terça-feira, 30 de junho de 2015

Fim De Festa

Enquanto Junho se embrulha nos jornais manchados pela gordura das festas populares,
Com estas mãos manchadas de saudades e um gosto de nostalgia na ponta da língua,
Ataco as páginas em branco com uma força que não encontro para atacar a vida,
Sento-me e espero por algum cheiro familiar, erva cortada ao Sol, um perfume confuso
Nos dedos, o ritmo dos passos no passeio, alguém que espera alguém com calças brancas
E as palmas das mãos inquietas, um número que me levante, algo que chegue por mim
E para mim, a mim que nada chega, tudo passa e na espera tudo o que temos fica,
Entre a vontade e o acto nascem e morrem eternidades, não valeria a pena outra vida,
Não consegui perceber como isto funciona, vejo nos rostos que passam que também
Não sabem para onde vão, nadas com as mãos cheias de momentos sem saberem
O que fazer com eles, e tanta carne, tanta fome na carne, tanta sede, tanto sono
E tanto sonho em tão pouca vida, as gaivotas parecem mais certas do que andam aqui
A fazer, em voos rasantes a roubarem do chão mais uns dias de ar, Junho embrulha-se
Num texto esmagado numa língua estranha e só a gordura familiar, a ausência conhecida,
Tudo se leva nos passos seguros para mais um dia incerto, até ao fim da festa.

30.06.2015

Turku

João Bosco da Silva

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Noutro Comboio

Cá estamos nós outra vez, no tal comboio, que tantas vezes se perdeu,
Fecharam várias estações, agora, como alguns fazem com as memórias
E os velhos amigos, nostalgia engolida pela ruína e pelo monte, inúteis,
A ingratidão pelo que já não se precisa, passou, engoliu, limpou-se,
A estação é outra, a terra ainda espera o teu nome na pedra
E devo dizer que tenho vergonha do meu egoísmo inocente, mas lá está,
Apesar de tudo, sou do país dos vampiros azeiteiros, dos doutores mamões,
Dos umbigos imensos, supermassivos, a cerveja baixa como sempre,
A cada gole sake à sombra de uma cerejeira, na língua algo como aquela vez
Em que ela me disse à beira da estrada na serra, já não aguento com a segunda,
E eu a sentir aqueles anéis apertados, cada vez mais longe, o preço ignora-se,
Esconde-se o recibo da morte, a vida é melhor pagá-la de uma vez,
Pode não se viver para a pagar toda e a eternidade é muito tempo para
Passar vergonha de caloteiro, mesmo que se viva às prestações,
Fica tudo ruínas e curva apertada, espalhado por fragas e oliveiras,
Será que me perdoas o cansaço, juro que tentei levar a vida na linha,
Mas aborrece-me passar o dia a olhar o mundo que passa pela janela,
Ela agora deve dizer ao segundo marido que hoje foi um dia difícil na loja
E que não pode com a cabeça, imagino os anéis e os dedos, o meu
Cheio de mim e dela a brilhar ao luar, a pingar numa dúvida de aquilo ainda nós,
Eu a preocupar-me com os estofos do carro, agora tudo tão longe neste comboio
E tu ainda anónimo para quem te conheceu, ainda verde no monte das minhas saudades.

Inkoo

23.06.2015


João Bosco da Silva

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Da Nossa Morte Nos Outros

Ainda me fala de boca cheia, a pedir futuro, agora, quando me diz olá e me pergunta
Como estou depois de tantos anos, apetece-me dizer-lhe que estou igual apesar
Do cansaço e que não lhe invejo nada que não seja meu, tento lembrar-me do sabor
Que tinha nos lábios, sei que não era a tabaco, não me lembro do que a língua me disse,
O beijo de manhã a sono, alguns sentem-se como um sonho muito quente que seca antes
De se acordar, ainda te lembras, pergunto-lhe na pausa de um silêncio, com os dedos
Pendentes e nos dentes os seu pescoço branco em forma de memória, não me esqueci,
Só tudo confuso, espalhado pelos anos onde não pertence, eu a fingir que também,
Apesar dos números, uma festa, aquela vez, a última vez esta e aquela, se calhar nem Lua,
Ou nuvens em vez de estrelas, mas o teu cabelo a enrolar-se na língua que procurava
Apagar-se no fogo da outra, quando te despedes, sei que fica por dizer que nunca acabaria
A fome entre nós e que estava tudo condenado à distância e à saudade envergonhada
Pela luz da idade agora, sempre estivemos bem um para o outro no excesso em doses
Moderadas, sem intimidades caseiras, só fogo e carne, onde calhava, porque o mundo
Só nós quando nós, não faz mal que te esqueças um bocadinho, sabes que a carne se lembra.

