quinta-feira, 27 de dezembro de 2012



Chelsea Hotel

Estaciono o burro albino e os meus amigos acompanham-me com o fumo de raízes do inferno
Ancestral, entramos numa livraria de uma cidade misturada com sonhos de futuro e memórias
De sótãos esquecidos, onde decorre a apresentação do último livro do poeta que quase
Conheço, ele tão estranho quanto o imagino, demasiado silencioso para a sua química cerebral
Caótica, alguém lhe apresenta o livro com um campo esterilizado em cima da mesa, arrancando
Os pêlos do cu, um a um, e queimando-os cheio de cerimónia e pedantismo com um isqueiro
De prata, as paredes envelhecem e bocejam, as caras confundem-se com as prateleiras cheias
De títulos aborrecidos, arrasto uma cadeira e sento-me ao lado do poeta, como é que é,
Finalmente lhe digo, ele sorri irregularmente e eu respondo-lhe com a minha irregularidade,
O editor mostra-me dentes desaprovadores num olhar de óculos desnecessariamente grossos,
Há cegueiras e cegueiras, criticando com as pupilas a minha indumentária de cigano pobre,
Todo o gangue espalhado pela sala, vestindo o rigor exigido pela festa pagã, no tempo
Em que os caretos se usam para vender tarifários, estou obviamente bêbado, amizade e vinho
Do Porto Tawny como naquela noite de São João e kebab ruivo, estão comigo os maiores
E com eles sou tão grande, peço licença interrompendo o metralhar monótono e insosso
Do cirurgião sem talento além do que se atribui por direito de um deus que queimo
Nos cigarros que deixei de fumar, a fogueira lá fora mantem-me acordado dentro, viro-me para
O poeta, é catarse pá, é vomitar a merda toda que mundo nos faz engolir e tu fazes isso com uma
Arte que te invejo a loucura, sou demasiado tosco, nunca aprendi a lixar a vida, eu é mais fodê-la,
O cirurgião segura mais um pêlo e queima-o, dizendo que estou a repetir tudo o que ele já
Tinha dito, mas como um marinheiro e eu sorrio numa ironia transmontana sem máscara
Grotesca, somos filhos de Juno, a nossa amiga poeta como anda, pergunto-lhe com ar de
Sei que a fodeste, procuro no casaco cheio de bolsos rotos uns trocos que sobraram do vinho
E lá junto dinheiro para o livro, peço-lhe para o autografar com uma dedicatória simples e breve,
O burro está à geada e os amigos já com uma sede inquieta a levantarem cadeiras e a saltarem em cima
Das caras aborrecidas, ele abre o estojo de pintura e pinta a primeira página, este gajo,
Penso com admiração, agradeço-lhe batendo-lhe nas costas e digo-lhe, e tu és bó, saio,
O gangue segue-me e mergulhamos na noite fria até que o cansaço amanheça.


Torre de Dona Chama



27.12.2012



João Bosco da Silva

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012


Prefiro Ficar Em Casa

para TI,

Prefiro ficar em casa, onde é familiar o vazio da tua falta, cada novo lugar onde vou
É uma lembrança da tua ausência, fico triste quando o Sol se põe e leva mais um dia,
Um dia que me acompanhou e me fez companhia enquanto os segundos, um por um,
Me dizem que tu não estás, de manhã, o dia ainda não sabe que sou metade,
E desperta-me com indiferença, procuro-te toda a noite onde me moras, escondes-te
Nas circunvoluções dos meus medos, e só espero que o orvalho me tenha trazido
Palavras tuas, bom dia sem ti são apenas palavras, que me despertam um sorriso triste,
Uma ironia inocente, deus parece-me cada vez mais real, aquele velho perverso
E hipócrita, que só por não existir lhe permito tal desrespeito ao meu coração,
Os meus sentidos esquecem-se de sentir, para se recordarem dos momentos
Em que foram expostos à felicidade que é a tua presença, e acusam-me de não estar,
Porque na verdade não estou e se fechares os olhos, irás ver-me, e mesmo que não
Sintas o meu toque, sentirás a certeza do meu sorriso quando penso no teu,
Não há fome pior que esta, nem distância maior que não estar contigo,
Daí ficar em casa, onde as paredes já sabem que só eu, sem estar, distraído no fundo
De mim a brincar com bolas de sabão, onde dentro, as recordações do que vivi contigo
A fazerem os meus olhos brilharem, como quando era criança, até o silêncio
As rebentar uma atrás da outra, então quebro-o com um suspiro onde procuro
Encontrar um traço do teu cheiro na pele que deixou de me pertencer.

