quinta-feira, 24 de abril de 2014

Todos Os Gatos

O gato está vivo ou morto, morto e vivo antes de se abrir a caixa, nunca morto-vivo,
Livre arbítrio, dizem, quando a escolha neste universo terá que ser a que foi feita, será feita,
Ou o universo seria outro e não este, o corte no dedo como tinha que ser e não a lâmina
Ao lado da dor e do sangue, os nascimentos e os tiros no escuro assassinos de nadas,
Toda a sorte e o infeliz azar, irmãos prováveis, copo meio cheio e meio vazio e a cicuta a descer,
Sempre tão mal recebidos os infortúnios, só há coisas que merecem um, só a mim, quando
Afinal, tudo a quem tinha que ser, um espelho contra espelho, com infinitos reflexos, todos
Diferentes, um corredor do comprimento que atribuem a deus, no entanto o nada é
Proporcional a tudo e a música é tão maior do que a distância física que de olhos fechados
Por dentro percorremos com pernas de ilusão, uma viagem sem se sair do mesmo crânio,
O gato roça na perna, tem fome, está vivo, aqui, mesmo não estando, o resto são gatos
E não gatos, vivos e mortos, numa dependência de olhos para decidir em que paralelo.

24-04-2014

Turku


João Bosco da Silva

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Rimjobs E Buracos Negros

Somos tanto o mesmo, a mesma estrada a caminho da aldeia que ficou por visitar
E todas as promessas mentidas, necessárias ao alívio e ao consentimento da carne,
A consanguinidade atormenta tanto quanto atrai e fascina a familiaridade do pecado
Em casa, o trigo pronto para ser ceifado e a curiosidade verde longe do amadurecimento
Podre dos dias em que se é, e o mundo encerra-se num espaço restrito entre suor
Excitado e o muco de segredos que toda a gente confessa e limpa com hóstias
Coladas ao palato, desejando logo voltar a sujar-se com um rimjob peludo,
Só o que passou interessa e é o que somos, o resto é arrastar uma tentativa vã de
Romper com o limite do que se é e ser livre no aprisionamento de um outro,
O futuro é apenas onde não se está, mora ao lado do desejo, num fim de verão eterno,
Regressar à carne que um dia nos abençoou com a libertação de nós próprios
Parece um traição injusta à memória, confrontá-la com as medidas reais do que com
O tempo e a nostalgia tomou a forma de um sonho, mas que fazer quando fechou
Aquele café nas nossas costas e ficou uma insatisfação verde no regresso impossível,
Que fazer quando se torna impossível encontrar pedaços de espelho nos livros que se lê
E tudo aborrece por repetição ou tolerância, que fazer quando ardem as saudades
E se fica hipnotizado pelo fascínio da despersonalização das chamas nas circunvoluções
Onde se escondem os sabores reais do que ficou perdido num tempo por onde se passou,
É obrigatório morrer, como passar, o big bang não trouxe nada de novo a não ser
A possibilidade de uma coisa de cada vez, em vez de tudo no mesmo lugar ao mesmo tempo,
A nossa maldição é aprisionar pedaços de tempo num espaço demasiado pequeno,
Dizem que os neurónios e as suas sinapses se assemelham a um pequeno universo,
Não admira sentir-me tantas vezes perdido em estrelas moribundas e buracos negros.

21-04-2014

Turku


João Bosco da Silva

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Montanha-Russa

Depois de tão pouco, o invólucro aberto do preservativo continua onde os olhos o deixaram,
Intocado, há lugares que até o vento despreza, onde as sombras reinam e são memória,
Ou aqueles minutos antes de se adormecer por completo e quando os melhores poemas
Se tecem para ficar esquecidos na primeira mosca da manhã, não interessa e repita-se
Que as caras barbudas dos quadros já mudaram mais que o desespero dos suicidas,
As esculturas dos amigos estão tão cansadas de olhares desconhecidos que desejam
Chuva ácida e a morte eterna no anonimato de um calhau à beira de um rio de aldeia,
Estás perdido, há anos que estás perdido, mas como se pode alguém perder dentro
Disto, a não ser que seja uma perda de tempo, que a vida acaba por provar ser, não interessa,
Há inutilidades que permanecem inalteradas para nos lembrar que a imortalidade nem sempre
Se encontra na arte, na fama, no barulho, em lado nenhum, como mãos mortas em cavernas
Nunca descobertas para os lados de uma país qualquer da idade dos outros todos,
Resta sonhar enquanto se dorme e esquecer o resto dos dias por o que se acabou de parir,
Apostar tudo na incerteza, porque o tudo é tão pouco quando se consideram os fracassos
Desde que se deixa de acreditar que o Sol nasce para aquecer o menino e que o fogo
É para a mãe fazer a comidinha ao menino, um futuro possível impedido, ao lado do rio,
O vestígio de uma mortalidade sem precisar do corte da marcha-atrás, ali, ainda, depois de tão pouco.

Turku

10-04-2014


João Bosco da Silva