quinta-feira, 4 de julho de 2013

Raspadinha

Raspadinha

Esta será a raspadinha derradeira, a que irá pagar todas aquelas raspadas no fim-de-semana,
Sentados num banco de jardim ao pé do quiosque, às vezes eram às cinco de uma vez e claro,
Poupava-se no gelado, eu e a minha irmã com as unhas, raspávamos e passávamos à mãe para
Conferir, às vezes ela, dá para mais uma, queres ir lá buscar e eu ia, raspava e ficavam rasgadas
No caixote do lixo, agora que arrancaram o quiosque e que já ninguém se senta naquele jardim
Da vila, agora que nos gelados procuro a ausência dos gelados da infância, esta será a raspadinha
Que irá pagar todas as outras, é uma brincadeira isto, é para passar o tempo, dizia a mãe,
Tentando convencer-nos que não era desilusão nos seus olhos, cem escudos já não é mau,
Guarda-os para um gelado que é melhor, mas onde vou agora buscar o prémio se do quiosque
Só resta o que se vê quando os olhos fechados, ou a voz do senhor J quando cheiro as folhas
De um jornal, esta será a raspadinha derradeira e mesmo assim, sei que a vida ficará menos,
Sempre menos, agora que da infância, o único original e verdadeiro, só a distância resta.

Porto- Coimbra (Comboio)

02.07.2013


João Bosco da Silva

Os Dos Delírios Versejantes

Os Dos Delírios Versejantes

“fornicamos
para que alguém nos renda”
Sebastião Alba

O fogo que trazemos dentro, não consome como o dos incêndios, crepita, mas é como o crepitar
Dos montes em Junho, ao Sol, quando as sementes das giestas se abrem lançando à terra quente
As suas promessas de verde, é portanto um fogo que fecunda a aridez seca das folhas em branco,
Esperando com isso levar a esperança aos olhos, ou apenas um despertar de brisa, feita de tudo
Aquilo que sempre nos despejam dentro, como se o nosso fogo daquele que queima, como se a nossa
Alma uma incineradora, por isso não se queixem dos versos poluídos, nem se revoltem com os cogumelos
Venenosos, não esperem de nós o sumo de uma fruta cuja árvore não plantaram, e se crepitamos
É porque nos dão silêncio para isso, mesmo quando é o silêncio de um guardanapo de papel numa
Esplanada cheia no centro de uma cidade a arder em chamas apressadas de carne e olhos só para
Serem ocultados pelas modas que tentam vender pelos passeios ao Sol, isto de rasgarmos o que é
Branco é também uma forma de nos despirmos, de aliviarmos um pouco o corpo dos trapos e da sujidade
Com que nos vestiram o nome, somos o grito escrito das dores que nos dão, das que nos obrigam
Pelos sentidos e assim crepitamos num latejar apagado e somos a semente e o estrume de algo
Que poderá nascer além dos vossos olhos, se houverem olhos que vejam além das palavras.

30.06.2013

Cidões


João Bosco da Silva

Última Noite De São Pedro

Última Noite De São Pedro

Não foi ontem, ontem nem estive lá, porém, alguém me bateu no ombro e quando me voltei,
Desculpa, pensei que eras tu, mas não era, ontem nem estive lá, portanto, a última vez deve
Ter sido num ano há muitos anos antes dos que me cobriram a vontade de cansaço,
Ainda aquela boca no meu dedo, quente, tão húmida e eu com uma curiosidade penetrante,
Eu com ganas de me ocultar no interior escuro de uma cona disposta a esconder toda a minha
Vergonha, disposta a absorver num vórtex de hemisfério norte, toda a incerteza e dar-me
Na sua dinâmica de fluidos, todas as noites numa, sem promessas de suor e gemidos furtivos,
Mas ontem não, fui, eu, nem sede, hipnotizado por todos os fins, esqueci-me de recomeçar e
Não compreendi nem uma lição das que se diz aprender com as derrotas, talvez a lição só uma,
No final serás vencido e nem deus, nem o seu espaço vazio, a ignorância, te poderão salvar
Da tua condenação a ti mesmo, podias ter bebido algo para te acordar, mas não, como seria
Possível se nem lá estive, apenas me escondi no barulho das estrelas, em cima, que com jeitos
Frios ocultam humildemente ou falsamente que são infernos, milhões de infernos num só céu,
Cujas chaves, dizem, são guardadas por um morto que negou o amigo três vezes, por isso
Prefiro fingir acreditar nas três cabeças daquele cão, neste Cérbero de sombras e outros.

Torre de Dona Chama

29.06.2013


João Bosco da Silva

Despejar O Lixo

Despejar O Lixo

Tu, que com promessas impossíveis e portanto de nada, me fizeste perder nesta pedra à deriva no infinito,
Tu que me fizeste acreditar que era aqui, onde estavas, a minha casa, tu que desconheces
Todas a cinzas que tinha guardadas como recordações, porque sou afinal uma fogueira apagada,
Tu que me trancaste dentro do teu coração e continuaste lá fora, onde sempre viveste,
Tu a quem dou a carne e toda a sua vontade, não queiras ser a razão da minha eternidade,
Não me convenças então que a imortalidade se esconde num beijo, já que o meu cepticismo
Se limita aos sonhos dos outros, nos olhos dos outros, deixa-me dormir à minha maneira
E se me quiseres acordar, recolhe antes a tua roupa do chão, não deixes nenhum bilhete
Ou mensagem no espelho, o batom custa a limpar, e ao saíres fecha a porta com a certeza de uma morte.

Torre de Dona Chama

29.06.2013


João Bosco da Silva