quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Escatologia

Acredito na humanização dos santos e na salvação pela carne,
Acredito na necessidade do pecado para a manifestação da alma,
Acredito na morte eterna e na sua infinita justiça,
Acredito no poema rei qua nada julga e nada promete
E que virá trazer a memória aos olhos de quem lá se encontrar,
Num lugar comum separado por violências privadas e osso, olhos
Que se encontram na familiaridade do que levam para o lixo,
Acredito na liberdade do abandono da esperança e na força
Do desespero à beira da loucura sem regresso, limpa por fora,
Acredito e espero os amanheceres ébrios em comunhão com
As cinzas dos sonhos e na proximidade do equinócio do que se é,
Nu e sincero, longe das paredes da igreja e de toda a água benta
Com vestígios de esperma e outras contaminações humanas,
Demasiado humanas, oprimidas pela obrigação de um arrependimento,
Envergonhadas, porque é isso que nos separa deles,
A vergonha, um deus nunca se envergonha, acredita sempre
Que está certo, eu acredito na impressão dos seus segredos,
Na sublimação dos seus erros nos seus momentos possíveis,
Acredito no poema rei e nos sonhos que os dedos cospem acordados.

Coimbra

07-01-2014

João Bosco da Silva
Purgatório

Será que ainda não percebemos que o único lugar onde nos poderemos
Voltar a encontrar é no cemitério dos que fomos e que à noite as insónias
São gritos das nossas ausências, têm-se as mãos sempre tão cheias
De futuro, que se esquecem logo do que deixaram cair, para sempre,
Sei que te encontrarei, lá, onde também eu fiquei a ridicularizar-me,
Onde por vezes em sonhos acredito ainda ser, até que desperto e o cheiro
Dos dedos alguém estranho às memórias acabadas de desenterrar pela madrugada,
Foram tantos os livros que entretanto nos separaram, mais altos,
Esses, do que os próprios anos, anos que passaram pelos dois
E tão desconhecidos os de um do outro, tal como as páginas
Que não nos foram comuns e ainda dizemos, encontrei-te lá,
Eras tu aquela personagem, eras tu, quando tu, agora, tanto
Quanto uma personagem de ficção qualquer, criada nas páginas em branco
Da ausência, continuo a dizer-te que se escreve melhor quando
Há fome, não da que mata e faz crescer a barba, mas da que vai matando a luz,
E pede dedos escravos para erguer pirâmides aos olhos que não estão.

Coimbra

02-01-2014


João Bosco da Silva
Saudades

A saudade é um pus que me torna a cabeça num enorme abcesso
Aceso no coração da náusea, à beira do vómito e da miragem
Do que os dedos tocam no momento e quase sinto de verdade,
Onde as luzes se acendem por trás, onde o pó assenta
E as pegadas se esquecem do esforço ridículo dos pés.

Coimbra

06-01-2014


João Bosco da Silva
Eulógia

A minha piça gradua futuros amestrados pelo instinto da perdição,
Cultiva rumores no canto da virilha, forma crostas no mais frágil da alma,
É uma arma de fazer humidades na aridez da vida
E esconde, latente, uma amamentação mais profunda.

Coimbra

03-01-2014


João Bosco da Silva