quinta-feira, 29 de maio de 2014

Naquele Tempo

Naquele tempo os quartos eram ainda mais escuros e os dias mais vazios,
Mas havia uma força de vontade que rompia a sujidade das ruas e dos olhos
Que as corrompem, até ao autocarro da meia-noite, havia tempo para mais
Uma violência consentida, polvilhar o ar pesado da solidão com o cheiro a sexo e álcool,
Um pouco de fumo dos cigarros fumados na letargia entre a ejaculação
E um novo tesão, assim eram alguns dia naquele tempo, o ar tinha outra massa,
Apesar do mesmo, os pulmões como a alma, habituaram-se, criaram tolerância,
Pode não haver ar pesado o suficiente, um dia, nem o excessivamente doce
Metálico ar africano, carregado de promessas de extinção e tempestades evolutivas,
Não será suficiente para se inspirar até às falanges da alma, já não se trata da inocência,
Já naquele tempo se fossilizava, a religião já se tinha trocado pelo desengano,
Era aquela capacidade de Caeiro, cada vez a primeira vez, tudo novamente outra vez,
Com gosto e entusiasmo, mesmo que o Sol químico, um truque de recaptação inibida
Para afogar o cérebro em felicidade, os orgasmos arrancados à força de lábios abusados
Mas satisfeitos, não estava habituada, a marca do anel ainda no dedo, branca, como as
Calças à espera e as cuecas no chão, molhadas com a latência de uma paixão,
Naquele tempo ainda se aconselhava a evitar as paixões e era o mais inútil a fazer,
Como tudo o que é sincero, as calotes glaciares estão a descongelar ao dobro da velocidade
E o mundo pára para ver um famoso nu, enrolado à namorada, naquele tempo ainda se tinha
Fé na humanidade, o futuro parecia-se com o que se espera do futuro, amava-se com
Um certo desprezo, agora todos os dias sabem a cinzento e pouco interessa, seja o que for,
Talvez um eco no quarto fechado ao se passar ao lado, um eco dentro enquanto se caminha
Em direcção à distância, onde alguém menos quem naquele tempo tinha ainda um par
De sonhos no bolso, agora é demasiado tarde para o que quer que seja, a folha de papel está
Irremediavelmente arruinada, mas como é a única, vai-se escrevinhando, sem cuidado, como
Se toda a vida um papel de rascunho. O futuro não é lado nenhum, é só estar longe daqui.

João Bosco da Silva

Porto


20.05.2014
Roupa A Secar

A farda seca no estendal de parapeito, ela poderá estar em casa,
Ou numa magra folga, se calhar foi à aldeia ver a mãe que não fala com a avó,
Ou está em casa só, deitada na cama, imaginando encontros com quem lhe
Tocou de leve o passado, com um olhar, uma palavra ou outra e pouco mais,
Nada de promessas, ainda sente o gosto daquelas tardes de início de Verão,
Trancada até à noite com aquele corpo que parecia nunca se saciar do dela,
Se calhar é uma daquelas tardes ainda, e ela recebe sedenta o prazer
Que lhe impingem na carne, diz que nunca teve um orgasmo, mas mesmo assim
Gosta de foder como se não houvesse amanhã, na rua veste-se de timidez,
Mas o olhar trai-a sempre, os homens despem-na tantas vezes, se calhar por isso
A farda no estendal, a secar da saliva, como o esperma na sua pele depois
De lavar a alma com a certeza da carne, ela sabe que não passa daquilo,
Por isso abre-lhe os lábios e derrete-se toda, arrisca-se a um futuro comprometido
Apesar de se fingir sem ilusões, lá no fundo deseja uma concepcão que prenda,
Que a livre das calcas da farda, mas para isso tem que encontrar algo mais
Estável que o desejo e o prazer limpo de outros interesses futuros,
Pode estar à beira rio, no aniversário de alguém, a frisar o cabelo com o suor
Enquanto apanham morangos do outro lado, ela toda famas e olhos,
No frigorífico o mínimo para ir enganado a fome, ou entreter entre coitos,
O mais certo é estar a trabalhar, com a vontade de outro lado, pensando
Em férias num lugar que imagina da boca dos outros, ou das fotos que lhe
Obrigaram a engolir, como submissão, deve estar a trabalhar, para acabar
Mais um dia numa casa alugada, com uma renda que lhe leva metade do salário,
Encerrada num quarto quase privado, não fossem as discussões constantes
Dos vizinhos, acentuando mais a sua solidão, mais um dia para menos um dia,
Após dia, todos os sonhos adiados, quem se perdeu longe, quem se dá
Sempre ao lado da vontade, vai-se andando, vai-se quase sendo, lavando a farda,
Sujando a farda, acumulando dias inúteis para nós mesmos, sepultando-nos
Até nada mais restar, do que roupa esquecida no parapeito de uma janela,
Para a curiosidade mórbida de quem ignora a cor dos nossos olhos.

