terça-feira, 28 de fevereiro de 2012



A Poupança Das Lágrimas

Custa a acreditar que aqui alguém chore, à noite há animais que o fazem pela gente
E de dia o Sol não permite certos desperdícios, mesmo quando tentam decifrar
O sentido da vida nas sombras vertidas pelo sangue seco fora. O António Lobo Antunes
Fala de uma África de gotas ou pingos em lábios de musgo, os joelhos falam mais que gente
E lágrimas as dos outros, os que ficaram com o vazio das que sem mais tempo,
Cortado a catanadas, granadas e a alemã passa, numa frescura quente de ancas fartas
Numa proporção de tesão fácil e diz-me com o azul loiro dos seus olhos, que à noite,
Na tenda que faz de casa de banho, escondidos na vibração de uma cidade febril,
Quando se calarem as desgarradas dos profetas e o pecado souber a animalesco
E se apague na descarga de um autoclismo, como se lágrimas poupadas,
Levando com elas o papel higiénico do gesto apressado, quase um desprezo
Depois da carne que fica nos dentes, um incómodo a presença e um beijo mais
Que um adeus, desaparece, até nunca, mas obrigado na mesma pelo alívio das lágrimas
Que não pingam, explodem espessas nas nádegas rosadas e anónimas, que o Sol
Não permite certos desperdícios e os animais que se envergonhem também
Da marca branca no anelar, promessas de metal numa ironia preciosa que se escondeu.

26.02.2012

Nairobi

João Bosco da Silva


À Hora Da Sesta

Uma águia insiste em existir, apesar da porta fechada, das cortinas corridas
E do sono que a canícula injecta no olhar cansado de tanta novidade
Da mesma coisa, a embaixada francesa logo ali, a bela casa do ex-presidente
Com os luxos óbvios protegidos por arame farpado e guardas que derretem,
Mais abaixo o bairro de lata para quem a tem ou a encontrou, uma dúzia
De tábuas mal pregadas a tentar ser ao menos sombra, já que casa é difícil,
Um casaco de Inverno quando mais de trinta graus, só porque não se tem
Outra roupa e a polícia não gosta de gente nua pelas ruas, só os cães
Parecem falar a mesma língua, desinteressados da palidez dos dólares
E a águia continua a entrar pela janela, quer denunciar a farsa, quer dizer
Que tudo é mais do mesmo, o mesmo pior, o pior mais abundante,
Os mesmos Mercedes blindados com medo das bicicletas esfomeadas,
Ressuscitadas de um cemitério de bicicletas depois de mil mortes,
Afinal táxis e famílias dependentes de pernas incansáveis, tão finas,
Enquanto os ministros morrem por problemas cardiovasculares, gordos e só
Os cães parecem respirar o mesmo ar, guardam crianças de quatro ou cinco anos
Que guardam quatro ou cinco bezerras, vestidas apenas com uma camisola
Enorme, feita de pó, calor e dizem que algodão também, outra da mesma
Idade chora sem vontade porque quer saltar para a sobremesa, as moscas
Enchem a barriga de olhos e ranho na cara indiferente de um bebé, um francês
Paga um refrigerante e como extra, leite, depois de se silenciar o gerador,
De terem corrido os fechos das tendas e as hienas despertarem para acompanharem
Os gemidos das suecas que parecem nunca terem estado tão completas na sua vida
Demasiado fácil de suicídios imaginários, dramas artificiais e romances em poentes
Quentes à troca de umas notas sujas de suor, pó, sangue, esperma, mais do mesmo
Em todo o lado, diz a águia e fica a olhar como quem pede um rato, além do quarto
Pequeno numa cidade que ferve, um refúgio no inferno que a maioria chama vida
E só poucos a gozam, gozando também do inferno que fazem da vida dos outros.

25.02.2012

Nairobi

João Bosco da Silva


Não Esperes Grande Coisa

Não esperes grandes palavras, essas parecem só aparecer quando não há mais nada,
Vêm nas noites de insónia e ocupam o olhar vazio fixado no tecto, vêm num crepúsculo
Que não tem nada triste, só nos olhos de quem à janela, espera sabendo que não vem
Ou já foi, uma quase tristeza que a distância do tempo e a distância da distância
Fazem do que uma vez felicidade. Não esperes grande coisa, até porque ainda não
Há necessidade de luz artificial, as plantas crescem e as aves continuam nas suas conversas
De penas coloridas, os pastores regressam com as vacas e quase nem me lembram
Os fins de tarde numa aldeia do interior de outro mundo, o chocalhar a encher as ruas,
Não demoram a dar as trindades, cheira a comida no ar, mas hoje será cabra,
Não das que se tentam lavar da alma com poemas forçados, das que crescem na sede,
Na inocência que está contada, na autenticidade que começa a ser pálida, se admira,
Mas não se compreende. Não esperes grande coisa, grande bravura, a distância entre
A minha mediocridade (um Massai vem fazer negócio) está além de um cartucho vazio,
Mas desculpo-te Hemingway, por isso desculpa-me também esta secura de palavras.

