quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

As Dimensões Das Cordas

Sempre julgaste que crescer não passava de uma alteração no ângulo
Com que o Sol te desenha a sombra no pó do caminho,
Entretanto o teu pai a correr no prado devastado pelo monte
Com os sapatos de Domingo para a fotografia,
Os únicos, com uma idade que nunca lhe imaginaste
E hoje da idade que nunca te viste ter,
 A cerejeira também secou e seria um luxo
Se o avô trancado nela pelo apodrecimento fora,
Tudo se perde, e de tudo o que se perde,
Só cresce a ausência do perdido, na companhia dos sonhos
E das desilusões, arrastam-se as pernas da alma,
Num corpo violado tantas vezes pelo que tinha que ser,
O pó que se levanta no caminho quase tão efémero,
Mas até ele, como o nome, se limpará dos sapatos
Dos que seguem atrás, perseguindo sombras com medo
Dos sonhos que prometem chuva, lá para as horas das cordas.

28-01-2014

Coimbra


João Bosco da Silva

domingo, 26 de janeiro de 2014

“Mr Mojo Risin”

Procuras entre quatro paredes saturadas pela tua presença, uma companhia,
O espectro de uma garrafa de vinho que um dia enterraste na areia e bebeste na companhia
Do pôr-do-sol, tentas lembrar-te de quem eras na noite em que bebeste uma garrafa
De sake e escreveste um poema sobre uma tatuagem num ombro ao som dos The Doors,
Procuras-te menos nesse quarto fechado, onde estás, procuras-te dentro, onde não estás,
Reflexos que nunca encontras no espelho em que realmente te espelhas, procuras
O reflexo no hipocampo, nunca acreditaste na companhia que te fazes, preferiste sempre
A companhia imediata da bebedeira e das casas de banho em bares quase vazios,
Procuras porque tens as mãos cheias e os braços cansados do peso dos dias, sempre
Os mesmos, para cima, para baixo, para cima, para baixo, uma masturbação por necessidade,
Um desespero de verter como quem faz uma sangria na alma e fica melhor, porque menos,
Na palidez encontras-te mais facilmente com a eternidade, procuras-te nos ecos daqueles
Gemidos que nem do teu nome capazes, mas que interessa, se tu tão certo da presença da tua
Carne, nada te dá mais certeza que a dor, procura-la sempre que sentes a invisibilidade
Tomar conta de ti, gritas com vontade, sopras contra o castelo de cartas só para que se voltem
Para a demolição da beleza que com tanta paciência construíste, procuras a companhia
Do granito a rasgar os teus punhos enquanto rezas e vertes o teu corpo líquido na pedra
Quente entre as pernas de uma capital, a tua curiosidade sempre foi passiva, para satisfazer
A dos outros, e tu inocente sempre, em todas as fodas anónimas, em todas as traições
Sorridentes e sinceras, na aceitação da fruta, sempre engoliste até ao fim, cego, fascinado
Pelo fascínio que fingem ter pela tua alma apagada e cinzenta, procuras uma confissão,
Mas não consegues falar de outra forma que não esta, confessas-te por isso aos copos vazios
E aos sonhos nas noites de insónias e de transpiração por abstinência de excessos.

25-01-2014

Coimbra

João Bosco da Silva

Publicado na antologia "Voo Rasante", Mariposa Azual

Excerto lido por Sara F. Costa: https://soundcloud.com/sara-f-costa/joao-bosco-da-silva-quente-entre-as-pernas-de-uma-capital 

