segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O Caminho Até Ti

Podias ser salvo se te conseguisses encontrar naquele caminho em direcção aos soutos,
Onde leste em cima de um muro de granito um dos primeiros poemas num livrinho vermelho,
E eras capaz de sonhar com as mãos limpas e capazes de grandes coisas, as limitações
Eram espaço vazio para encher com experiência, imagens palavras, converter a vontade,
Podias encontrar-te se ainda olhasses as montanhas no horizonte carregadas de promessas
E misticismo e visses além de onde te encontras agora, sem velas, num atol estéril
Contaminado pelo exposição progressiva ao tempo, mas não, passas pelos silvados
E ignoras as amoras, mesmo ao fim do dia, não te dás ao trabalho de trazer aquela tarde
No poço apanhando rãs, cansa-te apanhar as flores percursoras da Páscoa para levar à mãe,
Já não te sentas na varanda a disfrutar do passar lento dos dias, passam sem chegares a
Saber-lhes o sabor, na tua boca apenas um gosto amargo do que ficou por fazer,
Não te fascina mais o vermelho dos olhos fechados contra o Sol, uma necessidade apenas,
Poupas a pele à erva seca por conformismo com o entorpecimento e para evitares a dor
Vives como um morto, já não deixas copos meios cheios no cemitério, na noite da festa,
Não te queimam com cigarros no chão do mesmo caminho, depois do banho de estrelas
E de outro corpo ao ritmo dos grilos e da rotação da via-láctea, o muro agora tem cimento,
Podias ser salvo se ainda restasse em ti um pouco de alma, mas foi-se como a infância,
Nem tiveste que a vender ou trocar por algo vão, o tempo é o Diabo e o inferno a relação
Do nosso corpo com ele e tu nunca poderás ser salvo, mesmo que agora já não uses relógio
De pulso, sabes que ainda és tu, que é teu o fantasma que trazes dentro, cheio de memórias
De outra vida, porque nunca soubeste ver as horas em relógios de ponteiros e sabes
Que além, no caminho por trás do souto, encostado ao muro, havia um silvado do teu tamanho,
Onde te abrigaste de uma tempestade entre a tua mãe e a tua avó e tiveste medo, hoje não há
Nada, só pedras descarnadas do muro, agora os teus passos arrastam a única tempestade
E não tens refúgio no deserto que plantaste, a não ser que te encontres naquele caminho
Em direcção aos soutos,  sacudas o pó e tires a tinta com que te foram pintando pelos anos fora,
A não ser que reaprendas a ver daquela forma que o tempo te fez desaprender.

Turku

02.11.2014


João Bosco da Silva