sábado, 31 de agosto de 2013

Intermitências De Fogo E Gelo ou Pasteurização Do Material Anti-poético

Passa-se o dia à espera de um poema, um que sacuda o pó e dê brilho ao cadáver
Que nos habita, um de muitos, uma madrugada que foi esmagada por uma centena de noites,
O cheiro de alguém entranhado nos dedos, que mal se lembra da cor dos nossos olhos,
Ressuscitar fantasmas, quando a carne já apodreceu há muito, pega-se então num livro de
Poemas, enquanto o próprio não vem e encontram-se lugares comuns onde nunca se esteve,
Pedaços de vida, como pedaços de carne numa canja, coincidências felizes que cobrem
A cereja de melancolia, tudo perdido, tudo, quanto muito, um poema que ninguém
Vestirá completamente, ou de nenhuma forma, uma ilusão entre um sono e um sonho,
Até que os olhos orbitem no universo próprio das ligações entre neurónios, esquecem-se
Do transdérmico e os anos todos a entreabrir os dedos, as recordações areia, perdeu-se
O balde e a pá e os caranguejos agora só o seu exoesqueleto verde a lembrar uma lenda
Japonesa qualquer que se ouviu em infância ou num sonho, que é a mesma coisa,
Mesmo que se escreva, aquela boca quente que pedia e engolia o esperma, na esplanada
Das traseiras de um café fechado numa cidade do norte, com as meias e as cuecas descidas
Ao nível dos tornozelos, não voltará a dizer, com hálito a futuros perdidos, que vai para o
Inferno por isto, com um sorriso de levantar o pau de seguida, tudo engolido, é a fatalidade
De tudo, tudo por aí abaixo, ampulheta abaixo, estômago abaixo, terra abaixo, ponteiros abaixo,
Bota abaixo, já nem a casa dos avôs na aldeia se reconhece, um quarto onde era outro, uma varanda
Onde antes uma janela, voltada para a montanha de onde o Sol saía, não nascia,
Tentam-se imortalizar as loucuras ordinárias, esbatidas pelo próprio combustível da loucura,
Mas não vale a pena, no fundo, são só palavras, o batom não se espalha à volta dos tomates
Latejantes, ela não se abre em cima da sanita e pede para a foder, anjo aberto para abraçar
O pecado, que dizem que é pecado e portanto, que se fodam, enquanto o amigo de ímans
Meio desmaiado no sofá com a lata de cerveja na mão, fode-me fode-me, mais, adoro
Os teus tomates, como pode um anjo loiro de olhos de céu ter uma boca tão vermelha,
Mas nada, da varanda da casa dos meus avós, agora, só o Sol se põe enquanto um cigarro
Se consome, na companhia do tio que noutros tempos partilhava cinquenta escudos
Numa arcarde de aldeia fronteiriça, eu agora sempre na corda bamba, entre o tédio e a loucura,
À espera de um poema indecente, sobre as indecências da minha vida, enquanto
Passo um dia à espera que acabe, sem saber bem porquê, para quê, mas siga, que venha,
Tudo o resto, foi engolido, digerido, cagado, e não passa agora de material anti-poético.