28-05-2014

Turku


João Bosco da Silva

domingo, 18 de maio de 2014

Espasmos Matinais Nas Circunvoluções Após Sesta

Desenham-te como um pintor cansado dos boulevards pinta uma paisagem bucólica,
Imaginando nas cores a dureza do trabalho e o cansaço dos dias, a inocência que
Se julga por trás daquela gente, fascina-os a tua clareza perante a opacidade da vida,
És apenas uma fera  num circo de cidade, uma besta amansada pelas correntes
Do esperado, alimentam-te com ilusões como se alimentam bois com palácios,
E consomem-te os sonhos na esperança de uma cura para o envelhecimento
Do convencional, cultivam poetam como se treinassem papagaios e usam o teu
Passado como um dicionário de memórias, interpretam-se enquanto dormes
E esperam que a carne te seja limpa, mesmo sabendo que gostas de chafurdar no
Desespero e na solidão das noites alheias, prometem-te um pedaço de betão
Em troca do teu olhar e julgam que possuis uma sabedoria latente, como a dos
Animais, mas sem possibilidade de expressão, ladras à noite porque te sentes menos
Só nas horas dos cães vadios, não te deixes amansar, não lhe cedas a violência,
Vive como quem mergulha ignorando a profundidade, não te deixes pintar
Como um elefante, sê africano, evita as procissões e procura-te menos onde não estás,
Eles apenas te chuparão até ficares seco, vazio, um hipócrita deslumbrado pelo
Espelho do tempo em que ainda eras bruto, um animal com palavras toscas
E puras, não te deixes encontrar, ou acabarás com uma geometria a olho nu, num
Dedo qualquer, quando a tua perfeição e dureza se encontram na tua estrutura molecular,
No sumo primeiro, antes de azedar, és o musgo verde e húmido numa fraga de granito,
Não te deixes apanhar para seres pisado por figurinhas de presépio lascadas,
Bebe vinho e grita-lhes as verdades que eles querem esconder nas evidências.