sábado, 25 de janeiro de 2014

A Sombra Do Silêncio Em Tábua Rasa

Que esperas ouvir do crepitar dos ossos esquecidos pela carne que lhes pesou,
Nas horas em que te deixas embebedar pelos luares do desespero e chamas à solidão
Uma forma de arte, ou essencial à identidade, quantas vezes o espelho não te reconheceu
E vias pouco além do desconhecido que te tornaste, não te percas em paragens demasiado
Familiares, o desencontro mora onde se costuma descansar e é sempre demasiado tarde
Para recomeçar a palpitação do coração que se cansou de tanto desistir, come pétalas,
Mas nunca conseguiras absorver a efemeridade da beleza, come momentos, nada te alimentará
Mais a melancolia que te atormenta os dias que sentes, presentes, há quem se tenha
Envenenado com cor, outros com a lucidez extrema ao ponto de uma loucura sóbria
E aceite pelos rebanhos mais violentos, que esperas ouvir da ressaca do incêndio,
Da sombra da tua felicidade quando os joelhos se confundem com o chão e o futuro,
Boceja enquanto for legal e ridiculariza-te antes que alguém o faça por ti, ninguém mais
Tem o direito de te conhecer melhor do que tu mesmo, abre as mão e não tenhas
Vergonha do orvalho que escondes nas unhas sujas da infância, a sinceridade nunca
Foi polida, o olhar é mais claro quando fica pela confiança, descansa que o teu ombro
Já somou favores suficientes, já mereces uma vela nas noites escuras, mas cuidado.

25-01-2014

Coimbra


João Bosco da Silva
Entre O Limbo E Uma Conversa Possível

Conta-me agora o que ficou por dizer naquela estação em Salo,
Também a ti te apetece desaparecer muito, ou só um pouco,
Também te escondes nas visitas à loja de bebidas depois do trabalho,
Procuras algo familiar no fundo da garrafa e pedes esquecimento,
Os teus amigos, desaparecem-te quando te escondes, ou em dias
Cinzentos, conta-me como morreram os teus cães, sem nomes,
Quero deles mais que isso, quantos cemitérios encheste de ti
E quantas visitas deixaste sem ti, tens recusado madrugadas,
Daqui, sinto uma estranha nostalgia de alpendres e erva tocada
Pelo fim de uma tarde quente, nenhuma das que possa chamar
Minhas, mas já me conheces, apesar dos olhos fechados,
Entre o pó e a eternidade, agora brindava contigo, mas só tenho
Copos em branco e livros cansados do medo de os revisitar,
Quando me visitares crescerei a barba para que me reconheças o olhar,
O inocente e o que a loira me desenterrou no sofá daquele hotel
Enquanto a irmã esperava por cubanos e um toque italiano que
Nunca entrou no elevador, podia contar-te mais em padrão de
Leopardo, mas primeiro quero ouvir-te, alto os teus segredos,
Antes que me esqueça do cheiro das tuas palavras e do timbre
Do teu ritmo de incerteza, mas não te queixes, deixa isso
Para os meus poemas de recreio, deixa isso para os porcos
Enquanto a mãe colhe o seu sangue por entre a faca, também
A dor se come, há lágrimas que alimentam, enquanto os sonhos
Se consomem na lareira que aqueceu a carne tenra de anos e perdição,
Conta-me enquanto espero pelo arrependimento, conta-me antes
De chegar onde ficou o vazio do que se levou e se traz agora a ser.


15-01-2015

Coimbra


João Bosco da Silva

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Nem Sempre Te Encontras No Horizonte

