a carne
Um dia e pó e sangue, não se deve lembrar das cerejas em flor nem do cheiro a verde fresco
Dos lameiros húmidos à volta do caminho, o céu azul como o futuro que os olhos acreditavam
Alcançar, amanhã e chegava, no fundo não interessa, ela sabe andar de bicicleta e eu enferrujo,
Ao lado da bicicleta, velha, atirada a um barranco que não sei onde, uma memória abandonada,
As cerejeiras, algumas, já devem ter secado, nos lameiros a erva cresce e não há quem tenha animais
Para pastar tanto verde, um verde que parece mais escuro, no poço as rãs desistiram de provocar
As crianças e tornaram-se seixos, ou um pedaço de sabão azul que alguém deixou ao Sol
E à chuva, a ser uma memória que se gasta com o tempo e perde a forma original,
Mas que continua a poder lavar, as mãos de quem precise da sua espuma, e na vida, tudo o resto
Ensinar alguém a andar de bicicleta, cada novo gesto um ensinamento, cada beijo, cada abraço,
Cada toque, um pouco mais que se leva, e na ilusão de quem dá, fica sempre a esperança
De que ele também, ele a latejar no pouco que se deixa, no pouco onde se foi todo, tudo e se esquece,
Com a negligência inocente das crianças, e o caminho talvez se lembre, de um rapaz a correr
Ao lado de alguém que encontra o equilíbrio, em cima de uma bicicleta, pela primeira vez, para sempre.

14.10.2012

João Bosco da Silva

quinta-feira, 11 de outubro de 2012


Putas Com Memória De Elefante

Diz-me que esteve em Portugal em mil novecentos e cinquenta e três, em Leixões,
Ia a caminho de Casablanca desde Helsínquia, uma das muitas histórias que se pode
Encontrar numa insuficiência cardíaca se lhe dermos ouvidos, a primeira notícia ao
Desembarcar foi que Estaline tinha morrido, havia quem festejasse na rua, a morte
De um ditador, no país de outro ditador, do outro lado da Europa, mas em Leixões,
Os seus olhos brilham como se por momentos olhasse no espaço entre nós a chama
De uma vela há muito apagada, é melhor não contar, com uma vontade enorme
De desenterrar algum pecado que deixou saudades, sorrio-lhe maliciosamente,
Com ar de quem conhece muitas outras histórias de putas, de quem esteve,
De quem sabe o que ali vem, como que bater-lhe nas costas para o aliviar daquele
Engasgamento com um pedaço de passado, vamos lá, somos homens e tal e ele,
Continua, em Leixões as mulheres, piscando um olho como se não fossem mesmo mulheres,
Mas são mulheres, baratas, vinte escudos, uma ninharia em marcos e eu sorrio-lhe,
Um sorriso diferente, agora com uma certa tristeza por me dar conta, que já em mil
Novecentos e cinquenta e três, eramos as putas mais baratas da Europa, ele continua
Até Casablanca, mas eu fico naquele Leixões, fico a procurar onde estará quem por vinte
Escudos se vendeu e fez este homem feliz, tento encontrar que felicidade comprou para
Ela própria, estou certo que os vinte escudos se gastaram, também a lembrança de um homem
Alto, loiro, jovem, vindo de longe, dentro, num beco pestilento de Leixões, já se deve ter gasto
Nela, ou não, porque afinal, somos putas com memória de elefante.


10/10/2012

João Bosco da Silva
Weimar Onde Me Sento

Não compreendo, Weimar, só o nome e sinto quase saudades de nunca lá ter estado,
Vejo Nietzsche numa cama, no seu fim, ou à volta, a iniciar-se, para a repetição infinita
Do seu bigode, e sei se fosse seu contemporâneo me veria como uma insecto, limitado,
Preso à educação que me deram, mesmo quando reactivo contra ela, sei que se não tivesse
Ele matado deus e me estivesse a ouvir neste momento, acharia que, apesar de eu hoje estar
Longe do presente de mil e novecentos, abanaria a cabeça desiludido, ainda longe o super-homem,
Nem perto, nem que o bigode se repita infinitamente, a vida não valerá a pena ser vivida
A não ser para repetir os erros que vistos de uma perspectiva cósmica são correctos como
Tudo o é, por ser, mas lá está a água benta a fermentar colónias e o pão a colar-se no palato
Das velhas que temem a foice da escuridão eterna, elas que tão castas, depois de secarem,
E Weimar tão familiar, que quase me sinto em casa quando o vejo marcado num mapa da Europa,
Mesmo estando num país que cada vez mais me afasta dele, que cada vez mais se afasta dele
E abraça as imposições estrangeiras de joelhos, de calças baixas e bolsos vazios, eis os super-homens,
A rezar à nova religião, à espera de flutuações favoráveis como de milagres, novos cristãos
Que por muito que se esforcem, serão postos de lado e comerão alheiras, para evitar
A fogueira inevitável, Weimar, e Nietzsche abençoado pela loucura, paz finalmente, paz trazida
Da consequência das suas visitas às putas, diz-se que sífilis, Lou Salomé diz-lhe que não eternamente
E ele repetidamente a morrer em Weimar, enquanto eu morro aqui, longe, sempre longe e estrangeiro.