31.08.2013

João Bosco da Silva


Coimbra

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Ode À Sombra

Escreve-se sempre à sombra do que já foi escrito, mesmo à noite quando o Panero olha
A Lua como se fosse um olho e por dentro uiva afiando versos e a agulha para depois
Coser a boca dos sapos, enquanto esmaga baratas com os pés para duendes desdentados,
Escreve-se sob a barba de Sebastião Alba, que o veste de abandono e loucura nos olhos
Que só olham para fora, as putas, à mesma hora, contando com o dinheiro roubado
À caixa do dinheiro das alminhas do purgatório, dirigem-se ao local de venda do corpo
Para sustentarem os luxos do dia, há dignidades que se vêm e brilham mais do que uma
Consciência limpa, mais vale a sombra, da barba de Walt Whitman ninguém fala, talvez
No supermercado, na zona dos legumes ou perto dos lacticínios, à tarde é melhor nem
Sair de casa e ficar a amansar plexus e esticar circunvoluções com a televisão generalista,
Queimar mais um dia até que venha mais um livro do Bukowski, de poemas, nada melhor
Para o Sol do meio-dia na ressaca de um Verão desperdiçado em adiamentos e derrotas
Predefinidas, já ninguém salta da ponte, nunca foi branca, mas culpam os romanos, esquecem-se
Das silvas que lhe dá o ar selvagem que merece, também o Rilke me aborreceu ligeiramente,
Mas deve ser comum a poetas sem fome, o jejum afia as agulhas e não há sapo que não fique
De boca fechada a engolir o que vomita, até vir uma pega para lhe comer o fígado e o deixar
Estripado ao Sol, não vejo o Céline a sujeitar-se a certas amizades e sacrifícios por fidelidade
E até prova em contrário, o futuro é sempre uma fome, nas ruas nunca se encontra uma amigo
Quando se caminha de bolsos ou coração vazio, só os cães não se desviam, da sombra, quando
Passa, já os gatos só lhe querem a ausência de luz, os olhos sensíveis de cabrões peludos
Egoístas têm preguiça de arroz, na Lapónia a noite de Inverno desperta sonhos de Verão,
Os pés arrefecem e ainda dizem que a viagem é só dentro, não é, tudo se passa à sombra,
Do que já foi vivido, mesmo que isso implique mudar um ou outro nome, para não ferir
Pessoas vivas ou mortas, reais ou baseadas nas possibilidades tão ou mais verdadeiras
E hoje um nome que custa encontrar-se na palidez de uma cara familiar que nunca mais
Nos irá sorrir, por causa da sombra, porque a miséria nos ensinou que se não podes estar
Sempre feliz, não és feliz, procura então a imperfeição na fotografia onde ambos sorriam,
De verdade, com sincera vontade, a fotografia que entretanto os olhos tornaram quase
Estranha ao espelho, com uma data por trás, no tempo de certezas hoje podres, ao Sol,
Numa cidade sombria, desde uma vila cada vez mais distante e ridícula, antes da aurora e do fim.

Torre de Dona Chama

09.08.2013


João Bosco da Silva
Karri Tahvanainen

“I was drunk enough to go for anything.”
Jack Kerouac

Ó capitão, meu capitão do barco encalhado!

Onde ficaram as noite brancas, Karri Tahvanainen, a erva fumada nos baloiços ao lado do
Cemitério e a hambúrguer empurrada à pressa com meio litro de leite, para curar
A paranóia induzida pela qualidade da coisa, quase tão boa como a irmã do que a forneceu,
Como vai o nosso amigo Kaiponen, ainda salta de varandas, continuas a tratar bem as
Portuguesas com namorado, que só querem levar no cu e fazer mamadas, sabes,
Eu também nunca percebi os escrúpulos das mulheres daqui, por aqui usam-se muitas
Saias, ninguém vai nu para a sauna, e até é uma vergonha foder despido,
Não vá um carro aparecer e o cornudo ser iluminado por um amigo sincero, tens acendido
A lanterna verde às psicoses que levam o chão à carne e a terra ao sangue, nunca te faltou vinho,
Rum, mesmo que do mais barato, mesmo que depois comer pizzas de microondas assadas
Na fogueira, ainda terás o mesmo sofá, nele ainda adivinho o cheiro a esperma seco
E sumo de cona, a tocadora de kantele no fim ainda agradeceu à madrugada, e a garota
De dezasseis anos, chegaria a amadurecer a esquizofrenia, tu bem lhe provaste da loucura
Que eu bem a ouvi gemer deitado na tua cama quase inconsciente das suas maminhas pálidas
A roçar o meu medo de vontade, prometeu-me o cu para o Natal, mas embebedei o Pai Natal
Para que se esquecesse de mo trazer embrulhado numa mortalha, sempre te acompanhavam
Fadas e duendes, às vezes quando penso em ti, parece-me que tu criavas personagens de carne,
De sangue, o professor de arte e as suas bandas desenhadas, nunca o ouvi quando sóbrio,
Mas também nunca me ouvi quando ele bêbado, no alto das torres de armazenamento
De cereais, com a polícia a fazer-nos descer à terra com ameaças aos nossos aviões de papel,
Quem pagou foi o carrinho de supermercado, que congelou no lago Saimaa e só foi resgatado
Já de outra cor, na Primavera seguinte, ao lado de uma bicicleta, hábitos de vodka e outra viina,
Que as noites, mesmo as longas de Inverno, sempre tão luminosas, brancas, continuas a fermentar
A obra, não te esforces muito, tu és a obra, um personagem mais fantástico do que qualquer
Imaginação, se te tivesses atravessado na estrada de Kerouac, de certo que farias empalidecer
Uns quantos beats, tu, o maior beat finlandês, que vive num cemitério de garrafas
E louça suja, dormes num sofá-cama que raramente está vazio e que nunca se fecha,
Onde se separaram lábios com a facilidade de um amanhecer de Verão nórdico,
Logo, ali, que a vontade é de calor, de um mergulho refrescante na alma de alguém
Que não quer mais nada a não ser dar-se e receber, a ruiva, a gémea, a australiana,
As portuguesas, e todas as outras que a ressaca apagou com uma secura de boca,
De manhã também cheiravas os dedos, para te certificares que as noites foram reais,
Eu sim, e escondia-as debaixo da almofada, para que o dia não me lavasse os sonhos.

