segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Enquanto O Sono Não Vem

“de que serve o passado, não temos a certeza se existiu ou nos deram imagens que amontoamos na esperança de conseguir o que se chama vida.”
António Lobo Antunes

Já quase nada me comove, as mortes passam por mim e fica apenas um nome a latejar
E um esforço em focar uma cara, confio que trago comigo o essencial daqueles que são
Em mim e não me desiludirão mais, já quase nada me faz engolir sem excesso de saliva
Na boca, uma criança que chora é apenas um aborrecimento, os anos fazem disto,
O uso e abuso tornam tudo duro, deixam calo, no entanto uma lata onde uma garrafa
De whisky há muito bebida morou, comove, bebi dela às escondidas com o amigo
Dos olhos azuis quando ainda garoto, e dentro daquela lata agora os tesouros da minha avó,
Que apesar de não reconhecer muita gente, me viu por trás da barba e dos cabelos brancos,
E tu como é que andas com essa barba, não acreditando que eu já trinta, naquela lata,
Cheia de amolgadelas e com ferrugem onde lascou a tinta, tudo o que restou de uma vida
Modesta em posses, um crucifixo onde se lê, terra de Fátima, numa capsula pequena,
Um rosário dado pela amiga que não pode ser ela porque velha, um lápis amarelo staedtler
Mal afiado, usado para escrever o nome nos espaços em branco dos jornais da região,
De onde me lê alto o título de notícias antigas, um jornal mais que informação efêmera,
Conserva-os para treinar uma capacidade adquirida com quase oitenta anos,
Na lata ainda, dois carrilhos de linhas, um preto e outro vermelho e uma agulha que se perdeu,
Um molho de medalhas de santos que se tornou demasiado pesada para andar ao peito,
Travessas para o cabelo, algumas sem dentes, um cartão com a imagem da Senhora da Serra
E uma oração por trás com letra miudinha, dois elásticos brancos que servem de ligas
Para as meias de vidro, e a família toda, fotos de gente que ainda não era gente
E da que já não é, todos felizes, onde se esconderá a tristeza e a miséria nas fotos de família,
O meu avô ainda não bêbado, ninguém doente, ninguém morto, a vida ainda não cansada
De ninguém e ninguém cansado da vida, já quase nada me comove, mas depois abre-se
Uma lata contra a dureza dos anos e aquele tão pouco, sendo tudo, mostrando-me
O último esforço da memória em se agarrar aos objectos que restaram, quando a vida
Uma paisagem longínqua por trás das costas, e naquele lápis o mundo todo enquanto o sono não vem.

Turku

20/08/2015


João Bosco da Silva

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