terça-feira, 5 de fevereiro de 2013


Ensaio Sobre O Arrefecimento Do Café

Que fazer quando o café arrefece e se tem a certeza que a sua doçura é só para disfarçar
O seu negro amargo, faltam pontos de interrogação, mas não é por orgulho e só se tem
A certeza das ausências, o café dizem que desperta, mas o quê realmente, quando se sabe
Que o dia não mora ao lado e se passarão as horas a pintar paredes com recordações
E a procurar em silêncios as vibrações escondidas de certas músicas que estranhamente
Se entranharam no hipocampo e tem cheiro quando se apertam os olhos com força
E se murmuram, hum hum hum, até um cabelo nos incomodar no pescoço, solto, loiro
E a deixar de incomodar com a cor, sabes bem que este poema poderia ser para ti, mas não
É, nem é sobre ela, é sobre o café amargo que arrefece enquanto o açúcar se revela
Colheres a mais, na chávena triste, não há perversidade mórbida só a curiosidade inocente
Que se permite às crianças com espancamento por catecismo, inferno, inferno, e carvão
No sapatinho, engole-se tanto pão com vontade estéril, com esperança seca e ilusão apagada
De paraísos e vidas eternas, haja esperma quente e fértil e a certeza do sangue coagulado,
Todos somos deuses enquanto vivermos e amarmos, e temo desiludir Pasolini por omissões
De actos pensados, não trair o amor do fantasma de um fantasma fossilizado na moral,
A minha deusa sente-se, bebe-se, sorve-se, e sinto as suas graças à minha volta,
Responde-me aos pedidos de carne, rasga-me o corpo e o que dá vontade ao corpo
E traz-me o paraíso sempre que está presente, até o café é mais doce e a manhã parece
Mais branca, não amarga, de velas apagadas, roupa interior esquecida, espalhada pelo chão
Numa casa vazia, pequena e tão vazia, peço-te e espero-te, o teu dourado calor,
A tua doçura, mas as bandeiras perdem a cor e os meus avós envelhecem num ritmo
Que nunca imaginei possível, olho para as mãos e entretanto passaram décadas,
Hiperventilo café para despertar e levar o dia até ao fim, afasto cordas e lâminas do caminho,
Desistir é tão fácil que se torna difícil e eu sempre fui de ir contra, de bater contra,
Os muros não são tão duros como a minha cabeça e o que me limita fortalece-me,
Engulo, fecho os olhos e sou engolido e só tenho a certeza de ser, quando me sente,
É sempre o fim do Verão quando ela parte, mas em vez do cheiro do bagaço nas ruas,
O cheiro do café a empurrar-me para páginas em branco e a companhia do papel.

05.02.2013

Turku

João Bosco da Silva