Turku

18-05-2014


João Bosco da Silva

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Parafilias Bucólicas

Tem-se medo da inocência, de olhar e ver apenas o momento bucólico,
Sem a adição do que se sabe, por trás, por sabe-se lá que dinheiro,
Objectos ou favores ridículos, a abrir as pernas para os velhos ricos de idade e vício,
Prefere-se o burro e as casas arruinadas pelo esquecimento, a distância
Das árvores que secaram ou arderam, do que o ruído que contamina o olhar
De criança, vê-la como antes, com indiferença sem maldade, ver por ver, sem adição
De culpa ou cicatrizações forçadas de segredos abertos para os lados do rio de baixo,
Onde tantas histórias correm e quase tantos tomates se correram,
Desde épocas mitológicas, com o primeiro pó do ano e a água ainda fria de Abril e Maio,
Toda a gente cresceu para se engolir em desejos incompletos, ser para olhos indignos,
Revelar-se na escuridão ou nos favores das velas e nos cantos de que toda a gente fala
E ninguém vê, custam-me tanto os pecados dos outros, especialmente quando tento ser limpo,
Ou sincero aos olhos côncavos dos viciados na tradição hipócrita, em incenso, pão rançoso,
Absolvição e histórias da carochinha para embalar, fazer medo e impor respeito
De luto e lenços na cabeça, o cão à frente dela, o de quatro patas, o de calções atrás,
Sem perceber o cheiro do que acabou de se despegar dela há umas horas,
Não há nada a fazer, tende-se para o lixo, para a porcaria, princesas rasgam os vestidos
A caminho dos sonhos impossíveis, deixam-se penetrar pelas vontades sujas de poder,
Pelos desejos fáceis, por ilusão, fraqueza, também é só corpo e não se gasta,
Só para se sentir, nem que seja nojo, dor, algo diferente, a primeira vez todas as vezes,
Nem que seja um arco-íris com as cores da merda, algo novo, o tédio é o nosso pior
Inimigo, passa-se a vida à procura de primeiras vezes, chega-se perto do fim, ao limite,
Não há almas higiénicas depois dos dentes de leite, tudo se perde com o final da tarde
E a primeira absolvição dos pecados, que nem se confessaram, também a inocência se
Absolve como se fosse o tal pecado original, um banho de alma dado por um hipócrita maior
Resolve todos os problemas de consciência, todas as dúvidas de existência, para sempre,
Até à próxima, no fundo, espera-se que a carne se revele, tão suja quanto possível,
Há algo de erótico na culpa, uma parafilia reciclável, usa-se o sexo como cura para o vazio
Que também aumenta, procura-se calor no impessoal e higiénico, sonhando-se com
Esperma, suor, saliva numa boca familiar, espera-se que o Sol se ponha e o frio chame
Para a hora de jantar, a cura pelos copos e a companhia inócua de garrafas vazias,
Esquecimento como verdadeira salvação da alma, como forma de regresso aos olhos
Dos primeiros poemas, limpos de encontros mascarados e decadência gratuita.

Turku

09.05.2014


João Bosco da Silva

sábado, 3 de maio de 2014



Aparição en Arlequin

Quando estive pela primeira vez frente a frente com o Paul en Arlequin, senti algo como
Se uma aparição, vi-me, não aquele miúdo de cabelo castanho-claro, numa foto, agarrado
A um ramo de uma árvore para os lados de umas termas esquecidas, com o mesmo olhar vago
Do Arlequin, mas vi a idade que tinha, já não era o miúdo que reproduzia em folhas de papel
Cavalinho o quadro do Picasso para o trabalho das aulas de Educação Visual no quinto ano,
Era todos os pecados que acumulei até então, toda a sujidade que lavei das mãos desde então
E senti-me traído, por mim mesmo, traída a minha inocência, ali, em frente ao original,
Senti-me quase envergonhado por não ter dez anos ou menos, porque o que merecia
Aquele reflexo, era o miúdo de cabelo castanho-claro a cobrir-lhe a testa e olhar inocente,
Sem sinal de maldade, solene, mesmo que com roupa de palhaço, senti-me eu o verdadeiro
Palhaço, que trocou a pureza, a inocência, pelo barulho do demasiado a confundir-se com lixo,
Reparo mais uma vez que a sua posição podia ter sido outra, como o encontro podia ter sido noutro
Museu, mas foi ali, no Ateneum de Helsínquia, inesperadamente e fiquei como um pequeno
Alberto Soares ao se ver e não se reconhecer, ao me ver e não reconhecer o que se reflecte
No quadro, naquele quadro tão familiar, pintado noutra vida com lápis de cor e mãos pequeninas.


