quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A Transcrição Da Saudade

ao meu avô Jorge,

A caneca sobreviveu-te, ainda há copos que vibram na recordação dos teus lábios
Pintados pelo vinho , as cartas evaporam-se num canto onde o pó se esquece,
O teu canto à beira da chaminé nunca será preenchido, venha quem vier, até eu
Me sinto esmagado pela ausência de ti todo, quando concentro o meu peso e o meu
Sofrimento na lareira que crepita com o gotejar da gordura de uma chouriça que nunca
Irás provar, a mim tudo me pareceu gratuito, sabendo que a mim, nem a caneta me
Sobreviverá, do que são feitas hoje as tuas mãos nodosas e onde estão as batatas
Que tu arrancavas da terra, não serei egoísta ao ponto de dizer, morreste-me,
Porque na verdade, morreste-te, a ti e a tudo o que era teu, com eu, uma
Extensão do que extraíste da terra e apesar da tua surdez se ter tornado no
Eco da eternidade, cá me estás, mesmo que nem uma palavra, nem uma só história das
Que tanto gostavas de repetir, só a sombra da tua presença, à lareira, nas noites frias
Destiladas a fogo e vinho, pela vida fora, até que nem o cansaço te cedeu, só a vida,
Tu sempre maior e mais forte que tu próprio, nem te sentiste, nem te acreditaste,
Ainda hoje estás certo que eterno, também eu, aqui te sobrevivo, entre um vazio
E outro, que a vida é isto, esvaziar, despejar no nada tudo quanto se é, até não haver
Mais que se seja, tudo tão certo como a garrafa que se encerra na mão e já vazia,
Tão seguro como a mão que a empunha e sem se perceber a larga por um instante
E a garrafa partida, a tornar o seu vazio do tamanho do mundo, aperta-me a mão,
Mesmo que tu já nem mão, tu todas as mãos que nunca serão a tua, como foram
As mulheres aquela que nunca foi, percebes-me a estas horas antes da primeira caneca,
Falemos na linguagem das cartas, deixo-te roubar, contigo perder nunca será perder,
Só perdendo-te, eu parto, baralha tudo como se fosse a minha cabeça, tu sabes,
Sempre decifraste bem a cor dos meus olhos e o sofrimento da minha carne dissecada
Pelo vício dela própria, digo-te que nunca chorei, porque nunca te vi chorar, os homens
Que vivem na vida, não choram, sangram, aí eu falho-te, sou muito espectador,
Toco demasiado sem tocar verdadeiramente em nada, crio tanto sem direito a espaço,
Nem uma fruta, só a vontade, talvez, um corte, uma fatia de queijo de manhã, na transição
Da ressaca, na morte da juventude, enquanto o Sol, lá fora, indiferente a todos os ossos,
Nos envelhece, nos separa com dias, tempo, invejoso do tamanho da memória,
Acreditaste mais no poder da terra e da carne, mesmo que a cara salpicada de água
Nos Domingos e o adro na tua presença, a olhar para as mulheres de lenço na cabeça
Certas dos pecados, decorando um arrependimento para a representação de teatrinho,
A caneca sobreviveu-te, o vinho é que não será nunca a mesma coisa depois do inferno.

05-02-2014

Coimbra


João Bosco da Silva

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