11.10.2012

João Bosco da Silva

segunda-feira, 8 de outubro de 2012




Feliz Natal E Um Moleskine Perdido

Perdi um moleskine e com ele vários poemas, os melhores poemas, tudo sempre o
Melhor quando perdido, é mais fácil sentir o tamanho do vazio do que daquilo que o criou
Quando se perdeu, aplica-se a tudo, menos à vida, sinto que foram os poemas que mais me
Aliviaram, agora que estão perdidos, sinto um alívio como naquela manhã de Natal,
Depois de ter ejaculado nas tetas daquela loira falsa, com a porta entreaberta,
O alívio da toalha azul, que tinha dormido connosco, com o meu futuro já seco e perdido
Da última foda, a limpar-me da sua pele e mais uma vez perdido, promessas perdidas,
O salvador do mundo irremediavelmente perdido, o anticristo que já demora em vir,
Tudo perdido e o alívio de perder algo que nos era, que nos possuía, que era nós,
Perder um pouco do lixo que se acumula com o passar dos segundos, pelos sentidos,
Pela fermentação do que ficou dos sentidos e já não é nada a não ser um passo na areia,
Que insiste em secar ao Sol, enquanto não vier o azul e levar tudo, perder tudo,
O amanhecer azul e ela geme-me, que queres que te faça, numa língua irmã cortada,
Continua, estou a saborear o teu interior, não pares, isso, e ela preocupada que eu desiludido,
Por só a estar a foder, deixa estar, eu já trato de ti, presente de Natal sem futuro, um orgasmo,
Lençóis esmagados entre unhas pintadas de vermelho, corre-te, e eu venho-me também,
A porta entreaberta, na cozinha o barulho da noite anterior já apagado, dentro de nós, uma
Ressaca dupla, da bebedeira e das fodas, o moleskine perdido, o esperma levado pela toalha
Azul antes de poder arrefecer, os poemas levados antes da tinta secar e só o alívio,
Uma quase satisfação por ser Natal e estar perdido, mesmo encontrando-me dentro de um nome
Que hoje, loira falsa, do sul, que queres que te faça, faço-te tudo e no fim levo apenas o vazio
Que fica depois do Sol nascer, um moleskine cheio de poemas que não serviram para mais nada
A não ser encontrar-me fora de mim, como quem se encontra dentro de alguém e escrever,
Como foder, é a minha forma de não estar só, mesmo estando, um com, outro sem companhia.

08.10.2012

Turku

João Bosco da Silva

segunda-feira, 1 de outubro de 2012


A Relatividade Das Sombras Enquanto Versos Ardem

Sentes-te só e por isso abres um livro e descascas um poema, mas devias saber que o poema
É feito da luz de estrelas mortas, sempre demasiado tarde o alertar da sua presença,
Sempre ausente quando se apressa o coração a encontrar os dedos que tentaram acompanhar
O silêncio das noites dos dias da vida, se te sentes só, fecha o livro, não procures a companhia
Da solidão, não anseies por palavras que deixaram de vibrar e só esperam que os teus olhos
Famintos lhe tragam um pouco de vida, todas as palavras são também tuas, cada uma encaixa
Perfeitamente e parecem abrir-te um alívio em forma de janela, das que tens dentro e não
Sabias que podiam ser abertas, mas não trazem nada de novo, se trouxessem algo de novo
Não compreenderias e dirias, não faz nenhum sentido isto, porque não tinhas em ti o substrato,
Sente-te só, não entre em mais nenhum verso, acabarás por encontrar um espelho onde
Verás a tua solidão de outro lado e aí terás a ilusão de não estares só, um erro, pois é impossível
Encontrar companhia na solidão dos outros é mais real o latir de um cão numa noite
Quase silenciosa, é mais real o chamamento de uma prostituta na rua mais em baixo quando
Passas com a tua solidão, mais real a janela do café ao lado partir e passos apressados
Pela rua abaixo, mais real o toque do telefone da casa ao lado, o passo dos vizinhos,
O olhar que procura um olhar do outro lado do bar, quase deserto, mais real que toda a luz
Que possas encontrar nos versos, onde te encontras só, nu, como se alguém tivesse definido
A tua própria solidão antes de teres nascido, um desconhecido que julgas conhecer nas sombras.

01.10.2012

Turku

João Bosco da Silva