Os olhos de Mordor, no horizonte de outros tempos, lembram-me que a era
Do Tulicreme em pão caseiro acabou, entretanto empunho nos queixos
Um Ventil em direcção ao lameiro das ressacas virgens das macieiras desaparecidas,
Também o meu avô onde as macieiras, e aquele, a quem roubei o momento para
Poder dizer que eu isto, eu um dia, e por isso aqui, a martelar um poema
Que tinha ficado na inspiração de uma noite de cerveja com os tios de França,
Até o Kerouac se deixou levar para onde todas as macieiras vão ao secarem,
Ou não, às vezes só porque as vacas precisam de espaço para pastar e a sombra
Oculta certas vaidades, o caçador já tem o caminho alcatroado até lá, onde
O enterraram, nem sei onde apodrece o Jack, nem o Bull, nem o que se tornou
Hippie e perdeu a voz comprimida de quem escrevia para o vazio, sem plateia
A quem agradar e vender, não o censuro, eu que me prostituí tantas vezes,
Para compensar a falta de imaginação, ao menos escrevo sobre o que cheirei, quem
Fodi, quem me fodeu, onde caguei, até o glaciar na Noruega onde mijei,
Tive que sangrar para poder ter tinta e no processo, perdi tanto sangue,
Que deixei de saber quem sou, convenci-me que podia fazer parte, agora que
Me perdi, mas fazer parte de quê, se já nem os montes me pertencem, por ter
Deixado de lhes pertencer, infernos desolados pela ganância de pastores sem doutrina,
Pela ganância da ignorância, a que tornou o “meu” país na puta que é,
Acabaram as romarias e mal me lembro de como era a minha terra antes de partir
Para Mordor, quando regressei, tudo tomou a forma das tripas de um vulcão,
Até os lameiros desertos, os lábios desertos de sorrisos, a inocência dos
Primos pequenos engolida pelo que engoliu a minha, não sei se o tempo, ou o
Que o tempo trouxe em troca do que tirou, os cães, os gatos, amigos, brinquedos,
Sonhos e ilusões, é para aprenderes, diziam, a vida não é fácil, este ano o
Pai Natal não tem muito dinheiro, até ele é fodido, pensava o garoto com a chinela rota
Perto da chaminé, o Menino Jesus, entretanto cresceu e brincar na neve perdeu
A magia depois de se ter fodido e gelado o cu numa bebedeira nórdica,
Naquelas que acusam de responsáveis pela morte da minha submissão de acólito,
E mães da minha doce depravação de abrir pernas e corações oprimidos pelo
Tédio de viver, porque a vida só se sente quando se suja e se gasta estupidamente
E é levada pelos mais básicos instintos, como martelar uns versos
A um ritmo alucinado de excitação limite à beira violação, os dedos sujos da
Tinta e do óleo, do suma da cona mecânica que ejacula versos nos olhos que
Quiserem arriscar a sinceridade em palavras de um bruto, sem respeito pelos grupos
Fechados e pelas orgias dos escritores sérios como as pegas do seu país, terra
Pobre e mal agradecida, paridora de títulos sem prestígio, só de abertura
Fácil e cu abundante como as moedas pretas no fundo do porta-moedas, abre-te
Tu que não tens mais nada para dar a não ser a confirmação do meu poder pela
Tua submissão de cão com fome, vale o que vale, e na verdade não vale nada
Porque tudo é merda adiada, um lameiro perdido, uma macieira cuja sombra só existe
Na memória brumosa de uma tarde de ressaca, onde os dias idos, ainda nos
Músculos, agora na polpa do que foi uma medula, um cocktail de todo o esperma
Desperdiçado, ou não, em vazios, só porque se quis acreditar que ninguém morava
Lá dentro, para ser mais fácil passar e não voltar a entrar para tomar chá
Ou um copo de vinho espanhol, que se julgava, pensei que era da tua terra, se ao
Menos uma garrafa de vinho da vinha que matou o meu avô, para que vissem que
Eu uma história, um lugar onde pertenço, ou devia pertencer, apesar de incomodar
Vindimar à chuva, como o cheiro a cona debaixo da almofada da manhã, ao se acordar
Só e miserável, se ao menos vomitar antes da primeira cerveja como o Bukowski,
Mas não, toda a merda dentro a fermentar, à espera de uma diarreia de dedos
E uma descarga livre em forma de verso demasiado solto e sem respeito pelos
Filhos da métrica, poetas encartados, autorizados e respeitados pela sua
Esterilidade poética, quanto a mim, que escrevo disto, seja o que isto for
Ou não for, há mais tempo do que a maioria fodem, a poesia deve ter cheiro,
A ribeiros poluídos antes da duna que antecede a praia na infância, lixeiras
Pestilentas onde se procura o brinquedo que por engano se atirou fora, cadáveres
E valas comuns abertas nos livros da Segunda Guerra Mundial, o hálito do bigode à Charlot,
Porque a poesia quer queiram, quer não, é algo morto, feito de passagem, de
Derrotas, de injustiças, de saudades e insónias, de cães mortos, gatos mortos, amigos
Perdidos, brinquedos partidos, flores que apodrecem numa campa de cemitério
De aldeia, sem nome, é um cigarro que se consome, uma garrafa que se perde
No vazio da perdição, dois corpos que se tocaram e foi tão pouco para nunca
Mais para sempre, um horizonte poluído pelo presente, o horizonte que é o
Que os teus olhos procuram, quando deixam de conhecer a própria casa,
Quando até a janela se estranha, tão baça, serão os olhos, os olhos não,
É o que vê o que eles vêem, saco de restos inúteis do que se viveu, eu, eu.

