sábado, 5 de janeiro de 2013

Este Poderia Ser O Poema

Este poderia ser o poema, mas não é, quase nem um poema, só o vestíbulo entre a desilusão
E mais um dente cariado, no fundo, sempre nos tratam mal depois de tanto uso, no fim,
Acabam sempre por deixar-nos ou ficam lá a ser polpa para o caso de uma morte menos assim
Assim e provas para dizer que somos quem fomos, quando todos os poemas ficaram a encher
Lareiras apagadas em noites aborrecidas em que se desiste de buscar o tempo perdido nas páginas
De um livro que se tentou ler para se crescer de alguma forma, nalgum sentido, mas só nenúfares
E paisagens estranhas, que tentam ocupar a importância dos soutos e dos lameiros, com pão
Caseiro, fatias grossas de queijo e marmelada, juncos e bosta fumegante, grilos e palhas na boca,
Quantos versos não passam de uma necessidade de lítio, ou de uma simples foda, daquelas que
Lavam com a sujidade e a decadência, aquele acordar quando a porta do elevador se fecha
E ainda se tem nos lábios o sabor da urina, mas não o nome, e torna-se tudo tão claro como se
As palavras nos dessem tréguas durante uns momentos, daí a valorização dos gemidos
E a importância do balbuciar ébrio na evolução do homem, a filosofia é apenas chicotadas
Em cavalos cansados de fome, a consciência fora dos sentidos, a lucidez salgada numa língua
Branca em jejum, à espera do Sol além das montanhas nevadas onde se escondem os cadáveres
Dos deuses e dos burros que por lá se perderam, que também profetas assassinos do silêncio
Gratuito e revelador, do isolamento da altitude, poderia ser, mas não é, nem finge, nem tenta,
Não é, mas contudo, consegue ser, uma página que ficará mais vezes fechada que aberta,
Como tantas vidas, que poucos conheceram e ninguém a conheceu de verdade, não como
Quem apenas a imaginou, sem reflexos ou ecos, apenas mãos abertas e vazias o suficiente
Para se viver, ir vivendo, durar, ir morrendo até se acabarem as palavras que preencham os versos,
Inúteis, os dentes que mastigam ar, palavras e o sabor perde-se, no vestíbulo entre uma e outra,
Até se cansar a picha, se esquecerem os grilos e o cheiro verde dos lameiros, se desistir de procurar
E engolir páginas de recordações perdidas no hipocampo apodrecido entre apodrecimento vegetal,
Procurar o reflexo nos retratos alheios e nem assim se encontra o merecimento merecido,
Este poderia ser o poema, mas não é, é mais um prego, ou mais um pedaço de lenha que ficará
Por arder, é o grito de quem se consome, o crepitar sincero de quem recusa o lítio e a estabilidade
E passa a vida mergulhado em lagos asfixiados pelos nenúfares, invejando os juncos
E os olhos verdes que viveram as memórias mais felizes, mesmo que apenas pão caseiro
Com fatias grossas de queijo e marmelada e a bosta ainda quente, e os lábios apenas salgados
Pelo suor do Sol, que se acreditava nascer na serra além da janela grande do quarto debaixo
Das mantas na casa da avô onde a prima também nua e a vida tão estranha que parecia natural
Quando os anos poucos, os versos mais curtos e mais cheios de verdades simples e objectivas,
Hoje perdidas, nas portas dos elevadores que se fecham e nos livros que se desistiram de ler
A páginas tais da dor de um dente, e que desculpe quem tiver tornado isto poema, não era para ser.

05.01.2013

Turku

João Bosco da Silva