21.08.2013

Coimbra


João Bosco da Silva

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Sonho Em Veneza

É difícil perdermo-nos em Veneza, lá, está-se sempre num sonho, não se sente
Fome ou cansaço, os olhos engolem o corpo todo e por osmose absorve o que
A alma pede, não deixo de sentir inveja dos que aqui vivem, os seus altos e baixos,
Todos os dias, tão mais belos que os meus, sobe-se, desce-se e sempre uma recompensa,
Ao se sair de uma rua escura e estreita uma praça que abre tanto os olhos que não bastam
E pedem também a boca para se engolir tanto fascínio, entra-se na igreja de S. Pantalon,
Olha-se para cima e sente-se o peso do Síndrome de Stendhal a espremer-nos até
Ao limite da beleza suportável em tons escuros, não se pode ter medo de morrer em Veneza,
Penso até, que aqui, se recebe a morte sem tristeza, mas com romantismo, talvez um pouco
De melancolia, mas não da que o português sente, mais daquela de passar por uma porta
Aberta e ouvir um ensaio das Quatro Estações no berço de Vivaldi, é verdade que aqui não
Se deve beber muito à noite, a não ser que se tenha um anjo da guarda atento, gondoleiro,
Aconselha-se a vista desarmada e sem medo de encarar decotes ou olhos de gelo com vontade
De serem penetrados enquanto pálpebras se apertam em mais um canal e a gôndola passa,
A espuma da cerveja aquece, está-se num sonho, ao lado da Hostaria Venexiana, à espera
De uma morte do que se esqueceu de acordar, sete horas depois do almoço, ainda com a
Piazza S. Marco a latejar profundamente, desde o córtex occipital ao frontal, atravessando
Em linha recta as memórias congénitas do hipocampo, um dia voltarei com a impossibilidade
De regressar acordado, lá, só um avião me conseguiu beliscar, enquanto o Sol se deixava levar
Pela cidade a acender-se nos canais, mesmo assim, sorri, com a mesma seriedade com que
Cada pedra foi colocada em cima de estacas de madeira vindas da Eslovénia, Croácia e
Montenegro, cada canal violado com a inocência da fome dos turistas, que lhe perdem
Tempo em montras com nomes que se encontram também no Japão, como também o cheiro
A gasolina e protector solar, os dentes americanos mastigam quantos dólares uns sapatos
E o seu tamanho perante a beleza da sereníssima, nem a pele queimada pelo Sol se lembra
De despertar, só a de fora contra os olhos e toda a fome de sonho, de sombra e frescura,
E ainda dizem que Veneza é melancólica, nunca viram a invicta do império que levou
Ao dito declínio da que se afunda no Adriático, enquanto com o vibrar de cordas
No crepúsculo, ressoa no coração amargo de um poeta, é decididamente mais fácil
 Morrer-se em Veneza que nos perdermos lá, só o coração se perde entre o corpo e o sonho.