23.02.2012

Massai Mara

João Bosco da Silva


Safari Cola

O pó parece ter levado o peso dos anos, o céu está mais próximo, já se sabe
Que cada vez mais próximo e a pele parece beber a chuva pesada, os grilos
De Agosto já tocam e o Safari Cola das primeiras noites adolescentes nunca
Terá o mesmo sabor. Ao longe a cidade acende-se ao ritmo do Sol que se apaga
E entretanto os leões digerem a carne da vergonha dos dias, a gente rumina
As almas cansadas de tédio e canícula. Debaixo de uma árvore escreve numa
Peça de cadáver um que hoje se sente vivo e parece tão perto o lameiro do avô,
A macieira sofreu uma mutação, mudou o nome latim, o país e adoptou
Outros insectos como companheiros. Hoje na exaustão, a vida vale a pena,
Com ou sem alma e a poesia é uma tentativa gasta de a fazer sentir no vazio
De umas linhas escurecidas pelo horizonte que ainda se engasga com o Sol.

22.02.2012

Nakuru

João Bosco da Silva


Esperar Por Andorinhas No Inverno

O leão já não caça, deita-se debaixo de uma acácia e espera que os turistas lhe tirem fotos
Por dólares, às tantas olha para o relógio de pulso, não vá ser já tarde, é que aos Sábados
As zebras fecham a mercearia mais cedo. As cobras contam com o medo e o respeito
Pelo seu trabalho de bode expiatório de tanto crente no vazio, aceitam, estóicas,
O fardo que lhe puseram aos ombros, um dia ombros, antes do pecado original.
Os burros cagam no frio para inglês ver, enquanto escondem um maço de tabaco
E um isqueiro bic, dentro das orelhas e deitam olhares que tentam ser inocentes
Mas só sai uma ingenuidade forçada. A autenticidade mora na paciência temperamental
Dos elefantes, que toleram tudo, desde que lhes paguem silêncio suficiente e até
Trocam vegetação e água, por sangue e leite se o senhor Benjamim lhes fizer cara séria.
Ao chegar a noite até os babuínos conhecem o Cristiano Ronaldo e confessam-se
Descontentes por ele ter deixado o Manchester, mantêm-se actualizados pelas estrelas,
Sabem que Portugal não é só Pessoa, também Mourinho, com cara de poucos amigos
No multibanco do Norteshopping a caminho das estrelas. Ainda falam dos que sonham
Com andorinhas no Inverno, esses que esperam que abra a caça à rola, se tiverem muitas
Vacas e cabras até o rei Salomão é chamado ao barulho para as trocas por mulheres,
É que o gajo sempre foi bom nas divisões, mas acaba-se sempre por perder nas conversões
Calculadas com paus na terra poeirenta. As osgas trazem notícias de longe enquanto
Se espera pelo jantar, uma cerveja e alguma luz para atrair os insectos que a insónia
Acumula no cansaço do fascínio do papel humedecido pelo suor de pouco trabalho.

21.02.2012

Samburu

João Bosco da Silva


A Incerteza Da Zebra

À beira da estrada vende-se de tudo, bananas, rolos de papel higiénico, uma
Mão de rebuçados, parei para comprar uma alma, abri a carteira e faltava-me
Dignidade, pediram-me então uma caneta em troca, mas recusei e pedi emprestado
O olhar vago e o esquecimento de uma sombra ignorada.
Dei-me conta que também eu caminho por caminhar, atravessando cemitérios
De impérios esquecidos com a indiferença de um gato vadio, com os bolsos
Cheios de papéis, onde tenho escrito várias vezes o meu nome, números,
Como se me fosse esquecer de quem sou, se não um nome, como se soubesse,
Sigo, só porque não sei o caminho a seguir, sigo enquanto os vendedores
Me tentam vender pequenos nadas que querem ocupar o vazio
Onde só queria uma alma sossegada, dessas que se vendem à beira da estrada.

20.12.2012

Samburu

João Bosco da Silva


Corte De Papel

A sinfonia dos insectos é cortada por uma ambulância de papel, ao longe, o ganir
De um cão traz-me a casa no Verão e é Fevereiro no berço quente da humanidade,
As árvores lançam-se todas ondulações impossíveis, loucas, contra o ar de barro,
Sangue que todos lhe devemos, assim nos tratam os dias que nos falam, mesmo que
Um ser quase mitológico de histórias nunca antes escritas, gerações e gerações
De Invernos serranos, lareiras e este cheiro do fumo que se espalha, os meus avós
Tão longe e eu onde o sangue voltou a ser terra, enquanto rezo dia a dia, mais
Um comprimido que me livre do mal, mesmo que pareça impossível o mal
Nesta sinfonia aromática, não fosse uma ambulância despertar a consciência dos ossos.

19.02.2012

Nairobi

João Bosco da Silva