quarta-feira, 6 de junho de 2012


O Meu Tio Tagana

Compro o mesmo par de meias de há quinze anos atrás, as mesmas cores, escrevo com
As mesmas palavras, de há mais de vinte anos, tento fazer delas poesia, elas obrigam-me
A ser poeta, mas no fundo, o que queria repetir era aquele retrato com um lápis
De carpinteiro numa pedaço tosco de pepel arrancado a uma saca de farelos, onde
Desenhei o meu tio da França, redondo e de braços abertos, que morava no baixo
De uma casa velhíssima e vivia de ovos cozidos com sal, peixes do rio e aves pequenas,
Cervejas, vinho da sua vinha, fermentado no mesmo baixo, num lagar pequeníssimo,
Queria tanto escrevê-lo, ele português e o meu francês favorito, com a careca sempre
Transpirada e o nariz de batata acima do sorriso e o que estranhei o seu ar sério no
Bilhete de identidade e o nome, nome de um santo eu que julgava que o seu nome
O que lhe chamávamos, num pedaço de papel arrancado a uma saca de farelos,
Ele sempre com algum pedaço de lixo nos bolsos, da França, para nos pôr contentes,
Os sobrinhos dos sobrinhos reais, uma grade de Sumol à espera de nós e do Verão
E fascinava-me ele poder nadar, no rio da aldeia, profundíssimo, tão grande era,
Hoje não sei, nem imagino, só ossos que o fascínio pelos postes de alta tensão
Lhe anteciparam, dizem-me que, mas hoje sei que glioblastoma, e o desenho a arder,
Esquecido na lareira de uma casa velha, ainda mais velha, sem ovos cozidos,
Repito então as mesmas meias, as mesmas cores, porque no fundo só queria poder
Desenhar os mortos como desenhava os vivos, de braços abertos, nariz de batata, ali,
E hoje se fecho os olhos, não lhe vejo o suor a escorrer-lhe na testa, nem um sorriso,
Mas a cara séria do bilhete de identidade, com um nome que ainda hoje estranho nele.

06.06.2012

Turku

João Bosco da Silva