sábado, 23 de fevereiro de 2013


Fome Com Frigorífico Vazio

“eu não tinha gostos que pudessem ser levados a sério num miserável.”

Céline

Sacudo o dia das botas enquanto encerro a porta atrás de mim, entro no vazio,
Nada me espera e só a fome persiste ainda, abro a porta do frigorífico vazio e rio-me
Do ridículo, procurar-te no frigorífico, a dor é afinal ao lado do estômago, apetece-me
Um Pall Mall, mas falta-me a chama de enganar a morte enquanto ela deixar, espero
Que a noite se esgote antes de esvaziar o copo de Johnnie Walker, espero que o futuro
Me venha salvar do presente, mas tenho bebido muitos presentes e o futuro, quando vem
É mais um presente, esvazia-se o copo e no fim, invariavelmente, o vazio, o fundo
Como um reflexo assustador, como pode haver tanto entre dois vazios, quem saberá,
Tomo um analgésico demasiado forte para o que o corpo sente, mas como se pode
Chegar à alma se vive nos interstícios da dor, até os dedos me parecem abandonar
O ritmo absurdo deste latejar sinusal, resigno-me à tua ausência e adio-me
Até o Sol decidir rir-se da minha palidez forçada, sem agulhas, só as palavras me aliviam
Ou nem por isso, perdi deus numa avalanche que varreu quase todas as minhas ilusões
E agarro-me ao vazio que tu deixaste como se fosse a promessa da vida eterna,
As tuas mãos, em cima do muro daquela casa velha, o dia espalhado pelo chão,
Amanhã varrerei o ontem que hoje me foi, mais um dia à sombra da tua ausência
E adormecerei a fome, como quem embala um lobo enquanto nos morde a carne.

Turku

23.02.2013

João Bosco da Silva