quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A Sombra Da Anti-Matéria

Respeita a matéria negra, afinal de contas é ela
Que suporta o peso de toda a luz, dá também espaço
A estes poemas destilados da treva, do cheiro a salitre,
Da merda fermentada, do esperma bêbado em adro de igreja,
Ninguém vive sem cagar, mas passa-se sem se tomar banho,
Há purgas essenciais, da alma nada fica e só na vida
Tem que se arrastar este saco de tédio a que se chama
Imaculação, sem crucificação não haveria religião,
Respeita a matéria negra e o lado escuro da poesia,
Sem Rimbaud não haveriam tantos iluminados hoje,
Sem tantos iluminados, não haveriam tantas sombras,
Deixa apodrecer as flores, azedar o amor como o leite,
O sumo também fermenta, é mais natural, e não podes
Esconder que o que move os dedos, não é a vida,
Mas a consciência da grande sombra, ou também os ratos
Seriam poetas nas bibliotecas das faculdades de letras.

Coimbra

10-11-2013


João Bosco da Silva
Uma Fidelidade Inútil

Escrever nunca me trouxe glória ou amor, muito menos
Quando escrevia por uma coisa e a ilusão da outra,
Escrevi cartas de amor, em noites passadas em casas de amigos,
Tu ficas com esta e eu com aquela, mas escreves tu as duas,
E eu escrevia, no fim, uma das duas dava resultado, talvez
Me faltasse o olhar, ou as palavras nos lábios, ou apenas
Prontidão, seja como for, ficava a entreter a amiga com
Silêncios constrangedores, enquanto o meu amigo comia o fruto
Do meu trabalho, a que ficava comigo, entediada, sabia no fundo
Que as cartas tinham tido um único autor, apesar de uma delas
Não ter tanta timidez, depois das cartas vieram as mensagens
Rápidas, outras noites a escrever para mim e para os outros
O que sentia, do meu lado, sem efeito, do outro, ainda estão
Juntos, no fim de contas foi com o que fiquei, escrever,
E agora, nesta noite solitária, se calhar, sinto-me menos só.


Coimbra

10-11-2013


João Bosco da Silva