domingo, 15 de fevereiro de 2015

Ronco III

“flowers stink beauty rots gods die”

al purdy

Os olhos já não me perguntam, o que te falta fazer, perguntam-me, o que te faltou fazer,
E o cabelo anui, confirmando o que os anos redondos levam, os fantasmas decidem,
Depois de anos de silêncio, abrir os lábios carnudos, para anunciarem a absolvição
Dos seus hábitos canibais, a glória redentora, a passagem da estafeta do pecado tão
Pouco original, como que dizem, não soubeste fazer mais nada a não ser cornos, olha agora
O que os cornudos sabem fazer, de certo não lhes engoliram as probabilidades,
A festa acabou há tanto tempo, já se levantaram muitas feiras e as calças brancas a estas horas
Já nem devem servir, ou não se baixam com a mesma pressa até às coxas e um alívio quase
Dentro, atirado para o silvado ao lado, aqueles lábios a brilhar ao luar, ou se calhar só
A cerveja a fermentar, os mesmos lábios no cemitério, aquela surpresa nos dedos,
Dançando como as chamas das velhas, escorregadios, que beleza haverá nisto tudo,
Que lição e para quê, se no fim se rasgam, se apagam, secam, e até os olhos estranhos,
Como as glórias absolvidoras do canibalismo das calças brancas, a sua sede de joelhos
No chão na hora em que os sonhos morrem e fica apenas o cheiro entranhado no hipocampo.

Riga

14.02.2015


João Bosco da Silva
Impressões Sobre O Vermelho

Tem que se inspirar bem fundo antes de se mergulhar na nata ex-soviética, suster
O olhar, ignorar a decadência, a negligência, o vandalismo típico dos cancros,
Até se passar pela biblioteca, atravessar a ponte e finalmente entrar no esforço
De liftings e reconstruções de maxilares mal tratados por tantos impérios,
Olha-se para o passado com aquela nostalgia impossível e reconstrói-se a destruição
Sofrida na última grande guerra, como se as outras pequenas, e pergunto-me se
A fria não terá degradado mais ao longo das décadas sem morteiros, os porcos
Ainda por todo o lado, nas igrejas de lenço na cabeça perguntam se também,
Não, nada disso, o Neva mais além, agora há fronteiras entre cá e lá, será que sabem,
Nas igrejas adivinha-se explosões lá fora, de um lado com vidros sem com
Enquanto que do outro, ainda alguns vitrais coloridos, ou talvez o vento,
Uma tempestade, há uma estranha simpatia forçada nas mulheres, o mesmo
Amor ao bisonte e aos vidros fumados, o olhar num ponto das calças que não é bem
O que se quer, talvez só o frio, no fim tudo são trocos, o agradecimento nunca
Baixou calças a ninguém, contudo, fica sempre bem, além da ponte fica a cara de manhã,
Fica a cama à espera de quem lava os pratos, fica o pesadelo, o frio, as recordações de medo,
Falar a língua com que se pensa, só em casa, ou talvez não, as ruínas levaram muitas camadas
Nestes últimos anos, parece que a cidade está a levar transfusões desde o coração,
Há cor, o gigante distrai-se com os antigos desastres, há vergonhas que se insistem em reviver
Até se tornarem orgulho, lá longe neva no Neva, aqui estás muito bem sem eles.

Riga

13.02.2015


João Bosco da Silva