sábado, 3 de maio de 2014



Aparição en Arlequin

Quando estive pela primeira vez frente a frente com o Paul en Arlequin, senti algo como
Se uma aparição, vi-me, não aquele miúdo de cabelo castanho-claro, numa foto, agarrado
A um ramo de uma árvore para os lados de umas termas esquecidas, com o mesmo olhar vago
Do Arlequin, mas vi a idade que tinha, já não era o miúdo que reproduzia em folhas de papel
Cavalinho o quadro do Picasso para o trabalho das aulas de Educação Visual no quinto ano,
Era todos os pecados que acumulei até então, toda a sujidade que lavei das mãos desde então
E senti-me traído, por mim mesmo, traída a minha inocência, ali, em frente ao original,
Senti-me quase envergonhado por não ter dez anos ou menos, porque o que merecia
Aquele reflexo, era o miúdo de cabelo castanho-claro a cobrir-lhe a testa e olhar inocente,
Sem sinal de maldade, solene, mesmo que com roupa de palhaço, senti-me eu o verdadeiro
Palhaço, que trocou a pureza, a inocência, pelo barulho do demasiado a confundir-se com lixo,
Reparo mais uma vez que a sua posição podia ter sido outra, como o encontro podia ter sido noutro
Museu, mas foi ali, no Ateneum de Helsínquia, inesperadamente e fiquei como um pequeno
Alberto Soares ao se ver e não se reconhecer, ao me ver e não reconhecer o que se reflecte
No quadro, naquele quadro tão familiar, pintado noutra vida com lápis de cor e mãos pequeninas.


03.05.2014

Turku


João Bosco da Silva


Distração E Cabelos Brancos

Quando foi que envelheci tanto, nem dei por nada e agora vejo os amigos do meu pai
Na falta de vontade que tenho de continuar a parir cabelos brancos, mais cansaço e uma
Valente desilusão a cada sonho que passa e deixa apenas um enorme vazio, vejo-me
Naquelas fotos, tão seguro, tão homem, jovem, agora jovem, porque eu daquela idade
E eu não posso ser grande como quando via aquelas fotos numa outra vida, profunda,
Enterrada no pó dos dias, na lixeira de tantos momentos, mesmo os gloriosos, hoje composto
Para fertilizar a morte, apestar o envelhecimento, eu que vivi tudo em tão pouco tempo
E nada fiz a não ser gastar sem gasto dar sequer, só os órgãos sofreram, em nada amadureci,
Saltei logo para o apodrecimento, só estraguei, a vida deve comer-se verde ou nunca se terá
Vontade nos dentes, agora isto, o medo a trazer poemas, cada vez mais parecidos entre eles,
Encostados uns aos outros, debaixo de uma ponte num dia de tempestade, querem tomar forma,
Ser vida, algo que se adia por se saber que na verdade impossível, por prazer, ejaculaste nos
Olhos das verdadeiras oportunidades, negaste o amor dentro da espectativa do brilho do ouro
E levaste banhos orgânicos raros em amnésias que não consegues esconder, quase foste o pior
Que podias ser e nunca estiveste tão próximo de ser feliz, mas sempre julgaste que havia tempo,
Que ainda era cedo e agora, ninguém tolera o barulho que fazes dentro de ti mesmo,
Deixaste cozer demasiado, agora não consegues engolir-te, eu digo-te quando foi que
Envelheceste tanto, foi enquanto viveste sem olhar muito para os outros, o espelho que
Eles querem ser de ti, as barrigas dos outros, os cornos dos outros, as traições dos outros,
Os empréstimos dos outros, os divórcios dos outros, os filhos dos outros e os que não são deles,
Os sonhos que os outros já não revelam, porque se tornou ridículo, sonhar, só relembrar é
Permitido, entre umas garrafas de vinho, os direitos que os outros julgam ter, os deveres que
Os outros te querem impor, a forma como querem que te vistas e as máscaras que querem que  uses para
Pareceres bem, apesar de mentira, os erros que querem que cometas porque é o que está certo,
A cor do cabelo dos outros e as suas testas a tomarem conta da imaginação, não vale a pena olhar
E envelhecer a vida, já se morre o suficiente na morte, distrai-te outra vez, eles passam sempre.

01.05.2014

Turku


João Bosco da Silva


A Macieira Dos Insones

Disseram-me que arrancaram a macieira porque secou, também eu sequei e nunca ninguém
Me conseguiu arrancar as raízes, mesmo que tenha sido muitas vezes estrangeiro em casa
E preferir a solidão do granito e o desolamento das ruínas dos verões quando a cinza já
Assentou à força da chuva, o lameiro tem tão pouco do que trago, parece mais pequeno
Apesar de terem derrubado a cerca que o dividia, enterraram um poço, o cão já se tinha
Lá afogado, de certeza também a capacidade de ser feliz com um bocado de pão caseiro
Com tulicreme que a tia preparou, a inocência como o amor, cega, mas uma cegueira por
Ausência, a cegueira de quem tem as mãos vazias e está cheio de sonhos, a cegueira
De quem confia na vida como na mãe e é para sempre e capaz de tudo menos de traição,
Cega para a maldade, com os sentidos livres e limpos para receber a felicidade, ou apenas
Estar e ser, ignorando que se é, aquela macieira em cuja sombra me deitei e senti
A novidade da erva seca nas costas como a primeira vez em que li Walt Whitman, frescura
Viva que mais tarde se transformou no cheiro a mijo cristalizado das folhas amarelecidas
Pela experiência e o tempo, sentir o mesmo de forma inversa ao sentir o aroma azedo
Da cerveja estragada no fundo das garrafas quase vazias e a companhia pouco simpática
De outras barbas, eu quase, sentado a consumir-me em copos de plástico, tremendo com as
Chamas das velas ao vento das saudades e uma quase hipocrisia por falar sozinho com a
Memória de quem, espero, me dê o adiamento e a força inata, já que nasci de pouco
E para quase nada, para acabar numa noite de luar, longe disto tido, no lameiro
Daquela macieira onde me arrancaram, hoje tenho amigos poetas, pouco me conheço,
E tenho dias em que quando acordo, demoro horas a encontrar-me por entre os papéis
Manchados pela chuva e pelo carvão do sofrimento adiado pelo medo de mais um
Momento inútil e perdido, para sempre, ao lado do lugar onde esteve a macieira, para nunca
E até sempre, numa garrafa de vinho bordeaux, lá para os lados de Django Reinhardt e dos tios
De França, porque tantas vezes o que procuras é apenas o inesperado, como o sabor daqueles
Gauloises à beira do rio da aldeia, de madrugada, com os pés cheios de vinho tinto e língua
Destravada, pronta para confissões lançadas para a fogueira purificadora da felicidade.

Turku

30.04.2014


João Bosco da Silva