03.05.2014

Turku


João Bosco da Silva


Distração E Cabelos Brancos

Quando foi que envelheci tanto, nem dei por nada e agora vejo os amigos do meu pai
Na falta de vontade que tenho de continuar a parir cabelos brancos, mais cansaço e uma
Valente desilusão a cada sonho que passa e deixa apenas um enorme vazio, vejo-me
Naquelas fotos, tão seguro, tão homem, jovem, agora jovem, porque eu daquela idade
E eu não posso ser grande como quando via aquelas fotos numa outra vida, profunda,
Enterrada no pó dos dias, na lixeira de tantos momentos, mesmo os gloriosos, hoje composto
Para fertilizar a morte, apestar o envelhecimento, eu que vivi tudo em tão pouco tempo
E nada fiz a não ser gastar sem gasto dar sequer, só os órgãos sofreram, em nada amadureci,
Saltei logo para o apodrecimento, só estraguei, a vida deve comer-se verde ou nunca se terá
Vontade nos dentes, agora isto, o medo a trazer poemas, cada vez mais parecidos entre eles,
Encostados uns aos outros, debaixo de uma ponte num dia de tempestade, querem tomar forma,
Ser vida, algo que se adia por se saber que na verdade impossível, por prazer, ejaculaste nos
Olhos das verdadeiras oportunidades, negaste o amor dentro da espectativa do brilho do ouro
E levaste banhos orgânicos raros em amnésias que não consegues esconder, quase foste o pior
Que podias ser e nunca estiveste tão próximo de ser feliz, mas sempre julgaste que havia tempo,
Que ainda era cedo e agora, ninguém tolera o barulho que fazes dentro de ti mesmo,
Deixaste cozer demasiado, agora não consegues engolir-te, eu digo-te quando foi que
Envelheceste tanto, foi enquanto viveste sem olhar muito para os outros, o espelho que
Eles querem ser de ti, as barrigas dos outros, os cornos dos outros, as traições dos outros,
Os empréstimos dos outros, os divórcios dos outros, os filhos dos outros e os que não são deles,
Os sonhos que os outros já não revelam, porque se tornou ridículo, sonhar, só relembrar é
Permitido, entre umas garrafas de vinho, os direitos que os outros julgam ter, os deveres que
Os outros te querem impor, a forma como querem que te vistas e as máscaras que querem que  uses para
Pareceres bem, apesar de mentira, os erros que querem que cometas porque é o que está certo,
A cor do cabelo dos outros e as suas testas a tomarem conta da imaginação, não vale a pena olhar
E envelhecer a vida, já se morre o suficiente na morte, distrai-te outra vez, eles passam sempre.

01.05.2014

Turku


João Bosco da Silva


A Macieira Dos Insones

Disseram-me que arrancaram a macieira porque secou, também eu sequei e nunca ninguém
Me conseguiu arrancar as raízes, mesmo que tenha sido muitas vezes estrangeiro em casa
E preferir a solidão do granito e o desolamento das ruínas dos verões quando a cinza já
Assentou à força da chuva, o lameiro tem tão pouco do que trago, parece mais pequeno
Apesar de terem derrubado a cerca que o dividia, enterraram um poço, o cão já se tinha
Lá afogado, de certeza também a capacidade de ser feliz com um bocado de pão caseiro
Com tulicreme que a tia preparou, a inocência como o amor, cega, mas uma cegueira por
Ausência, a cegueira de quem tem as mãos vazias e está cheio de sonhos, a cegueira
De quem confia na vida como na mãe e é para sempre e capaz de tudo menos de traição,
Cega para a maldade, com os sentidos livres e limpos para receber a felicidade, ou apenas
Estar e ser, ignorando que se é, aquela macieira em cuja sombra me deitei e senti
A novidade da erva seca nas costas como a primeira vez em que li Walt Whitman, frescura
Viva que mais tarde se transformou no cheiro a mijo cristalizado das folhas amarelecidas
Pela experiência e o tempo, sentir o mesmo de forma inversa ao sentir o aroma azedo
Da cerveja estragada no fundo das garrafas quase vazias e a companhia pouco simpática
De outras barbas, eu quase, sentado a consumir-me em copos de plástico, tremendo com as
Chamas das velas ao vento das saudades e uma quase hipocrisia por falar sozinho com a
Memória de quem, espero, me dê o adiamento e a força inata, já que nasci de pouco
E para quase nada, para acabar numa noite de luar, longe disto tido, no lameiro
Daquela macieira onde me arrancaram, hoje tenho amigos poetas, pouco me conheço,
E tenho dias em que quando acordo, demoro horas a encontrar-me por entre os papéis
Manchados pela chuva e pelo carvão do sofrimento adiado pelo medo de mais um
Momento inútil e perdido, para sempre, ao lado do lugar onde esteve a macieira, para nunca
E até sempre, numa garrafa de vinho bordeaux, lá para os lados de Django Reinhardt e dos tios
De França, porque tantas vezes o que procuras é apenas o inesperado, como o sabor daqueles
Gauloises à beira do rio da aldeia, de madrugada, com os pés cheios de vinho tinto e língua
Destravada, pronta para confissões lançadas para a fogueira purificadora da felicidade.

Turku

30.04.2014


João Bosco da Silva