terça-feira, 26 de agosto de 2014



Reminiscências Circadianas


Lembras-te do rio no crepúsculo lento daquela cidade antiga, quando passo perto dele
Nunca sou o que conheces, também esse ficou algures entre as portas do elevador,
Que se fechou atrás de mim e encerrou até o para sempre de hoje, o teu cheiro misturado
Com aquele perfume, que tantas vezes encontrei depois, nunca exactamente o mesmo
Ao Sol, será que hoje me pagavas o jantar antes de me encerrares contigo numas águas
Furtadas com vista para o castelo, ou darias pelos anos no meu cabelo, o que me fez o tempo,
Naquele tempo lia Kierkegaard no comboio e passava horas a tentar equilibrar o humor
Na almofada, levava as fodas contadas e depois era tudo um risco que aceitavas também correr,
Tinha mais medo à falência hepática que hoje, apesar de ter mão para tudo, que me fez o tempo,
Tornei-me demasiado amigo dos sofás vazios e dos dias somados aos sonhos rasgados,
Hoje de certeza que não me pagarias um jantar, nem me deixarias adormecer exausto na tua cama,
Sem saberes dizer bem o meu nome, não me chuparias antes do látex, quase desajeitada,
Tu que rejeitaste o senhor arquitecto e deixaste entrar quem te levou uma garrafa de vinho
Do porto, barato, simples, uma cerveja também, em copo de plástico enchendo-se
De pôr-do-sol, tudo fica a brilhar quando se apaga nos olhos, longe, o que me fez o tempo até aqui,
Não sabias que te escrevia, hoje sabes e continuas a não poder ler-me, é pena,
Tantos que me preferem as entrelinhas e os espaços em branco, o tempo que me gastou
E me afastou dos comboios e das cidades antigas, redescobertas na carne exótica,
Será que pensas em mim de vez em quando, e se tivesse ido pelas escadas, teria passado
O tempo como passou, hoje os meus olhos são cansaço, desilusão e uma fome de quem
Comeu sempre demasiado e ficou sem dentes num mundo cada vez mais farto de confusão.


Turku 

24/08/2014


João Bosco da Silva

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

The One Who Never Missed A Plane Yet

Os que  a tua mãe te dá, também não fazem nada, vai perguntar ao homem da boquilha
Eterna e dos pequenos-almoços à base de Bloodymarys, quando o tédio era grande
Até porrada dos Hells Angels servia, “there you stood on the edge of your feather,
Expecting to fly”, quando o homem tem dois polegares numa mão e uma loucura
Tão lúcida, torna-se difícil separar o mito do real, tiveste que engolir a morte
Para te tornares num homem, até lá, foste uma viagem alucinante, desbravando
Os limites do sonho e da narrativa que é onde esses moram, “just another freak in a freak
Kingdom”, senhor doutor da tinta e da raiva, dissecaste o podre com um bisturi
Ferrugento, até chegares à glândula suprarrenal do corpo hipócrita da sociedade,
Quantos litros de adenocromo e ficção são precisos nos olhos para se poder engolir
Este mundo de répteis canibais e chulos de brilho e aparências, “buy the ticket,
Take the ride”, e esquece, no fim da corrida, se tiveres sorte, serás uma náusea
De Ralph Steadman num dia de pó e bílis, o mundo todo é dos morcegos, vampiros,
Não se pode parar, condenados alguns, “too weird to live, too rare to die”,
À necessidade desesperada de procurar o fim do arco-íris, à violência libertadora
Do despropósito, ao suicídio sem intensão de uma morte permanente,
Vives nas noites alucinadas em que te revemos, te relemos, te imitamos,
E tu sentado, no meio de lagartos e outros alienados, quase acendes o cigarro
De uma loira qualquer enquanto te vês a ti próprio numa possibilidade quântica,
Naquele espaço vazio dos sonhos, onde se apanha a  U.S. Intersate 15.

01/08/2014

Turku


João Bosco da Silva