17.12.2012

Turku

João Bosco da Silva

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012


A Farmácia Fechou Na Savana

Entretanto a farmácia fechou e eu ficarei mais um dia sem os comprimidos para a cabeça,
Fiquei a tarde toda de olhos fechados contra o tecto, a ver elefantes atravessando rios exaustos,
Esqueci-me de ter fome, distraído pelas hienas que me atravessam como um caminho,
Ignorando-me num fingimento de desdém que levam no lombo, espero-lhes os gritos
À noite, à noite gritam em todas a línguas e prometem a eternidade entre os dentes
E eu debruço-me sobre a almofada e deixo-me ser devorado por trás, como não deve ser,
Diz-me o catecismo, apesar de nunca tal ter lido a não ser na moral dos outros, que me
Emprestaram até ouvir o burro de Zaratustra a acordar a aldeia para o azul da madrugada,
Naquele Verão onde chovia do tecto frustração líquida e unhas desesperadas na carne faminta,
E agora pergunto-me se valeram a pena aqueles olhos azuis, se os cinzentos foram mesmo
Uma consequência da má disposição do céu, para no fim a verdade estar ali, debaixo de um castanheiro,
Coberta de orvalho, ou a urina de um lobo que por ali passou esquecido de se extinguir
Nos dentes de ferro ou num granizo de chumbo, e os elefantes levam pedaços de mim,
O rio quase um desmaio e árvores trazidas do génesis a confundirem-se com os crocodilos
À espera da estupidez de mais uma sede incauta, fazem-me lembrar a parede da igreja lá da terra,
Onde se sujam almas por fora, entrando-lhes dentro, só o olhar perplexo no reflexo dos olhos
De um babuíno à chuva me desperta para a minha falha, a farmácia já fechou e a serotonina
Continua a ser pouca no rio, mesmo assim as moscas ainda insistem em lamber as lágrimas crónicas
Dos olhos dos órfãos, os hipopótamos não perdoam uma invasão de propriedade
E o castigo é fazer a vida ignorar a tua existência, dizem que lá longe, numa montanha, entre duas
Menores, para a eternidade, um miúdo de cinco anos, toma conta do gado mais seco que
O estrume com que acendem o lume, e eu tenho ciúmes daquele gado, por ter alguém que olhe por ele.

14.12.2012

Turku

João Bosco da Silva

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012


Nas Mãos A Recordação Daquele Beijo
Reminiscências da Rua do Almada

Como escreveu alguém que conheci, escreve-se melhor no cansaço, na amargura dos
Dias que são hojes, e são cinzentos e convencem os olhos de que melhor fechados,
Voltados para o impossível, aquele cinzeiro onde ela apagava o cigarro com um olhar
Esfíngico e eu sem mais nada para lhe oferecer que a minha companhia pessimista,
A minha palidez fria de pensamento e ela toda olhos, lábios que de certeza, não se
Humedeciam sem intenções de me provocar o desconforto existencialista à flor da pele,
Para nada, dizia-lhe, para nada tudo, é melhor ir para casa e adormecer e conservar
A possibilidade de tudo dentro de nós, e hoje só o beijo arrancado ao desespero de muitas
Noites de desejos afogados em portas trancadas e lá fora só o silêncio dos ladrões
Na calçada, o cheiro das prostitutas a chamar ridículo às masturbações bafientas,
Porque para nada, e perder-te seria como arrancar um transplante tolerado, adoptado
Como parte própria, e assim perdi-te sem nunca te ter e os lábios separaram-se
Numa arrancar e um pouco de mim ficou a latejar nos teus dentes, tu toda a latejar
No meu cansaço, nos meus dias de maior sombra, porque tu me conheceste quando
A massa atingia o ponto crítico e se engolia a si mesma com o todo o peso do niilismo,
Lias-me os lábios e sabias que Nietzsche era um muro erguido entre a minha vontade
Real e o teu corpo, lias-me e sabias que as minhas palavras queriam ser antes dedos
A percorrer o teu corpo, a entrar dentro de ti e a sentir a verdade absoluta da tua excitação,
Entretanto os anos passaram, só o cansaço ficou, cada vez maior, tão grande que esmagou
Todos os muros, todos os para nadas, esmagou tudo e agora, que tudo uma polpa
Indefinível e insensível, beijam-se todas as prostitutas e lambem-se todas as calçadas
Em busca de um rasto dos teus lábios, das noites em que não te possuí com a força
Da vontade, para não te perder, e agora nas mãos, só a recordação daquele beijo,
Rodeada pelo vazio do nada em que todas as possibilidades se tornaram neste futuro.

12.12.12

Turku

João Bosco da Silva

domingo, 9 de dezembro de 2012


Arcade

Ela engole e diz que vai para o Inferno, com o sorriso de uma menina travessa que acabou
De arrancar a cabeça à boneca favorita da amiga, as mãos ainda abertas nas minhas nádegas
E eu arrependido da moeda que acabei de perder garganta abaixo, game over, quer se acabe
O jogo todo ou não, sempre a mesma coisa, mas o que nos faz perder mais uma moeda é
O desejo de chegar ao fim, passando por tudo, sobreviver a tudo menos à inevitabilidade,
Não deixar nada por fazer, por dizer, por ver e assim se joga arcade num moleskine,
Desenhando com palavras os olhos de fogo inocente, ajoelhados no chão sujo, rasgando as
Meias como quem abre as nádegas com as mãos e espera uma bênção que livre do tédio,
Com o futuro acabado antes de chegar, a morrer nos sucos gástricos, a implorar, play again,
Eu a procurar uma última moeda nos bolsos e, não chega, não chega mas ela empurra
A promessa de um extra crédito para dentro da sua boca quente, outra vez, que fome esta
E deixo cair mais uma moeda que não existia nos bolsos sempre vazios de esperança,
Na perdição onde me encontro por momentos, onde moramos no momento antes de adormecer,
Ignorando a certeza única do game over, mas a vida é enquanto nos for dada a oportunidade
De continuar a errar, de escolher perder ou não mais uma moeda, sabendo que também
Elas têm o tempo contado, os miúdos ao meu lado batem recordes e eu digo-lhes
Num diálogo de insónia, estive aí, não fiz isso, mas chegarei lá, game over.

Naantali SPA

07.12.2012

João Bosco da Silva