Veneza

01.08.2013


João Bosco da Silva

sábado, 3 de agosto de 2013

Pacotes De Leite Mediterrânico

Fabio, porque sois todos iguais, não sei se é por seres francês, quase a vomitar na língua,
Mas deixo-te desviar as cuequinhas húmidas para o lado no canto da escuridão do barulho,
Espreitam por detrás dos ombros da vergonha, engolem como um desabafo a aproximação
De uma liberdade pesada na almofada onde de manhã a máscara da noite apagada,
Um abraço de rotina, para manter a boa fama, todos iguais, vós, o namorado a estranhar,
Ficar até tão tarde, depois do turno da noite do hotel entrar no da manhã, ele a espremer o
Tempo nas pernas que passam e nas que se lhes abrem, latas de cerveja a povoar a mesa,
Nunca tinha feito isto e até é amor, é, é a magia dos Fabios que são todos iguais,
Vendidos por febra e uma descarga de todo o catecismo às urtigas, fodas no adro da igreja,
Desfarda-se, cobrindo os speedos com vergonhas maiores, uma camisola de uma equipa
De NBA só porque é a moda da praia, a velha alemã geneticamente modificada por
Engenheiros nazis, leva as mamas demasiadamente proporcionais às nádegas da idade
Que à volta dos olhos como nas árvores os anéis, lixada e polida pelo Sol dos países
Conquistados à força política e da economia pseudo livre de mercado, esmagadoramente livre
E absorvente, uma afronta à osmose, a areia que engole a saturação do escarro e outros
Desprezos salpicados, todos, uma questão de influência gladiadora, eu sou legião, tenho-o dito,
Uma das engolidas por bárbaros germânicos, aqui não se discute, são distúrbios motores
Na língua, demasiados cunnilingus na época dos bancos de jardim ou punheta depois
Da missa de Domingo para purificar o corpo depois da alma fumada e curada, mais fome
Do que as chamas que se imaginam, nós pobres Fabios, tudo se transformou, não fomos
Criados assim, tanta obsessão com o pecado, teve que fazer-se merecer tanta culpa tatuada
Na inocência dos que nasceram por pecado e em pecado, sorriem e já adivinham o jacto
De esperma nos dentes bem cuidados, na palidez da sua qualidade de vida que trata
A miséria por pesadelo, os padrões sempre foram o seu fraco, fácil de adivinhar o púbis
Bem aparado, depilado ou não, a cor real que escondem no que mostram, todos iguais,
Vós, Fabios, quase virgens quando cai em cima de vós a responsabilidade de um tesão
Sempre pronto para tanta puta, sei que és fácil, a lavar pratos com as nádegas
Engordadas com fast food, para a fast foda, esquecida do exército americano,
Do soldadinho meant to be, encornado, das lições de kickboxing, tão submissa agora,
Também com o, não sei se é por seres francês, ou lá o que aquilo é, por ter provado
Vinho francês e conhecer somente mais o californiano, queijo, azeite, pão fora de embalagens,
De forma orgânica e irregular, é uma visita à Torre Eiffel, ajoelha-se e desaperta a braguilha
Numa retribuição brilhante, mas com muito dente à americana, comemos cavalo por vaca,
Pérolas para porcos, a enfeitar o azul daqueles olhos patrióticos, a mão encontra o desvio da
Careca e ou suor ou uma prontidão eficaz que promete somente madrugadas e ressaca,que
Passará muitos anos depois, dos anos que ainda quentes, na ressaca se escreve ainda,
Sem dores de cabeça, só a melancolia do sabor que se lavou mastigando dias, todos iguais vós,
E eu nem Fabio sou, cresci a carne de porco das matanças de Inverno, provei pizza só
Depois dos dez e antes, pensava que eram omoletes, agora ovos e gemadas na certeza
Estereotipada de tudo o que é estrangeiro e ignorante, acabe-se já a Peroni, a cinta descaída,
Os calções até aos lábios maiores, a tinta também, que até o Miller se cansou de tanta foda
No vazio, tanta página em branco preenchida com a solidão trazida pela humidade que passa.

Rimini

28.07.2013


João Bosco da Silva