segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Houve Um Tempo

Houve um tempo de longas viagens para longe do Verão
E da infância, sentia-se algo como um elástico a esticar
E dentro tudo a ficar mais fino, a fronteira era a montanha
Do poeta, a lareira a tornar-se numas brasas que a memória
Sopra para se aquecer um pouco, o autocarro frio,
Cheio de gente invisível e barulhenta, houve um tempo
Em que se vivia dos ecos do Verão nos quartos vazios
No meio de uma cidade doente e prostituída,
Em que o chão mais confortável que a cama fria,
De olhos fechados a relembrar as fragas quentes
Ao fim da tarde com o céu incendiado pela noite
Que acendia no ar o cheiro dos jantares humildes,
Houve um tempo em que se esperava o toque
Para o intervalo daquelas ruas, voltar ao tudo que
Se tinha naquele pouco de ruas familiares,
Houve um tempo em que se dava o futuro
Por se ouvir um cão a ladrar à noite ou
Um galo a quebrar a solidão azul da madrugada,
Os sonhos não mudaram muito, só a importância
Que se lhes atribui, houve um tempo em que
A neve era sinal de liberdade e mais tempo à lareira,
Olhava-se e nela o futuro, página em branco,
Não a distância e a fronteira cada vez mais espessa,
Houve um tempo de longas viagens que duravam
Três horas na eternidade de um purgatório
Nas companhias menos óbvias,
Yasunari Kawabata, descendo a montanha do poeta
Em direcção à cidade dos quartos vazios.

Turku

20.10.2014


João Bosco da Silva