01-10-2013

Coimbra

João Bosco da Silva

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Escatologia

Acredito na humanização dos santos e na salvação pela carne,
Acredito na necessidade do pecado para a manifestação da alma,
Acredito na morte eterna e na sua infinita justiça,
Acredito no poema rei qua nada julga e nada promete
E que virá trazer a memória aos olhos de quem lá se encontrar,
Num lugar comum separado por violências privadas e osso, olhos
Que se encontram na familiaridade do que levam para o lixo,
Acredito na liberdade do abandono da esperança e na força
Do desespero à beira da loucura sem regresso, limpa por fora,
Acredito e espero os amanheceres ébrios em comunhão com
As cinzas dos sonhos e na proximidade do equinócio do que se é,
Nu e sincero, longe das paredes da igreja e de toda a água benta
Com vestígios de esperma e outras contaminações humanas,
Demasiado humanas, oprimidas pela obrigação de um arrependimento,
Envergonhadas, porque é isso que nos separa deles,
A vergonha, um deus nunca se envergonha, acredita sempre
Que está certo, eu acredito na impressão dos seus segredos,
Na sublimação dos seus erros nos seus momentos possíveis,
Acredito no poema rei e nos sonhos que os dedos cospem acordados.

Coimbra

07-01-2014

João Bosco da Silva
Purgatório

Será que ainda não percebemos que o único lugar onde nos poderemos
Voltar a encontrar é no cemitério dos que fomos e que à noite as insónias
São gritos das nossas ausências, têm-se as mãos sempre tão cheias
De futuro, que se esquecem logo do que deixaram cair, para sempre,
Sei que te encontrarei, lá, onde também eu fiquei a ridicularizar-me,
Onde por vezes em sonhos acredito ainda ser, até que desperto e o cheiro
Dos dedos alguém estranho às memórias acabadas de desenterrar pela madrugada,
Foram tantos os livros que entretanto nos separaram, mais altos,
Esses, do que os próprios anos, anos que passaram pelos dois
E tão desconhecidos os de um do outro, tal como as páginas
Que não nos foram comuns e ainda dizemos, encontrei-te lá,
Eras tu aquela personagem, eras tu, quando tu, agora, tanto
Quanto uma personagem de ficção qualquer, criada nas páginas em branco
Da ausência, continuo a dizer-te que se escreve melhor quando
Há fome, não da que mata e faz crescer a barba, mas da que vai matando a luz,
E pede dedos escravos para erguer pirâmides aos olhos que não estão.

Coimbra

02-01-2014


João Bosco da Silva
Saudades

A saudade é um pus que me torna a cabeça num enorme abcesso
Aceso no coração da náusea, à beira do vómito e da miragem
Do que os dedos tocam no momento e quase sinto de verdade,
Onde as luzes se acendem por trás, onde o pó assenta
E as pegadas se esquecem do esforço ridículo dos pés.

Coimbra

06-01-2014


João Bosco da Silva
Eulógia

A minha piça gradua futuros amestrados pelo instinto da perdição,
Cultiva rumores no canto da virilha, forma crostas no mais frágil da alma,
É uma arma de fazer humidades na aridez da vida
E esconde, latente, uma amamentação mais profunda.

Coimbra

03-01-2014


João Bosco da Silva