sábado, 3 de maio de 2014



A Macieira Dos Insones

Disseram-me que arrancaram a macieira porque secou, também eu sequei e nunca ninguém
Me conseguiu arrancar as raízes, mesmo que tenha sido muitas vezes estrangeiro em casa
E preferir a solidão do granito e o desolamento das ruínas dos verões quando a cinza já
Assentou à força da chuva, o lameiro tem tão pouco do que trago, parece mais pequeno
Apesar de terem derrubado a cerca que o dividia, enterraram um poço, o cão já se tinha
Lá afogado, de certeza também a capacidade de ser feliz com um bocado de pão caseiro
Com tulicreme que a tia preparou, a inocência como o amor, cega, mas uma cegueira por
Ausência, a cegueira de quem tem as mãos vazias e está cheio de sonhos, a cegueira
De quem confia na vida como na mãe e é para sempre e capaz de tudo menos de traição,
Cega para a maldade, com os sentidos livres e limpos para receber a felicidade, ou apenas
Estar e ser, ignorando que se é, aquela macieira em cuja sombra me deitei e senti
A novidade da erva seca nas costas como a primeira vez em que li Walt Whitman, frescura
Viva que mais tarde se transformou no cheiro a mijo cristalizado das folhas amarelecidas
Pela experiência e o tempo, sentir o mesmo de forma inversa ao sentir o aroma azedo
Da cerveja estragada no fundo das garrafas quase vazias e a companhia pouco simpática
De outras barbas, eu quase, sentado a consumir-me em copos de plástico, tremendo com as
Chamas das velas ao vento das saudades e uma quase hipocrisia por falar sozinho com a
Memória de quem, espero, me dê o adiamento e a força inata, já que nasci de pouco
E para quase nada, para acabar numa noite de luar, longe disto tido, no lameiro
Daquela macieira onde me arrancaram, hoje tenho amigos poetas, pouco me conheço,
E tenho dias em que quando acordo, demoro horas a encontrar-me por entre os papéis
Manchados pela chuva e pelo carvão do sofrimento adiado pelo medo de mais um
Momento inútil e perdido, para sempre, ao lado do lugar onde esteve a macieira, para nunca
E até sempre, numa garrafa de vinho bordeaux, lá para os lados de Django Reinhardt e dos tios
De França, porque tantas vezes o que procuras é apenas o inesperado, como o sabor daqueles
Gauloises à beira do rio da aldeia, de madrugada, com os pés cheios de vinho tinto e língua
Destravada, pronta para confissões lançadas para a fogueira purificadora da felicidade.

Turku

30.04.2014


João Bosco da Silva

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