Lahti

23.06.2015


João Bosco da Silva
(A)Parições

“a quantidade de criaturas que a nossa destruição vai destruindo uma a uma”
António Lobo Antunes

Nascemos em tantos lugares, de tantas formas, para morrer apenas uma definitiva vez,
Num último lugar, nascemos num primeiro beijo, de um olhar espelhado,
Nascemos quando entramos pela primeira vez no desejo de alguém, nascemos na mão
Que aperta a nossa pela primeira vez, nascemos num mergulho no espelho,
Num garfo cheio e estranho que nos explode na língua, nascemos nas asas de uma gaivota
De água doce que nos persegue até de madrugada numa noite branca, nascemos na timidez
Que se ultrapassa num salto e numa gargalhada quase louca, nascemos na queda da pele
Queimada por um Sol equatorial ou nas gotas inesperadas do suor Árctico de uma pele dourada,
Nascemos no gole lento e na sua descida apressada, no calor que se dissipa em nós,
Nascemos no céu de Verão à noite, entre as estrelas no espaço vazio entre a ilusão e o sonho,
Nascemos a cada momento que esquecemos, a cada palavra que nos salva e poderá ser
Sempre a última, este é o útero que nos gera, onde fermentamos, amadurecemos
E amargámos, é o teu berço e todas as faces são a tua, todas as camas a tua,
Todas as portas são apenas um nome, outro nome e outra história, o mesmo fim.

Savonlinna

22.06.2015


João Bosco da Silva

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Solstício

Não vale a pena, para quê, já está tudo cheio de donos do direito, tudo ocupado por vazios
Diluídos, um volume imenso de nada, o Sol falhará sempre os dias cinzentos e o Inverno
Regressará para engolir as folhas das videiras, até o vinho ficará azedo como o amor
Que não se bebeu todo quando havia sede naquelas noites quentes, agora pousa a caneta,
Mete as mãos nos bolsos, esconde o ridículo, aperta as calças, deixa o interior da solidão
Em paz, olha para outro lado, deixa as pupilas dos outros sossegadas, as suas dilatações
Não merecem os silêncios  que lhes semeias nos lábios, tira os óculos ou arranja uns se não
Precisares, não vale a pena, para quê, vais dizer o que foi dito ou o que se sabe
E só espera um meio de se transmitir de uma forma menos universal, sacudir o pó
Ou pintar por cima do óbvio, deixa mas é as folhas caírem, deita-te na erva, fecha os olhos
E não vejas além do verde, não vale a pena, não te dês nem te vendas, muito menos
Te imponhas, deixa o esquecimento levar todos os sonhos e dores, lavar a poluição
Em que te tornaste, no fim uma pedra com um nome gasto de uma vida apagada
Antes do seu fim, não vale a pena, apaga a luz e espera pelo fim da noite.

19.06.2015

Turku


João Bosco da Silva

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Pastilhas Elásticas E Latas De Açúcar

“Poetry a fornication against fate.”
Lawrence Ferlinghetti

Quando as pastilhas elásticas perdiam o sabor, já éramos grandes e não as engolíamos,
Estávamos sós em casa da avó, íamos à lata do açúcar e tentávamos trazer o sabor de volta
Às pastilhas, um pecado de certeza, ressuscitar os mortos, e os cristais de açúcar
Quebravam-se nos dentes de leite, como será possível restituir a doçura, o sabor a uma
Pastilha usada, aquilo só sabia a açúcar e parecia areia numa bola de algodão humedecida,
Nada mais a não ser aquele sabor a pouco do que já acabou quando se estava a gostar,
O açúcar resultava melhor na cerveja, mas fazia muita espuma e o copo era pequeno
Para tanta festa, como fazer agora que é tão difícil estar só, agora que a lata do açúcar da avó
Está tão longe, agora que se continua a mastigar a vida com a mesma vontade com que se
Chupa o caroço de uma cereja e não tem onde se cuspir, o que fazer agora que a cerveja
Já não precisa de açúcar e é das poucas coisas que, quanto muito, adoça um pouco mais
Isto tudo, ou torna ao menos tudo menos amargo, já na altura se sabia que nada trazia
De volta aquele sabor original da pastilha elástica, mais valia tirá-la da boca e esperar que um
Tio nos comprasse outra, parar os queixos um pouco e colá-la debaixo da mesa, ou na sola
De um sapato que descolou no dia da festa ou na boca daquela vizinha de França,
O que está perdido está perdido, não vale a pena mastigar o vazio que ficou.

Turku

12.06.2015


João Bosco da Silva