quarta-feira, 20 de maio de 2015

No Tempo Das Cerejas Quando Chove

O cheiro da serradura, da erva cortada ao Sol, uma folha a passar no rio,
O Verão de Vivaldi, o sabor daquelas primeiras cervejas num dia de sede e cansaço,
Tudo o que nos faz fechar os olhos e nos arranca do agora por um segundo que seja,
E nos leva de volta à inocência, à leveza, a uma tenda atravessada no caminho dos
Sapos pequenos, aos sonhos antes de se apagarem, antes das velas pelos avôs,
Ao tempo dos olhos da avó nas paredes, como os de deus que seguem nos quadros
De Jesus com o peito aberto e um coração no esterno, e as primas um enigma
Irresistível, assim como as cerejas um baú de pirata em cima de uma árvore
Altíssima, as vacas um exemplo de paciência e estupidez, o sabor doce do feno mastigado
Numa torre de fardos num palheiro, nas mãos o cheiro a masturbação seca,
O cheiro a monte no cabelo, o cheiro a monte na pele, o cheiro das saudades a monte,
Inspirar fundo a terra quente quando as primeiras gotas se apagam no primeiro alcatrão
Da aldeia, no último dia de aulas, o relógio lento na lareira em casa da tia, enquanto
O primo acabava o pão com manteiga, os dedos besuntados, e agora os olhos azuis
Da nova geração, o meu corpo de dezasseis anos na fita magnética das câmaras
Dos tios de França, antes de provar pela primeira vez cona e Hemingway,
Deus levado pela corrente, como a inocência, como o exemplo das vacas que pastam,
O sabor do vinho quando o avô dorme, o sabor da aguardente quando o alambique
Foi vendido, o sabor dos salpicões quando se deixou de poder criar porcos, os foguetes
Da festa quando o bidão a fazer de casota de cão vazio, as revistas do homem-aranha
Em vez de gelados com o dinheiro para a festa, a manhã depois da festa no tasco
Ao lado do quiosque das bandas desenhadas e dos gelados que ficaram,
Com os dedos segurando uma chávena de café cheia de aguardente e a lubrificação
De quem dorme comigo dentro, os estrelas e os satélites nas noites que encolhiam
Tudo o resto, os livros que ficaram na lista e aqueles que se intrometeram,
Os que se engoliram só para perspectivar, as batatas que se apanharam da terra fria,
Se comeram, os dedos que se tiraram da carne quente e se chuparam,
Os sonhos que morreram e assombram os sonhos do sono, com beijos no pescoço
E unhas nas costas, e seixos e rãs e medos que se ultrapassaram quando acordado,
O Inverno de Vivaldi, a dor de frio na ponta do nariz, o cheiro da cera das velas no cemitério,
A cebola que fica no prato, o sabor metálico do peixe do rio vivo, quase como do sangue
Das feridas nos joelhos das quedas de bicicleta, o quartzo e a mica dos paralelos de granito,
Tudo o que nos faz fechar os olhos e nos arranca do agora por uma eternidade que seja,
Aprender a ser areia numa ampulheta e esperar que cada grão valha sempre a pena.

20.05.2015

Turku


João Bosco da Silva